Reportagens

Empresa que disse cancelar usina próxima à área da ararinha-azul mantém estudos para licenciamentos

O levantamento para um parque eólico e a autorização para uma usina fotovoltaica ainda constam em sistema de órgão ambiental baiano

Aldem Bourscheit ·
8 de agosto de 2022 · 2 anos atrás

Há um mês, uma empresa do ramo de energia prometeu cancelar o projeto de um complexo eólico ao lado de área onde são reintroduzidas ararinhas-azuis, no sertão baiano. Mas, estudos para o empreendimento seguem ativos. No sistema do órgão ambiental do estado, também corre o licenciamento para uma usina fotovoltaica, na mesma localidade. O desmatamento e a operação das geradoras podem afetar espécies raras da Caatinga.

A Voltalia comunicou em 6 de julho que teria desistido de implantar uma usina eólica de 288 Megawatts com 48 turbinas na Serra da Borracha, em Curaçá, no sertão baiano. Na época, a empresa afirmou numa página de petições públicas “que não possui e nem tem intenção de iniciar projetos eólicos” na região. O local é vizinho de áreas protegidas onde são soltas ararinhas-azuis criadas em cativeiro. A espécie foi extinta na natureza em 2000.  

Todavia, até o fechamento da reportagem o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) não confirmou ter sido notificado quanto à desistência da usina em Curaçá. O Plano para Levantamento de Fauna Silvestre do projeto segue ativo junto ao órgão. Além disso, o gerente de Projetos da Voltalia, Francisco Petribu, afirmou no dia 12 de julho à Rádio Euclides da Cunha FM que o Complexo Eólico Serra da Borracha está “suspenso”, não cancelado. 

Pesquisadora do Núcleo de Reforma Agrária da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Lorena Izá Pereira avalia que o encerramento do parque eólico em Curaçá deveria ser oficializado pela empresa junto ao Inema. Além disso, as regras ambientais vigentes abrem espaço para um licenciamento mais criterioso desses projetos junto a territórios onde vivem espécies raras ou ameaçadas de extinção.

“Uma resolução do Ibama de 2014 permite que os órgãos ambientais determinem estudos completos de impacto ambiental dependendo de parâmetros como porte e localização das usinas eólicas. Todavia, muitos estados seguem liberando esses projetos com relatórios ambientais simplificados para atrair investimentos, como se fossem de baixo impacto”, destacou a geógrafa.

Ararinhas-azuis no criadouro científico de Curaçá (BA). Foto: Association for the Conservation of Threatened Parrots.

A ararinha-azul foi varrida da natureza por desmatamento, caça e tráfico. Oito primeiras aves criadas em cativeiro foram soltas para repovoamento de um refúgio de vida silvestre em Curaçá e Juazeiro, na Bahia, em junho. A reserva é rodeada por uma área de proteção ambiental (APA), também federal. Somam juntas 1.200 km², cerca do dobro da área da capital Salvador. As áreas protegidas são cortadas pela rodovia BA-120.

Procurada pela reportagem, a Voltalia mais uma vez se negou a conceder entrevista sobre seus projetos no sertão baiano, autorizados por órgãos públicos. Comentou apenas que “conforme falamos há algum tempo, a Voltalia cancelou o projeto na Serra da Borracha”. Também é da empresa uma usina eólica entre Canudos, Jeremoabo e Euclides da Cunha, a 200 km de Curaçá. Na região vive a também ameaçada arara-azul-de-lear.

Serra precisa de proteção

O banco de dados do Inema mostra que, em fevereiro deste ano, foi publicada a Licença Prévia para uma usina fotovoltaica de 193 Megawatts da Voltalia, vizinha ao projeto eólico. Conforme parecer do órgão ambiental, os projetos têm “sinergia”, estão associados. A fábrica de energia solar está a 1.800 metros dos limites da APA da Ararinha-azul. O território de influência indireta do empreendimento é de quase 110 km².

O documento aponta que a implantação da usina fotovoltaica eliminará ao menos 452 hectares de Caatinga na Serra da Borracha. Passando dos 850 metros de altitude, a área tem ‘prioridade extremamente alta de conservação’ e deveria ser enquadrada em unidade de conservação de Proteção Integral, reconhece o Inema. 

Na morraria vivem espécies raras e protegidas em lei. Entre elas figuram a onça-parda, caititu, cachorro-do-mato, sagui-da-cara-preta, mocó, tatu-bola e morcegos. Igualmente a umburana-de-cheiro, licuri, angico, aroeira, cactos e a orquídea chuva-de-ouro, protegida pela Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites). 

Conforme Izá Pereira, da Unesp, o número de projetos eólicos e fotovoltaicos dispara desde 2010 e ainda são vistos como de reduzido impacto socioambiental. “Seus prejuízos não eram conhecidos de início e precisamos reduzir a geração com hidrelétricas e combustíveis fósseis”, ressaltou. Mas as energias alternativas têm impactado severamente ambientes e populações, sobretudo no interior do Nordeste.

“Grilagem, arrendamento e comércio de terras por baixo valores, aumento de preços, ruído excessivo e presença de pessoas estranhas alteram a vida de inúmeros povoados. Empregos são gerados sobretudo na construção das usinas. Desmate, morte de aves e outras espécies são comuns. Comunidades e cientistas têm que ser mais ouvidos e atendidos no planejamento dessas usinas”, ressaltou. 

Entidades civis e pesquisadores compilaram prejuízos socioambientais de empreendimentos eólicos e solares, pequenas centrais hidrelétricas e linhas de transmissão em 37 municípios baianos. Conforme o levantamento, os projetos ocupam e degradam áreas preservadas, como topos de serras, bem como vulneráveis à crise do clima, como a Caatinga. 

“Se examinarmos (…) os regulamentos relacionados com a indústria da eletricidade (…) é possível determinar a existência de um sistema estrutural que permite a expropriação de recursos públicos, bens públicos, territórios e direitos de comunidades rurais e povos tradicionais, revelando assim uma dominação corporativa do setor elétrico”, descreve o dossiê ‘Energias Renováveis na Bahia: Caminhos e Descaminhos’.

O Brasil é o maior mercado das fontes solar e eólica no hemisfério sul, contou uma reportagem do The Intercept Brasil. A capacidade fotovoltaica instalada no país cresceu 30% no primeiro semestre de 2022 em relação ao período anterior. O salto ocorreu sobretudo no Nordeste. Um dos maiores complexos eólico-solares mundiais é da francesa Voltalia, construído no Rio Grande do Norte para gerar 2,4 Gigawatts.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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