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Piloto do Greenpeace na Amazônia já vôou para o mal e o bem na região. Trabalhou para garimpeiros, depois madeireiro ilegal e hoje ajuda a proteger a floresta.

Manoel Francisco Brito ·
24 de maio de 2005 · 19 anos atrás

“Ele sabe como ninguém descobrir, daqui de cima, desmatamento lá embaixo”, diz Andrew Murchie, responsável pela área de geoprocessamento e mapas do Greenpeace, sentado na cadeira de co-piloto de um Cessna Caravan que corta os céus do Mato Grosso. O “ele” a quem se refere está ao seu lado, no controle do manche do avião. Chama-se Fernando Bezerra, tem 43 anos de idade e há cinco é o piloto oficial da ong na Amazônia. Seu olhar de lince para achar árvore sendo cortada mesmo onde o dossel da floresta lhe dá aparência de intacta, Bezerra desenvolveu trabalhando para seus atuais “inimigos” – os madeireiros ilegais – no estado do Amazonas.

No Norte, Bezerra chegou no final dos anos 80, vindo do Rio de Janeiro. “Lá eu não tinha emprego”, lembra. Alistou-se primeiro a serviço do garimpo na região. Ganhava 20% do custo total de cada vôo que fazia transportando de mantimentos a pessoas, de equipamento a ouro. Tem evidente ponta de saudade daquela época. “Você precisava realmente saber voar. Para ir de um garimpo ao outro, esperava-se a chegada de outro piloto que tivesse estado onde você ia, para te dizer o rumo em que se devia colocar a proa do avião e o tempo que levava para chegar até lá”, recorda. “Aí você fazia os descontos do vento e rezava para achar a pista. Hoje, com o GPS, ninguém precisa mais entender de navegação”.

Foi trabalhando para o garimpo que Bezerra passou pela primeira vez em Novo Progresso, no sudoeste do Pará. No dia 17 de maio, ao sobrevoá-la mais uma vez mostrando o desmatamento no seu entorno, ele não resitiu a mais uma recordação. “Vim aqui pela primeira vez há dez anos. Isso era uma vilinha. Tinha mato para todo o lado”, diz. Foi perto de lá, em Moraes de Almeida, que Bezerra caiu de avião pela segunda vez na sua vida – a primeira foi no interior de São Paulo. Aconteceu pouco depois de decolar de um pista aberta por garimpeiros. O motor morreu. “Fui planando até chegar na copa das árvores. Aí entreguei o avião a Deus”, diz. O resgate demorou 3 horas, mas Deus cuidou dele direito. Saiu ileso.

Deus, aliás, é velho companheiro de agruras aéreas de Bezerra. “Já quebrei muito avião no garimpo”, conta. Pistas curtas como as abertas pela “engenharia” dos garimpeiros, com árvores altas à sua volta, são um convite diário a desastres aéreos. Eram carinhosamente apelidadas de “caixões”. “Uma vez que você entrava no caixão, se algo estivesse errado, era mais seguro deixar o avião bater nas árvores do que arremeter para tentar novo pouso”, diz. Depois de passar um tempo no garimpo, Bezerra, que acabou aprendendo a pilotar hidroaviões na “marra”, como ele diz, justamente por conta desta habilidade acabou contratado para trabalhar para uma madeireira, a OAL.

O dono entrava dentro do hidroavião com sacos de dinheiro e eles decolavam de Manaus em direção às áreas onde ele tinha gente trabalhando. “O dinheiro era para fazer pagamentos e ele aproveitava a parada para fazer a contagem de toras”, diz. Era trabalho arriscado, cheio de ilegalidades, e por conta disso Bezerra recebia salário de fazer inveja a muito brasileiro, 5 mil dólares mensais. Foi aliás por conta de sua capacidade de tirar hidroaviões da água que o Greenpeace acabou topando com ele.

A ong tinha acabado de receber um avião anfíbio – um velho Cessna 206, fabricado nos anos 80 – e precisava achar alguém que pudesse pilotá-lo. Veio uma pilota de fora do país para fazer a seleção dos candidatos. Bezerra acabou sendo o escolhido para ser o comandante de uma aeronave que, por conta de sua dificuldade em alçar vôo, recebeu de índios na região o apelido de “Pata Gorda”. A mudança de lado não tornou sua vida mais tranquila. “Já passei cada sufoco trabalhando aqui no Greenpeace que só vendo”, diz ele. As ameaças, principalmente de gente ligada aos madeireiros, são freqüentes.

“Em geral vêm pelo telefone. Dizem que vão me matar, me bater. Às vezes ameaçam a minha família”, diz Bezerra com ar de quem acha que isso faz parte do jogo. O Greenpeace faz um trabalho agressivo na região. Os madeireiros, idem. Ele diz que um dos piores momentos que já passou desde que entrou no Greenpeace aconteceu em 2002, no rio Jauruçu. Os moradores que pressionavam pela criação da Reserva Extrativista Verde Para Sempre, no Pará, resolveram fazer um protesto contra a exploração ilegal de madeira no local e bloquearam a passagem de balsas de madeireiros. Fizeram uma espécie de “muro” de margem a margem na superfície da água, com 80 canoas.

Depois de dias de confronto entre manifestantes, equipe do Greenpeace e madeireiros, estes últimos resolveram jogar suas balsas contra os barquinhos. Diante da ameaça, decidiu-se suspender o bloqueio e, para proteger a turma que remava nas canoas, Bezerra, tendo a bordo o coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace, Paulo Adário, posicionaram o Pata Gorda entre elas e as balsas. Os madeireiros resolveram então sair no encalço do avião do Greenpeace. Bezerra tentou decolar, mas os flutuadores estavam cheios de água e o avião não levantou. “Andamos uns 15 minutos como se aquele avião fosse um barco lento, na base do tuc-tuc”, conta Adário. Quando entraram no rio Tapajós, uma embarcação do Greenpeace postou-se entre eles e as balsas e deu-lhes a proteção necessária para que pudessem bombear a água para fora dos flutuadores e decolar.

Atualmente, Bezerra está de asa nova. Há dois meses, por cortesia de um doador inglês, o Greenpeace do Brasil recebeu um Cessna Caravan tinindo de novo. O piloto foi aos Estados Unidos fazer um curso para aprender as manhas do novo avião. Ele é maior, e evidentemente mais seguro, que o velho Pata Gorda. Tem autonomia para sete horas de vôo. Nem por isso, Bezerra mudou seus hábitos de segurança. Há lugares onde o pessoal da ong é tão visado que ele nem pousa. “Novo Progresso e São Félix do Xingu, por exemplo. Em Itaituba, se for preciso, eu até pouso. Mas não pernoito de jeito nenhum”. Do mesmo modo, Bezerra é cauteloso em relação aos seus planos de vôo. Se vai passar por área muito conflagrada, submete às autoridades em terra um plano que depois ele já sabe que mudará quando estiver em rota. “Passo a informação de mudança pelo rádio. Em certos lugares aqui, você não deve deixar nada por escrito”, diz, escolado.

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