A tramitação no Congresso do Projeto de Lei sobre Gestão de Florestas Públicas tem esbarrado em percalços na Câmara dos Deputados, mas nada de tão grave que não pudesse ser resolvido com um bom acordo. Houve choro por conta do fim do prazo para apresentação de emendas. Ele acabou na sexta-feira, dia 22 de abril. A liderança da comissão que aprecia o texto em regime de urgência negociou com o governo e prorrogou-o por mais uma semana. Beto Albuquerque (PPS-RS), presidente da comissão, estima que ela vota o projeto até o dia 12 de maio. Na semana seguinte, ele deve estar na pauta para a apreciação do plenário.
Problemas mesmo, o projeto do governo está enfrentando onde ele, se for aprovado, começará a ser aplicado: em Novo Progresso, Oeste do Pará, uma das principais fronteiras do desmatamento na Amazônia. Ao longo de dois dias de consultas públicas no município, Brasília teve boa medida do grau de oposição aos seus planos que será obrigada a enfrentar por lá. Realizadas entre 21 e 22 de abril, as consultas nem eram para debater o projeto de lei. Deveriam discutir o asfaltamento da BR-163, uma unanimidade local. “Ninguém lá discorda do asfalto”, diz Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que foi às duas reuniões. As 1 mil e 200 almas que compareceram aos encontros usaram a ocasião para mudar a pauta e colocaram o projeto de lei na berlinda. Os funcionários do governo presentes ouviram tudo o que não queriam.
O plenário, controlado por ruralistas, insistiu na necessidade de regularização da ocupação fundiária através da titulação de terras, deixou claro que não gosta da idéia de gestão governamental de terras públicas e, sobretudo, rejeitou a proposta de que a área de Novo Progresso seja uma prioridade para a implantação de um modelo econômico sustentável na Amazônia. Ao anunciar o projeto em fevereiro, na esteira do assassinato da freira Dorothy Stang, o governo decretou limitação administrativa em 8,3 milhões de hectares na região do município. Na prática, funciona como uma zona de exclusão. Dentro dela, nada pode ser feito.
A oposição dos ruralistas até era esperada. Surpreendente mesmo foi a reação dos madeireiros presentes ao encontro, até porque no governo federal ninguém duvida que o projeto vai beneficiá-los, criando um marco regulatório que lhes permita continuar explorando a floresta. “Alguns embarcaram nesta canoa, vocalizando a mesma posição do pessoal da pecuária”, conta Barreto. “Outros ficaram em silêncio”. O governo acompanhou os passos da oposição nos dias que antecederam as reuniões e descobriu que ela estava muito bem organizada. “Fizeram reuniões prévias, inclusive com o pessoal da madeira. Apararam arestas e fecharam posição. Chegaram na reunião dispostos a garantir que seriam os únicos ouvidos”, conta funcionário de governo que teve acesso a informações vindas da Polícia Federal.
Talvez essa determinação justifique o silêncio de parte dos madeireiros. “Suspeitamos que houve intimidação”, continua. No caso de Novo Progresso, há razão de sobra nesse momento para qualquer um que trabalhe com madeira se sentir intimidado pela força de quem ocupa vastas extensões de terra. Uma delas é até explícita. Desde que os planos de manejo florestal começaram a ser suspensos na região, no ano retrasado, e principalmente depois do decreto de limitação administrativa de fevereiro, a pouca madeira que há está saindo dos lotes ocupados por grileiros, pecuaristas ou ambos. Nessas condições, difícil comprar briga com eles.
Tasso Azevedo, diretor de florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), estava em Novo Progresso e ficou preocupado com o grau de desinformação dos madeireiros sobre o texto do projeto. “Ninguém leu. Ninguém gostou”, diz um colega de Azevedo. Não tinha quem soubesse, por exemplo, que o prazo para emendas fora prorrogado. Entre eles, havia também uma certa ansiedade quanto ao presente e uma desconfiança sobre o futuro. No longo prazo, principalmente os pequenos e médios produtores temem que num regime de concorrência por concessões florestais, eles acabem alienados do processo por madeireiras com mais escala e forçados a vender ou abandonar suas operações. No curto prazo, apavoram-se com a falta de um regime para regular a transição até a entrada em vigor do projeto, caso o Congresso o aprove.
Se tudo caminhar em Brasília como deseja o governo, e rápido, a nova letra da lei só poderá ser aplicada às florestas em terras públicas a partir do ano que vem. A questão é o que vai acontecer com a safra de madeira em 2005 e 2006. Em Novo Progresso, a solução desta dúvida é quase uma questão de vida ou morte. A cidade está sob regime de calamidade pública e vive neste momento crise sem precedentes. Uma de suas principais atividades econômicas, a madeireira, tem pouco estoque para operar e portanto anda com baixíssima oferta de emprego. O governo federal começou a distribuir cestas básicas no município e a companhia aérea que fazia vôos diários de Santarém, também no Pará, para lá, foi forçada a reduzir a freqüência para apenas 3 vôos semanais.
Nesse contexto, diz Barreto, do Imazon, não é difícil entender por que as consultas em Novo Progresso deixaram à mostra tamanha insatisfação entre os madeireiros. “Eles estão trocando o que conhecem pelo que ainda é duvidoso”. O governo até esperava alguma resistência aos seus planos na região e preparou-se para tentar diminui-la. No aspecto fundiário, por exemplo, acenou com a possibilidade de regularizar, através da titulação, lotes ocupados irregularmente com até 400 hectares. Imaginou que pelo menos do ponto de vista quantitativo, roubaria aos pecuaristas o apoio de um bom númnero de pessoas. O problema é que ainda sobrou muita gente ocupando lotes com 2.500 até 15 mil hectares. Foi esse pessoal que dominou a pauta das consultas em Novo Progresso.
“Nunca vi tanto 4×4 junto”, lembra um funcionário do governo federal que foi às duas reuniões, realizadas na nave da igreja da cidade, ainda em construção. O tom hostil das consultas disparou o alarme na cabeça de Azevedo, responsável no MMA pela condução do processo de aprovação do texto no Congresso, e ele convocou encontro exclusivo com os madeireiros da região na noite entre os dois dias de consulta pública. Nela, Azevedo disse que um dos pontos do projeto é justamente permitir a exploração dos recursos naturais da floresta sem titulação e que isso seria a salvação da indústria na região.
“Ficar contra o projeto significa para vocês assinar um atestado de óbito”, disse-lhes Azevedo, exortando-os a se manifestar oficialmente a favor junto ao Congresso e apoiando a idéia de fazer de Novo Progresso área prioritária para sua implantação. Se teve sucesso na sua empreitada para virar o jogo, só a partir da última semana de abril é que vai dar para saber. Mas ele não tinha outra opção a não ser tentar reverter o quadro. Deixar as coisas como estavam poderia lhe criar dores de cabeça em Brasília. Deputado é sensível ao eleitor. “Se ele sabe que os locais são contra, dificilmente vota a favor”, diz Barreto.
O drama de Azevedo é que pelo menos sobre o tal regime de transição, o governo se sente de mãos atadas para tomar um rumo. Qualquer que ele fosse, teria que constar do próprio texto do projeto de lei para ser posto em prática. Há duas alternativas para viabilizar a idéia. Incluir no projeto área definida e pré-limitada para o primeiro ano sem que houvesse necessidade de aprovação dos planos de outorga. Ou então explicitar no texto áreas que já estão prontas para planos de manejo e deixar que a extração da madeira, por enquanto, acontecesse nelas. Existem 3 nessas condições. Jamari, em Rondônia, e Tapajós e Carajás, no Pará. O problema é que o governo federal prefere que essas modificações, se forem feitas, o sejam por iniciativa do Congresso e não pela sua própria. No clima de confronto que se instalou entre o Executivo e o Legislativo, não é de bom alvitre mexer com as suceptibilidades de independência de deputados e senadores.
A oposição em que o governo esbarrou em Novo Progresso também apareceu na Consulta pública realizada em 19 de abril em Brasília com representantes de entidades de classe. Nela, compareceram instituições do porte da Confederação Nacional das Indústrias (CNI), da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e os principais representates de madeireiros na Amazônia. A delegação da CNA insistiu na titulação de terras, mas essa não foi a questão mais discutida do encontro. A maioria dos presentes queria mesmo era garantir que haverá dinheiro para montar a estrutura que o projeto precisa para funcionar. Havia uma unanimidade quanto à necessidade de o Serviço Florestal Brasileiro, órgão que vai cuidar da gestão e das concessões para manejo, já estar criado, e com corpo próprio de funcionários, quando tudo virar lei. Pediu-se também que o plano de outorga no projeto obrigue o governo a destinar orçamento, com um ano de antecedência, para as atividades de monitoramento e fiscalização, que seriam levadas a cabo pelo Ibama.
Ambas as demandas trazem de volta à mesa do Executivo disputa que tinha sido resolvida há muito tempo com uma canetada do ministro José Dirceu. Estavam no texto original do projeto do MMA enviado à Casa Civil. Dirceu cortou-as do palavrório que acabou sendo enviado ao Congresso. É provável que a decisão seja rediscutida. Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, continua internada por causa de um infecção e deve permnecer no hospital até sexta, dia 30 de abril. Está de cama, mas não está fora de combate, garantem assessores. Pelo celular, meteu-se até o pescoço na briga para fazer passar seu projeto. Mantém-se informada, tenta convencer os descrentes e dá ordens aos subordinados. Continua achando que ganha a parada.
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