Quando pensamos em grandes felinos – leões, tigres, leopardos e onças – pensamos em animais majestosos, imensamente carismáticos, componentes essenciais de suas faunas. É difícil pensar numa savana africana sem leões. Da mesma forma, não faz sentido pensar numa Mata Atlântica sem onças-pintadas. No entanto, sentimos muito lhe dizer, hoje a grande maior parte da Mata Atlântica já não tem mais onças.
Em um artigo publicado em 2016 na revista Nature / Scientific Reports, o argentino Agustin Paviolo e numerosos co-autores de vários países (incluindo um de nós, Ronaldo Morato) sintetizaram o conhecimento atual sobre a situação das onças na Mata Atlântica. Para isso, eles reuniram pela primeira vez os dados de quatorze diferentes grupos de pesquisa, muitos dos quais baseados em armadilhas fotográficas.
O panorama que eles encontraram não foi nada animador. Onças-pintadas ainda existiam em menos de uma sexta parte dos 18,5% que restam de cobertura florestal na Mata Atlântica. Isso corresponde a apenas 2,8% da área original deste bioma (considerando Brasil, Argentina e Paraguai). No total, estimou-se que em toda a Mata Atlântica restam menos de trezentas onças-pintadas. Pior, esse pequeno número delas está dividido em várias populações muito menores e isoladas umas das outras. Apenas sete populações funcionais (com indivíduos de ambos os sexos) foram detectadas. Dessas, só três – do “corredor verde” de Missiones, na Argentina; da região do alto Paraná-Paranapanema; e da Serra do Mar Sul, nos estados do Paraná e São Paulo – contêm, ou provavelmente contêm, 50 onças ou mais. Não é preciso muito conhecimento de ecologia para perceber que a situação das onças na Mata Atlântica é crítica.
No total, estimou-se que em toda a Mata Atlântica restam menos de trezentas onças-pintadas. Pior, esse pequeno número delas está dividido em várias populações muito menores e isoladas umas das outras.
As coisas grandes que governam o mundo
Uma possível extinção das onças-pintadas na Mata Atlântica teria consequências que iriam muito além da sua própria perda. Em 1987, o grande ecólogo e conservacionista, Edward Wilson, escreveu, na revista Conservation Biology, o artigo “The little things that run the world” (“As coisas pequenas que governam o mundo”, em tradução livre). Ele se referia aos invertebrados e seus papéis cruciais para a manutenção dos processos ecológicos nos ecossistemas. No ano seguinte, porém, John Terborgh escreveu na mesma revista uma resposta bem-humorada, que respeitosamente chamou de uma “sequel” (sequência) – ou seja, não estava contestando o artigo de Wilson, só acrescentando algo a ele. Meio debochadamente, Terborgh intitulou seu artigo “The big things that run the world” (“As coisas grandes que governam o mundo”). Os títulos espirituosos ajudaram a vender os peixes (ou melhor, os insetos e os mamíferos) e ambos os artigos se tornaram clássicos.
O ponto principal de Terborgh era simples e poderoso. Predadores de topo – onças, harpias e pumas (ou suçuaranas ou onças-pardas ou como quer que você as chame) – são poucos, mas têm uma importância desproporcional nos ecossistemas. Eles regulam as populações de suas presas preferidas – porcos do mato, antas, capivaras, macacos, pacas, cutias e quatis. Isso impede que as espécies competitivamente superiores se tornem monopolistas em um lugar, ao eliminar as demais. Com isso, os predadores de topo ajudam a manter a diversidade dessas espécies abaixo deles nas cadeias alimentares. Uma vez que muitas das presas das onças são dispersoras de grandes sementes, perder algumas dessas espécies alteraria toda a composição da comunidade vegetal. Isso por sua vez afetaria os animais menores que consomem as plantas (roedores, morcegos e aves), assim como os seus predadores (gatos menores, corujas e gaviões). Ou seja, mexer nos grandes predadores é como empurrar a primeira peça de um dominó – derrube esta, e caem todas as outras em sequência.
As onças, claro, são os predadores de topo quintessenciais na Mata Atlântica. Se Terborgh estiver certo – e tudo indica que está – precisamos não só impedir a extinção das onças-pintadas neste bioma, mas mais que isso, trazê-las de volta para lugares onde não existam mais, para conservar a própria floresta. Só como um ecossistema funcional, com sua riqueza de interações ecológicas, a Mata Atlântica poderia manter a longo prazo a exuberância e a riquíssima biodiversidade que aprendemos a amar, e os serviços ecológicos de bilhões de dólares que ela fornece gratuitamente todo ano a seus milhões de habitantes humanos. A Mata Atlântica é um pacote completo, com onças e tudo; é preciso urgentemente nos conscientizarmos que uma floresta sem bichos não tem futuro.
Trazer as onças de volta para mais lugares da Mata Atlântica é mais fácil na teoria do que na prática. Onças precisam de muito espaço. A área de vida (a área utilizada em suas atividades regulares) de uma única onça-pintada pode atingir algumas centenas de Km2. A área da mata necessária para se ter uma população funcional de onças, portanto, é muito maior que isso. Na Mata Atlântica brasileira, que como vimos, já perdeu 81,5% de sua cobertura florestal original (segundo uma estimativa confiável de Carlos Souza Jr e colaboradores em Remote Sensing, 2020), é difícil achar áreas tão grandes. A maioria dos “grandes” fragmentos remanescentes tem poucos milhares de hectares e não comportariam populações de onças em longo prazo. Lembremos que Paviolo e colaboradores encontraram apenas sete populações de onças no bioma inteiro, e mais cinco áreas com registros ocasionais, de indivíduos de um único sexo, os quais não se podia ter certeza se eram apenas indivíduas errantes. A grande pergunta então é: ainda há algum lugar nesse despedaçado bioma onde se possa colocar onças?
Talvez haja – no mínimo, há uma possibilidade na qual devemos pensar com carinho e com responsabilidade.
Um lugar para as onças viverem
Se olharmos com cuidado as áreas de Mata Atlântica e de onças-pintadas num mapa, vemos que há uma clara lacuna na distribuição dos bichos: a grande mancha de floresta que Paviolo e colaboradores chamaram Serra do Mar Norte. Esta mancha, que inclui partes do litoral norte do estado de São Paulo e do litoral sul do estado do Rio de Janeiro, tem quase 400 mil hectares de Mata Atlântica. A maior parte dessa floresta é protegida por várias Unidades de Conservação, a maior delas o Parque Nacional da Serra da Bocaina, no Rio de Janeiro. Esta grande área foi amostrada com armadilhas fotográficas pelo biólogo Peter Crawshaw, mas não houve registro confirmado de onças-pintadas por lá.
A Serra do Mar Norte fica pouco “acima”, seguindo o litoral, de outra grande mancha, a Serra do Mar, onde, na terminologia de Paviolo e colaboradores, há a terceira maior população remanescente de onças-pintadas no bioma. Além disso, recentemente o pesquisador da Universidade Federal do Paraná Roberto Fusco-Costa e seus colaboradores, usando armadilhas fotográficas, detectaram pelo menos cinco onças na parte sul da Serra do Mar, no norte do Paraná e sul de São Paulo, onde a presença da espécie era desconhecida para Paviolo e colaboradores. Porém, separando a Serra do Mar da Serra do Mar Norte, está a região altamente urbanizada da Baixada Santista, que inclui cidades como Santos, São Vicente e Cubatão. Ou seja, não deve ser nada fácil para as onças passarem de uma área para a outra sem ajuda.
Ter uma grande área é uma condição necessária, mas não suficiente, para que se possa pensar na reintrodução de uma população. Segundo a IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza), a primeira condição para que se possa fazer uma reintrodução é que a causa original de extinção daquela população tenha sido eliminada. Então, é preciso pensar porquê as onças desapareceram da Serra do Mar Norte em primeiro lugar. Como maiores ameaças às onças nessa área – e possíveis razões da sua ausência – Paviolo e colaboradores listam escassez de presas, caça e conversão de habitats. A Bocaina, por exemplo, é uma área com histórico de pouca fiscalização, muita caça e baixas populações das presas da onça.
Esta situação, porém, pode ser vista como um copo meio vazio ou meio cheio. Essa grande mancha de floresta, historicamente protegida pelo relevo acidentado e pela dificuldade de acesso, é vista pela população local como uma área abandonada e inútil, pouco mais que mero fundo cênico para uma das regiões mais bonitas e turísticas do Brasil – a Costa Verde. Se conduzida da maneira correta, com uma boa articulação com a população e as autoridades locais, a volta das onças poderia levar a uma maior valorização dessa floresta pelo público. Já temos a experiência, tanto na Argentina, com Iberá, como no Brasil, com o projeto Refauna e outros, de que a reintrodução de espécies nativas atrai muitíssima atenção da mídia, e tende a gerar um imenso apoio no público.
A própria volta espontânea da onça-pintada para a parte sul da Serra do Mar não parece gerar conflitos com a população local, e está se tornando um atrativo para uma economia local cada vez mais baseada em turismo de natureza em lugares como o PETAR (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira) e a Reserva Natural Salto Morato. Para os moradores locais da Serra do Mar Norte, inclusive as crianças, o regresso das onças pode ser um importante motivo de orgulho de sua região. O ecoturismo centrado nas matas revitalizadas pelo seu mais carismático e misterioso predador, desde que cuidadoso e baseado em boa ciência, pode ser uma significativa fonte de recursos para uma região que já tem os atrativos harmônicos com a natureza nos municípios de Angra dos Reis e de Paraty.
Apenas uma ferramenta em uma ampla estratégia de conservação
A valorização dos bichos vivos pelas comunidades locais, por sua vez, é o mais efetivo reforço de fiscalização que pode existir – o que poderia ajudar as populações de presas a se recuperarem e a conversão de habitats a diminuir. Obviamente, uma eventual reintrodução precisaria ser acompanhada por campanhas de comunicação e consultas com atores locais para ver quais estariam interessados em abrigar a fase inicial do projeto. Obter o apoio de grandes proprietários da região seria importantíssimo. Em Iberá, as reintroduções só funcionaram porque um grande proprietário (Conservation Land Trust) ofereceu suas terras, além de financiar o próprio projeto. Ao atrair atenção e recursos, um projeto assim poderia ajudar a melhorar o manejo das Unidades de Conservação da Serra do Mar Norte, que precisam de uma gestão mais eficiente, pessoal mais capacitado e melhor controle das ameaças. Se para comportar onças a Serra do Mar Norte precisa de melhores condições, a própria volta delas poderia ajudar a reunir tais condições.
Uma eventual reintrodução na Serra do Mar Norte representaria o acréscimo de uma única população de onça na Mata Atlântica, passando de sete para oito populações. Será que isso faria muita diferença? Acreditamos que sim. Em primeiro lugar, o tamanho da mancha permitiria, se os recursos forem adequados, que essa fosse uma das quatro maiores populações. Em segundo lugar, essa população estaria próxima de várias manchas de habitat menores, em Itatiaia, Serra dos Órgãos e Campos do Jordão, onde as onças poderiam estabelecer populações menores por recolonização natural, ou que pelo menos poderiam receber visitas ocasionais de indivíduos transientes. Mais geralmente, claro, na atual situação das onças-pintadas na Mata Atlântica, qualquer população independente a mais é um aumento significativo de segurança perante as incertezas do futuro.Não temos ilusões de que uma medida como essa seja fácil. Nunca será. A reintrodução de uma população é sempre um processo muito difícil, por causa de doenças, dificuldades de bichos de cativeiro se readaptarem à vida silvestre, problemas genéticos e por aí vai. Nem se deve pensar que a reintrodução deva ser a única ou a principal estratégia para a conservação das onças. Manejo em cativeiro, manejo genético de populações, possivelmente envolvendo translocações recíprocas de indivíduos, formação de bancos genéticos in vitro e campanhas de conscientização. Todos precisam ter um papel numa estratégia integrada para alcançar esse objetivo. Por outro lado, se considerarmos que a reintrodução seria factível, ela seria uma ação de grande impacto que poderia ajudar a engajar as populações, as autoridades locais, e o apoio de ONGs e de empresas para a infraestrutura necessária, beneficiando a estratégia de conservação como um todo.
Esteros de Iberá
Será que uma proposta assim pode dar certo? Um precedente fundamental para avaliar uma ideia assim é o do projeto desenvolvido em Esteros de Iberá, na província de Corrientes, pelo Rewilding Argentina. Desde 2007, tem sido reintroduzidas em Iberá várias espécies de grandes animais que estavam localmente extintos – inclusive, recentemente, as primeiras liberações de onças-pintadas na natureza. Um elemento fundamental para que este projeto desse certo, numa região economicamente deprimida da Argentina, foi o apoio da população local à ideia. Para isso, foi crucial que a ideia tivesse sido apresentada, de maneira inovadora, como “produção de natureza” (“producción de naturaleza”) onde o “rewilding” se conectou claramente com a recuperação da cultura local de fortes raízes guaranis e a criação de uma nova economia restaurativa baseada na natureza. A natureza restaurada é vista como um produto, que é produzido pelo trabalho das populações locais e gera emprego e renda para elas. Iberá é uma das grandes histórias de sucesso da conservação na América Latina e indica caminhos promissores para iniciativas similares em outros lugares, desde que tendo em vista cuidadosamente as peculiaridades socioeconômicas e culturais de cada lugar.
A chegada da Década da ONU de Restauração dos Ecossistemas acontece num momento em que a própria ideia de restauração está mudando. Quando pensávamos antes em restauração, pensávamos apenas em restaurar florestas, e não a sua fauna. Mas com a recente percepção de como as florestas tropicais estão, em sua maior parte, esvaziadas de seus grandes animais – e a Mata Atlântica é um bom exemplo – hoje é bem claro que a restauração precisa também incluir a fauna. Isso já vem sendo feito, cada vez mais, aqui e em vários outros lugares, pelos projetos de rewilding e refaunação. Com isso, a década da restauração aparece como uma valiosa oportunidade para que a Mata Atlântica possa ser não apenas conservada, no que ainda resta dela, mas também restaurada em muito do seu antigo esplendor. Não há oposição entre restauração e conservação in situ (na natureza): ambas podem ser componentes importantes e complementares de uma mesma estratégia geral de conservação.
A volta das onças para a grande área da Serra do Mar Norte pode ter um imenso simbolismo, e também ser um importante catalisador. Trazer as onças de volta para governar o mundo delas poderia ajudar a melhorar o nosso – ao apontar um caminho verdadeiro pelo qual podemos conciliar a conservação da biodiversidade com a melhoria da vida das pessoas.
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O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.
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