Reportagens

Amazônia na Mata Atlântica

A floresta está crescendo no meio das seringueiras da pneumática Michelin, na Bahia. O meio ambiente agradece tanta preocupação com a imagem da empresa.

Andreia Fanzeres ·
3 de junho de 2005 · 19 anos atrás

Do alto, o sul da Bahia é um verde só. Mas as aparências enganam. Muito do que se vê é plantação. Tem cacau, dendê, banana, coco e seringueira. Ah, e Mata Atlântica. Um pouco do que restou dela vem sendo adquirido pela pneumática Michelin, dona de uma enorme fazenda de seringueiras e de uma usina de beneficiamento de borracha processando a todo vapor quase 30% da produção nacional em Ituberá.

Por algo entre 500 e mil reais, a empresa compra hectare por hectare de floresta, aumentando a área protegida e o interesse de organizações ambientalistas no estudo da biodiversidade recém-salvaguardada. Para a Michelin, isso também pode dar lucro.

Com cada vez mais freqüência, os funcionários da empresa recebem grupos de pesquisadores que tentam avaliar a riqueza das áreas de mata atlântica. De vez em quando, em passeios despretensiosos, esbarram com espécies raras. Foi o presente que caiu do céu para o ornitólogo Pedro Lima, no início do mês de maio. Ele conseguiu fotografar pela primeira vez no sul da Bahia o Inhambu-guaçu (Crypturellus obsoletus) (foto)espécie típica da região sudeste, até então reconhecida apenas pelo seu canto. Quando menos esperavam, os funcionários da Michelin que faziam a limpeza de uma trilha ficaram a poucos centímetros do ninho da ave. Chamaram o pesquisador, que registrou o momento. Dias depois, nasceram os filhotes. A alegria era evidente, mas o sentimento era também de orgulho. Foi mais um sinal de que os efeitos no novo empreendimento estão dando resultado.

Em 2004, biólogos do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais do Sul da Bahia (Iesb) tiveram sensação semelhante. Passaram mais de seis meses realizando um levantamento de macacos-prego de peito amarelo na região, que não foi escolhida por acaso: é considerada uma das maiores áreas preservadas da Bahia. “Mesmo ali, a densidade era baixíssima. Imagine nas áreas desprotegidas!”, diz o biólogo Gustavo Canale. A situação do macaco-prego de peito amarelo vale para outros animais. “Já temos certeza de que a área da Michelin é refúgio para mais espécies ameaçadas importantes, como a preguiça-de-coleira e o mutum”, cita. O pesquisador Pedro Rocha, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a região abriga também tatus-galinha, veados, caititus e suçuaranas. Até agora, foram catalogadas cerca de 200 espécies de aves (15 delas ameaçadas de extinção), 180 tipos diferentes de árvores e 78 de mamíferos.

Com cerca de 1.500 hectares de mata nativa, ou 16% de toda a área da Michelin, esse ainda é um refúgio em desenvolvimento. Apesar da localização privilegiada da reserva – fica bem próxima a outros fragmentos relativamente preservados, como as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) do Pratigi, da Baía de Camamu, de Tinhaé/Boipeba, de Guaibim e da Pancada Grande –, dentro da propriedade da Michelin as ilhas de mata atlântica estão separadas pelas plantações que movem seu principal negócio: a produção de borracha para fabricar pneus. Os seringais estão por toda parte, mas alguns deles têm os dias contados. “Queremos fazer um corredor ecológico juntando os nossos três fragmentos de mata nativa. Para isso, estamos abandonando antigas áreas de seringais e a vegetação tem se restabelecido rapidamente”, explica o engenheiro agrônomo Paulo Roberto Bomfim.

A multinacional francesa herdou florestas e seringais da concorrente Firestone, de quem comprou o terreno na década de 80. Por isso, não precisou se dar ao trabalho de derrubar mais nada. A nobre iniciativa de regenerar mata nativa com corredores ecológicos foi possível graças ao avanço tecnológico. A empresa desenvolve uma pesquisa genética única no mundo, conseguindo tornar as seringueiras mais produtivas e resistentes ao popular “mal das folhas”. A doença é provocada pelo fungo Microcyclus ulei e se dispersa ao sabor do vento. Segundo o gerente de pesquisa e desenvolvimento Carlos Mattos, todas as seringueiras da América do Sul estão suscetíveis a essa praga, que ataca as folhas e enfraquece as árvores. Mal comparando, é como se fosse Aids. “Ela nunca é a causa da morte da planta, mas deixa a seringueira tão vulnerável que ela sucumbe por outras razões”, conta o pesquisador.

O fungo começou a incomodar no início do século XX, quando as primeiras seringueiras foram retiradas da floresta amazônica para plantações em série. Pelo fato de a praga ser facilmente transmissível, impregnando até nas roupas, os pesquisadores da Michelin são obrigados a ficar em quarentena na França quando fazem visitas às plantações da multinacional na Ásia, onde o fungo ainda não chegou. “Se aterrissarmos lá com o Microcyclus (foto), a destruição vai ser total. Vamos ter sido os responsáveis pela crise na Ásia!”, brinca Mattos, falando sério.

O pesquisador explica que, por conta da ação desse fungo, o Brasil só consegue ser responsável por 1% da produção mundial de borracha natural. Curiosamente, a espécie amazônica sobrevive à presença do fungo quando está em ambientes de temperaturas mais amenas. Por isso, São Paulo é atualmente o estado líder no cultivo da seringueira.

A única opção para a Michelin ter alguma produtividade na Bahia é manipular geneticamente as mudas. A empresa cruza espécies resistentes ao fungo desenvolvidas no Brasil com outras vindas da Ásia e cerca de 45 mil polinizações são realizadas todos os anos em suas plantações em Itiquira, Mato Grosso. Depois, as sementes vão para Ituberá na Bahia, onde lascas das novas plantas passam por mais estudos e são enxertadas em outros exemplares. A diferença na saúde de uma árvore clonada em relação a uma não-clonada pode ser brutal (foto).

Apesar de ainda não ter conseguido desenvolver um tipo ideal de seringueira – ainda estão previstos 14 anos de pesquisa –, o aumento da produtividade já está consolidado. Não à toa, a Michelin dá-se ao luxo de reduzir suas áreas de plantação e buscar, ano após ano, maior reconhecimento como empresa ambientalmente responsável. Além de comprar novas áreas de mata atlântica para serem incorporadas ao corredor ecológico, a multinacional cedeu cinco dos nove mil hectares de sua fazenda para médios proprietários, que se comprometeram a vender-lhe a produção de borracha, e participa de um programa de agricultura familiar do governo do estado que atende 40 produtores rurais da região. Em 2005 eles receberam 20 mil mudas de seringueiras modificadas pela Michelin. Ano que vem, serão 400 beneficiados e dez vezes mais plantas doadas. A garantia de compra da borracha natural é dada pela empresa com uma condição: ninguém desmata. “As plantações tomam apenas o espaço de áreas de pasto ou capoeiras”, diz Ivo Cairo Junior, gerente de operações agrícolas da Michelin. Além disso, todos são orientados a lidar de forma mais produtiva com a seringueira.

“Para chegar aos 30 anos ou mais de produção, os agricultores têm aulas teóricas e práticas por quatro semanas aqui na escola de sangria”, diz Bomfim. Nessa escola, todos os funcionários, chefes e até os visitantes experimentam o trabalho. E quem acha que fazer um corte por semana em cada lote de seringueiras é coisa leve, precisa vivenciar uma aula do professor Antonio Paulo da Silva, há 22 anos no ofício. Ele ensina como sangrar 900 árvores por dia segundo regras bastante estritas.

Quando são aprovados na escola, os produtores que são funcionários da Michelin entram na rotina. Percorrem as infindas estradas de barro que cortam um mundo de seringueiras (sem qualquer sinalização) para iniciar o trabalho por volta das 6h da manhã, às vezes mais cedo. O cheiro forte da borracha acumulada nos recipientes acoplados às árvores já não incomoda os sangradores, que aprenderam a lidar não só com a seringueira, mas com a bananeira e o cacaueiro, tudo no mesmo espaço. “As pressões ambientais e a necessidade de diversificação da renda do produtor rural nos motivaram a investir no esquema de consórcios”, explica Mattos. “Como o cacau exige um solo mais rico em nutrientes, a seringueira, que dá a ele a sombra de que necessita, também é beneficiada. Além disso, o cacau inibe o crescimento de ervas daninhas”, lembra.

Bomfim diz que as ações aumentaram a conscientização ambiental na região. “Todas as margens de rios têm mata nativa e, com o projeto do corredor ecológico e da preservação da cachoeira de Pancada Grande, todos estão bem mais envolvidos com o meio ambiente”, diz.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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