Reportagens

Caminhos cruzados

Para começo de conversa, em comum eles só tinham o nome. Nem a idéia que cada um trazia sobre conservação da natureza era a mesma, no dia em que o...

Marcos Sá Corrêa ·
15 de julho de 2005 · 19 anos atrás

Para começo de conversa, em comum eles só tinham o nome. Nem a idéia que cada um trazia sobre conservação da natureza era a mesma, no dia em que o empresário Miguel Gellert Krigsner chamou o engenheiro florestal Miguel Serediuk Milano para falar do que seria, em pouco tempo, a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. O próprio encontro tinha tudo para dar errado. O assunto que iriam discutir estava abafado pelo governo Fernando Collor, que da estréia ao impeachment do presidente monopolizou as atenções nacionais naquele começo de década. E os dois interlocutores eram genuínos representantes de um Brasil que estava acabando – o jovem país de imigrantes onde as novas gerações se sentiam convidadas a trocar o destino pela biografia pessoal. Nisso também eles estavam fora de época.

Miguel Milano vinha do campo. Crescera em Palmital, vendo as Florestas com araucárias afundarem no horizonte do Paraná, como se o interior estivesse crescendo para baixo. Miguel Krigsner era urbano, herdeiro do atavismo que condenou os judeus a colher na cidade a vida que não podiam ter no campo. Seu pai viera para a América do Sul no começo dos anos 1950, escapando de uma Polônia arruinada pelo nazismo. Chamava-se Jacob.

Esse país era então um ponto de encontro nos Andes para foragidos do holocausto, como o melhor anfitrião de refugiados judeus no continente. Sua mulher, vinda da Alemanha, havia chegado lá antes da Segunda Guerra, com 12 anos de idade. Anneliese era professora de jardim de infância em La Paz, quando encontrou o sobrevivente de uma prole numerosa que as câmaras de gás reduziram a três irmãos. E seu futuro marido desembarcou na Bolívia falando só polonês e iídiche. Tinha o primeiro ano primário e 20 dólares. Mas sabia comprar, vender e fazer amizades à primeira vista.

Anneliese era filha de um eletricista que conheceu Jacob numa mesa de jogo e o levou para o almoço de domingo. Três meses depois, casava a filha com o imigrante sem eira nem beira. Em nove meses exatos, nascia em La Paz Miguel Krigsner, que viveu na cidade até os 11 anos. Como Anneliese tinha problemas cardíacos, os médicos lhe recomendaram evitar a altitude de La Paz. O marido carregava os fantasmas da guerra, que as revoluções da política boliviana alvoroçavam. Assim, em 1960, a família mudou-se para Curitiba.

Miguel Krigsner desceu do trem no Brasil convencido, pelo primeiro contato com o país durante a baldeação em Corumbá, de que estava numa terra estranha de língua incompreensível. Mas seu pai se aclimatou depressa e logo montou uma pequena loja de roupas na Rua XV de Novembro. Anneliese morreu cedo, de câncer, aos 33 anos. E o filho entrou na adolescência como quem não sabe o que quer fazer da vida. Foi mau aluno no colégio. Só se inscreveu na faculdade de Farmácia depois que “uns 20 vestibulares” o convenceram de que não iria mesmo passar em Medicina. No curso, não demorou para aprender que não tinha a menor queda para análises clínicas. Dada a aversão pelo lado mórbido das provetas, sobravam-lhe como opções usar o diploma nas indústrias de alimentos, remédios ou cosméticos. Apostou na terceira. Em 1977, seis anos depois de se matricular na faculdade, inaugurou O Boticário, modesta farmácia de manipulação.

Em 1990, quando chamou Milano para conversar, a empresa já era uma fábrica com fôlego para vender seus produtos em mil lojas de franqueados. Miguel Krigsner achou que tinha porte para concretizar uma idéia que ruminava desde os tempos de estudante, quando freqüentava palestras do agrônomo José Lutzemberger, pioneiro da pregação ecológica no Brasil. “Vamos ver como a gente consegue fazer alguma coisa pelo meio ambiente, mas que não seja marqueteira”, comunicou ao publicitário Eloi Zanetti, na época diretor de O Boticário.

A intenção podia não ser marqueteira, mas Eloi era homem de marketing. E pegou a novidade no ar. “Nossa marca é de produtos ligados à natureza”, ele disse. Era isso que sugeriam as pesquisas feitas com os consumidores, talvez influenciados pelo creme à base de algas marinhas, que foi um dos primeiros sucessos comerciais da marca. Mas Krigsner foi além: “Acho que a gente poderia pegar um modelo que vi em Israel, onde as pessoas se presenteiam com certificados de que mandaram plantar uma árvore”. Trocando em miúdos, ele queria que O Boticário prometesse aos fregueses plantar uma árvore para cada produto vendido em suas lojas.

A firma mal havia passado de sua primeira década. Crescera depressa, sob o olho tão direto do dono que até hoje os funcionários chamam Krigsner de “Miguel”. Era um corre-corre na empresa, cada vez que Krigsner e Eloi acordavam inspirados. Tudo lá acontecia do dia para a noite. Mas dessa vez Eloi se assustou. “Para mim, pareceu um negócio meio absurdo, porque tínhamos, na ocasião, entre 400 e 600 mil clientes por mês. Logo, teríamos de fazer uma floresta muito grande, se fôssemos plantar árvore por toda essa gente”, diz. O publicitário havia trabalhado no Bamerindus, banco que financiava reflorestamento. Portanto, sabia mais ou menos o tamanho da empreitada em que o patrão queria se meter.

Foi atrás de um especialista, indicado por Flávio Zanette, um agrônomo especializado em reprodução de araucária. “E por meio dele chegamos a Miguel Milano”, diz Eloi. “Não pude nem apresentá-lo direito, porque não sabia dizer quem era”, lembra. E apresentar Milano não é mesmo brincadeira. Ele é filho de uma ucraniana, que chegou ao Brasil com meses de idade, com um brasileiro de primeira geração, que descendia de italianos e espanhóis. A família materna radicou-se em Concórdia, um núcleo colonial em Santa Catarina onde as crianças eram alfabetizadas em alemão. De lá, a onda do café nos anos 1940 levou-a para Rolândia, no norte do Paraná, onde o cadinho étnico das frentes de povoamento uniu-a a um policial chamado Miguel. Marja casou-se com esse descendente de italianos e espanhóis aos 17 anos e, temendo que o emprego do marido fosse o atalho mais curto para a viuvez, estimulou-o a assumir o cartório de um distrito quase no fim do mundo, e Miguel Milano nasceu em Palmital, uma cidade que ainda não passava dos 300 habitantes.

Não era o melhor lugar para ganhar a vida com o registro de nascimentos. Mas não poderia ser mais indicado para a formação de um ambientalista. O menino cresceu numa terra onde podia caçar, pescar, tomar banho de rio, colher pinhão, pitanga, jabuticaba, uvaia e araticum, tudo a poucos passos de casa, porque o mato ficava nas bordas da cidade. Quando saiu de lá para fazer o ginásio, ele percebeu que a floresta ficava cada vez mais distante toda vez que voltava a Palmital. Suas centenárias florestas com araucárias, vendidas em lances de 20, 30, 50 mil árvores, eram levadas dali como tocos de madeira para virar pasta nas fábricas de papel. Ele chegou a brincar com os “caminhõezinhos de madeira, carregados de pranchinhas”, que os pais construíam para o filho, porque “puxar madeira era o que molecada mais via os adultos fazerem”.

A “sensação de perda” bateu-lhe aos 17 anos, quando já era tarde para Palmital, mas não para Milano. Quando se inscreveu em Curitiba no vestibular da Universidade Federal do Paraná, marcou Engenharia Florestal como terceira opção. Acabara de saber que ela existia, lendo o manual de instruções dos candidatos. Reprovado, voltou decidido a ser engenheiro florestal no ano seguinte. Para desencanto dos pais, que viam no estudo um meio de “sair do mato”. Mas, no primeiro dia do último ano na faculdade, quando parecia que ouviria finalmente falar de natureza, Milano aprendeu de uma vez por todas que o curso não era o que ele imaginava. Foi na aula de estréia de manejo de áreas silvestres – ou seja, de conservação da natureza –, quando o professor disse que “esse negócio de cuidar de plantinha, de florzinha e de bichinho” não era coisa de homem. Engenheiro florestal, segundo o professor, “tinha de saber mesmo é nome de motosserra”. Por sorte, Milano teve o professor de paisagismo David Xavier Azambuja para corrigir a má impressão deixada por essa advertência. Azambuja era um veterano arquiteto, que impressionava os alunos não só pelas aulas, como pelo hábito de, aos 70 anos, cantar pneu no asfalto, quando dirigia em Curitiba. Foi ele quem revelou a Milano onde ficava o cruzamento da Engenharia Florestal com a conservação da natureza.

Formado, Milano fez um pouco de tudo. Tomou parte no grupo que fundou a carreira de Engenharia Florestal na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Trabalhou na Funai, quando foram fechadas as serrarias que mastigavam as últimas matas nas reservas indígenas do Sul. Duas décadas depois, um cacique caingangue lhe mandaria o recado: estava começando a cortar as primeiras árvores “do reflorestamento que fizemos juntos em 1980”. Em resumo, ele tinha muita estrada quando se apresentou no escritório de Miguel Krigsner para a tal conversa. Terminara o doutorado, com uma tese sobre a arborização das ruas de Maringá, a única cidade brasileira em que os jardineiros vêm antes dos mestres-de-obra nas frentes de urbanização. Especializara-se em arborização urbana. Conseguira enxertar a conservação da natureza no currículo de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná. E passara pela equipe que, no governo José Sarney, fez o Programa Nacional de Meio Ambiente. Durante o longo debate entre os consultores, a defesa de um sistema de unidades de conservação colocou-o do mesmo lado da mesa onde estavam o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara, a engenheira agrônoma Maria Tereza Jorge Pádua, o botânico Wanderbilt Duarte de Barros e outros padroeiros do movimento ambiental no Brasil. “Eu, que tinha aprendido o que sabia lendo o que eles escreveram”, diz Milano.

Ao conhecer Krigsner, Milano dirigia a Fundação de Pesquisas Florestais do Paraná, um braço autônomo da Universidade que aproximou da Engenharia Florestal dois elementos estranhos ao meio acadêmico: o mato e as empresas capazes de investir na exploração racional de seus recursos. A fundação ia bem. Tinha três carros e computadores, luxos quase ostentatórios para centros de pesquisas onde, naquele tempo, ainda se fazia fila para mexer em equipamentos de informática. E pouco antes fechara um contrato de 2 milhões de dólares em Moçambique. Milano achou que Krigsner só poderia estar interessado nos serviços da fundação universitária. E por isso o que ouviu do presidente de O Boticário lhe pareceu sem pé nem cabeça. “Eu expliquei o que queria fazer”, lembra Krigsner, “e ele foi logo perguntando quantos produtos vendíamos por mês. Calculei uns 500, 600 mil itens. Ele me perguntou se eu tinha alguma noção do que significava plantar 500 ou 600 mil árvores. Sinceramente, eu não tinha a menor idéia”.

Na Universidade, Milano consultou no mesmo dia o professor Carlos Firkowski, seu ex-colega de turma desde 1975 e parceiro vitalício de pescaria. “Metido como sou, disse logo que aquilo era inviável. O Boticário viraria uma empresa florestal. Acabaria botando pinus e eucalipto em tudo que é lugar. E frustrando o público”, diz Firkowski. Poderia ficar por isso mesmo. Mas Krigsner convidou Milano para outra conversa. Em seguida, mais outra. Da terceira vez, convencido de que estava lidando com gente séria, mas decidida a fazer besteira, Milano levou uma cópia de seu currículo. Queria tirar o corpo fora, mas deixando a porta aberta, caso em circunstâncias mais sóbrias a empresa se dispusesse a uma parceria institucional com a Fundação de Pesquisas Florestais do Paraná. Na sala do presidente, esperava-o uma surpresa. Krigsner e Eloi estavam decididos a bancar, como Milano havia sugerido, “os sonhos alheios”, patrocinando projetos úteis à conservação.

Segundo Eloi, a sugestão fora ouvida na porta do elevador, numa visita de Milano, e aceita de estalo. “Nós não entendíamos de ecologia. Era melhor deixar quem entende fazer as coisas”, diz ele. E Krigsner: “Uma idéia saiu de dentro da outra. Em princípio, eu tinha imaginado uma campanha institucional, algo que a empresa faria em certas épocas do ano. Na primavera, provavelmente. Milano veio aqui, inviabilizou em 3 minutos a idéia que eu tinha passado tanto tempo amadurecendo e disse que, se queríamos mesmo trabalhar com o meio ambiente, o certo seria criar uma fundação. A princípio, achei estranho: como assim, uma fundação? Ele garantiu que tinha contato com pessoas de renome e poderia indicá-las para integrar um conselho que fosse uma garantia de seriedade para qualquer projeto nessa área. E foi logo me falando de Maria Tereza Jorge Pádua, de Ibsen de Gusmão Câmara…”

Firkowski não ouviu a conversa. Mas viu de perto seus resultados. Era então diretor científico da Fundação de Pesquisas Florestais do Paraná. “Naquela época, trabalhávamos num prédio velho e pequeno, onde a gente se encontrava quatro ou cinco vezes por dia. Quando Milano veio com a história de um fundo para apoiar projetos de conservação, achei uma alternativa muito melhor do que prometer que iria sair por aí plantando árvore. E começamos imediatamente a discutir o projeto”, relembra. Firkowski nunca mais deixaria de trabalhar de graça para a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza e de recusar convites para se juntar à sua equipe. “Tenho alunos. Não sou homem de empresa. E principalmente não consigo me imaginar numa reunião de planejamento estratégico”, explica. Foi ele quem fez a planilha de avaliação dos projetos adotada pelo Programa de Incentivo à Conservação da Natureza.

Em agosto de 1990, a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza estava definitivamente batizada. O nome soava como uma declaração de princípios. Era comprido demais para o gosto dos publicitários, tinha palavras em excesso para um mundo acostumado à concisão dos logotipos e teria a implicância assegurada dos programadores visuais, cada vez que eles fossem chamados a maquiar sua imagem corporativa. Mas soava a coisa séria. E Krigsner acreditava nisso como “uma forma de entrarmos em conservação com o pé direito”, porque “faria um trabalho independente da empresa” e o blindava contra a suspeita de pôr o ambientalismo a serviço de seus negócios. “Eu sabia que era charmoso ter uma fundação fazendo alguma coisa ligada ao meio ambiente. E tinha de tomar cuidado para não escorregar nessas tentações”, admite. Em seu conselho de administração, Krigsner teria presença, mas discreta. Criou-a com um cacife inicial de 250 mil dólares. E acabou firmando com ela um pacto permanente. A empresa separa 1% de seu faturamento líquido para investimentos sociais. Desse dinheiro, 80% vão para essa Fundação, em que é proibido patrocinar projetos de pesquisa envolvendo essências naturais usadas na perfumaria.

“Mas, Miguel, logo uma fundação?”, reagiu o diretor financeiro Bernardo Fedalto, quando Krigsner lhe revelou onde fora parar a tal história de plantar árvores. Mais tarde, Fedalto participaria de sua administração. E foi seu conselheiro por mais de seis anos. Mas, à primeira vista, achou que a Fundação atrapalharia a empresa. “Eu lhe respondi que bastava fazer tudo da maneira mais correta possível”, diz Krigsner. O tempo haveria de mostrar que Fedalto tinha razão. Mas, quando ela tivesse de enfrentar um promotor empenhado em convertê-la ao assistencialismo social, Krigsner já teria provado que tinha muito mais razão do que o diretor. O fato é que, em outubro de 1990, a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza foi anunciada à platéia de um seminário sobre arborização urbana em Curitiba. Da conversa truncada de Miguel Krigsner com Miguel Milano ao lançamento, passaram-se cerca de dois meses.

Mausi Paulina Bocchino Bueno tinha ouvido falar “muito por alto” que a empresa estava pensando “em alguma coisa sobre meio ambiente”, quando Krigsner lhe comunicou que precisava dela na Fundação. Ela trabalhava com o diretor Eloi Zanetti. Contratada para azeitar a comunicação da marca com o público, criou o Serviço de Atendimento ao Consumidor, no qual respondia até 80 mil ligações por mês. E 15 anos depois, com firma própria, a MB Consultoria, ela tem saudades do convite que virou sua rotina pelo avesso. “O Miguel simplesmente me chamou para dizer que eu seria voluntária da Fundação. O Boticário era assim”, ela conta. O serviço extra não tomou só o seu tempo, como também um pedaço de sua sala, no prédio da Rua Comendador Macedo, onde nascera a Fundação. “Tenho até hoje as fotos dos primeiros computadores da Fundação”, diz Mausi. Era isso e dois armários. “Até a construção da Reserva Natural Salto Morato, em meados dos anos 1990, nós administramos numa quina de mesa”, recorda.

Mausi não foi o único voluntário que Krigsner recrutou à unha. O próprio Milano só veio a saber que seria diretor da Fundação quando viu seu nome na ata. Assim: “Quando Miguel me contou, respondi que não queria. Ele disse que não estava me convidando: ‘Está no registro’. Ele tirou os meus dados pessoais do currículo que eu havia deixado na empresa. Considerei-me impedido, porque já dirigia a Fundação de Pesquisas Florestais na Universidade Federal do Paraná. Miguel nem piscou: ‘Vamos falar com o reitor’. Acabou me deixando sem desculpas”.

Com esse gesto, Krigsner tinha, ao mesmo tempo, exercido as prerrogativas autocráticas do mantenedor e abdicado ao comando de sua Fundação. Dali para frente, ela teria a cara de Milano. “Miguel sentia um certo prazer em dizer que, pela primeira vez na vida, não mandava no que faziam com seu dinheiro. Dizia que estava aprendendo. Ia às reuniões do conselho e tratava de ficar quietinho, treinando para ser só um voto”, conta Mausi. “No princípio, eu tinha muita vergonha de mostrar que não entendia coisíssima nenhuma de meio ambiente. Via o Almirante me olhando desconfiado do outro lado da mesa e ficava com medo de abrir a boca para dizer bobagem. Mas, com o tempo, fui tratando de aprender um pouco”, diz Krigsner. O “Almirante” era Ibsen de Gusmão Câmara. Na Marinha, durante o regime militar, ele foi um dos raros oficiais de alta patente a se preocupar com a preservação da Amazônia, quando a doutrina oficial só falava em ocupá-la. Ao encerrar a carreira, passou a doar tempo integral ao ambientalismo. E isso é muito tempo. Aos 81 anos, arrumando gavetas, espantou-se com os 150 diplomas de conferencista em seminários. “E a maioria não dá certificado”, diz.

Krigsner não estava imaginando coisas. O Almirante estava desconfiado mesmo. “Eu achava esquisito uma fábrica de cosméticos se envolver de repente em conservação da natureza. Só aceitei o convite porque vinha do Milano. Mas o dono do Boticário foi me convencendo de que levava a conservação a sério. Uma vez, ele deixou claro que gostaria de adotar uma linha mais voltada para programas sociais, em vez de cuidar exclusivamente de natureza. O conselho foi contra. E na mesma hora ele declarou que, se era assim que nós queríamos, era assim que seria”. Das primeiras reuniões, Ibsen guarda a impressão de que “estava diante de ambições muito grandes, embora a Fundação, em si, não fosse lá uma grande coisa”.

Aninhada no Serviço de Atendimento ao Consumidor, Mausi tratou durante mais ou menos três anos só dos projetos alheios. Mas rapidamente ela percebeu que perguntas sobre meio ambiente se infiltravam cada vez mais na correspondência da empresa. Como Eloi previra, o público já não associava O Boticário apenas a cremes, perfumes e sabonetes. “Tínhamos modelos de cartas para responder às perguntas mais comuns. Quando eu não sabia responder, ia perguntar ao Milano. Eu não era muito ligada em meio ambiente naquela época”, diz ela. Mausi acreditava, no entanto, que cada pergunta merecia resposta específica. E, com isso, “quase ia enlouquecendo”. Cabia a ela distribuir os projetos entre os consultores técnicos, o que exigia certa intimidade com as ciências naturais, pois a cada proposta correspondia um especialista. Quando os conselheiros chegavam a Curitiba para bater o martelo, era Mausi quem ia “buscá-los no aeroporto e levá-los para jantar”. Desdobrando-se entre empresa e Fundação, adotou um heterônimo para não misturar seus papéis. Aos lojistas da rede O Boticário, apresentava-se como Andréia Silveira.

Eis outra medida de como as coisas caminharam nesses 15 anos. Eloi lembra que, ao falar pela primeira vez da Fundação, ouviu da platéia mais perguntas inquietas que palavras de endosso. Temia-se envolver a marca em polêmicas supérfluas. Mas, em 2002, uma pesquisa interna constatou que 99% dos franqueados de O Boticário associavam seu trabalho à defesa do meio ambiente. E, em 2005, mais de mil lojistas faziam-lhe doações que, somadas, chegavam a 600 mil reais por ano. Havia entre os franqueados exemplos de adesão entusiástica, como a de Cecília Rascovschi, dona de 18 lojas no Pará, que misturou em seu boletim Botica News a promoção da beleza com a da ecologia.

“Tudo isso quer dizer que fui muito feliz naquele prédio da Rua Comendador Macedo”, Mausi afirma. Mas, já naquela época, um problema estava fugindo de seu controle: as cartas em inglês que a Fundação trocava com ONGs e universidades estrangeiras. Com a promoção do Brasil a arena do ambientalismo mundial às vésperas da Eco-92, no Rio de Janeiro, o programa de incentivos caiu nos radares de uma multinacional da filantropia, a MacArthur Foundation, que distribui anualmente 185 milhões de dólares. “O pessoal da MacArthur andou por aqui, visitando seus parceiros no país, e aonde chegava ouvia falar da Fundação O Boticário, nos lugares mais inesperados, porque para todo lado havia projetos que ela financiava”, explica Milano. Acabou apresentado ao americano Michael Jenkins, numa viagem a Guaraqueçaba. O ex-voluntário do Peace Corps aproximou Milano da MacArthur, que injetaria no PICN (Programa de Incentivo à Conservaçãõ da Natureza) 80 mil dólares por ano, durante três anos. Os resultados positivos dessa cooperação levaram a uma nova oferta da MacArthur, de 250 mil dólares por ano, desde que em troca O Boticário depositasse o dobro desse valor num fundo destinado a manter a Fundação. Negociado pelo executivo Artur Noêmio Grynbaum, um cunhado de Miguel Krigsner que na época trabalhava com Fedalto, o pacto vigorou por cinco anos. No fim do processo, Jenkins era presidente da Forest Trends, uma ONG que canaliza dinheiro privado para investimentos em manejo florestal, e Grynbaum tinha virado vice-presidente da empresa. Ambos se tornaram conselheiros da Fundação. E ela dera um largo passo rumo à maturidade institucional.

A essa altura, a correspondência internacional era o ponto fraco da equipe. “Por isso, a vinda da Malu, que chegou falando e escrevendo em inglês, foi um alívio para nós”, diz Mausi. Malu é Maria de Lourdes Silva Nunes, a ex-aluna de Milano que, mesmo antes de ganhar o título de “gerente técnico-administrativa”, sempre fez tudo na Fundação. Curitibana, “mas filha de médico”, ela tinha meses de vida quando o pai levou a família para Salto do Lontra, no interior do Paraná. Lá, cresceu cercada de bichos. “Tínhamos jaguatirica, macaco, papagaio e até filhote de veado, porque médico no interior pode não ganhar dinheiro, mas recebe todo tipo de presente”, diz. Escolheu a faculdade de Engenharia Florestal porque lhe pareceu o curso mais próximo da natureza. Tanto não era que, formada, ela abriu uma loja de fotografia. Só voltou à universidade seis anos depois. E encontrou-a mudada. Surgira o mestrado em Conservação, no qual ela se matriculou, e havia agora a Fundação de Pesquisas Florestais, onde se apresentou como voluntária. Estava por lá quando Milano a levou para a “beira de mesa” na sala da Mausi, em junho de 1991. “Topei, achando que seria por meio-período”, ela comenta. Errou.

Naquele início de 1992, a agrônoma Maria Tereza Jorge Pádua assumiu a presidência do Ibama. O governo Collor tinha começado bem um ano que não conseguiria terminar. Por quatro meses, Maria Tereza seqüestrou Milano para ser Diretor de Ecossistemas em Brasília. Tempo suficiente para dar a Malu um batismo de fogo na Fundação. Não seria a primeira vez e muito menos a última que a Fundação gravitava em torno de Maria Tereza Jorge Pádua, dona de um recorde histórico – implantou reservas que cobrem 8 milhões de hectares. “Lembro da noite em que Milano me ligou para dizer que ‘um grupo empresarial’ de Curitiba queria plantar árvores”, recapitula. Semanas depois, ele telefonou de novo, dessa vez para anunciar a Fundação e convidá-la para o conselho. Maria Tereza era presidente da Fundação Pró-Natureza, que ela criara quatro anos antes. A seu ver, o Brasil precisava de todas as fundações ambientais que se pudessem fazer, “dada a magnitude do problema e a dimensão do país”. E, se isso não bastasse, havia “a confiança em Milano”. Era tamanha, diz ela, que “se Miguel recomendasse, eu já não tinha dúvidas”. Aceitou na hora.

Na primeira reunião do conselho, Maria Tereza e Almirante Ibsen tinham, portanto, as cadeiras cativas que ocupariam uma década e meia depois. Ao redor da mesa, muitos nomes haviam mudado. O que nunca mudou foi a configuração, que manteve com a empresa a minoria dos votos. Formalmente, tem três votos em nove. E os votos têm o mesmo peso. As vozes, nem sempre. Se alguém ali fala mais alto do que os outros, não é o presidente Miguel Krigsner, e sim a conselheira Maria Tereza Jorge Pádua. Era, em 2005, a única mulher no conselho. Mas a Fundação, engendrada no encontro de dois homens, torna-se marcantemente feminina, a começar por Malu, na gerência. A ex-aluna de Milano não fez por menos quando seu ex-professor viajou aos Estados Unidos em 1998, para um período sabático como professor na Colorado State University. Achou que a Fundação estava passando da hora de ter um planejamento. Juntou a equipe e a força-tarefa botou no papel os princípios que tinham atravessado a década no ar. “Missão, visão, valores, tudo isso a gente foi escrevendo. Queríamos, quando Milano voltasse, mostrar-lhe o serviço pronto”, diz.

Outra marca pessoal que Malu imprimiu à Fundação são seus trainees. Criado em 2004, o programa seleciona 22 jovens por ano para formar lideranças que propaguem o zelo ambiental por outras esferas de trabalho. Enquanto duram os cursos de imersão, sem se desligar das organizações a que pertencem, eles desenvolvem um projeto comum de aperfeiçoamento seguido de perto por tutores. Transformam-se em ambientalistas prontos a trabalhar em favor da natureza nos lugares onde atuam. “Em cinco semanas de mergulho total, o que parece uma bolsa pode ser, para eles, uma grande virada”, diz Malu.

Outra marca forte da presença feminina na casa veio da engenheira florestal Verônica Thuelen, que deu o empurrão decisivo para a decolagem dos Congressos Brasileiros de Unidades de Conservação. Eles são a melhor vitrine internacional da Fundação O Boticário. Seus anais, publicados em calhamaços que ultrapassam 900 páginas, parecem o quem-é-quem da conservação ambiental. Em 2004, o quarto congresso da série impressionou tanto o historiador americano Alfred Runte que, seis meses depois de passar pelo auditório em Curitiba, ele ainda falava para platéias universitárias nos EUA: “Eu ainda luto para botar em palavras que experiência tocante foi aquela. Naquela manhã, encarei um mar de rostos – 1.800 participantes, 600 deles abaixo dos 30 anos. Centenas de jovens tiveram de ser barrados por falta de vaga. Imaginem isso!”.

O primeiro desses congressos aconteceu em 1997, empurrado pelos debates sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que ressonava nas instâncias políticas de Brasília. Para convocá-lo, instituiu-se a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação. Ambos tinham o dedo de Milano. Mas a rede era uma entidade quase abstrata, quando encerrou o congresso em Curitiba prometendo fazer outros de dois em dois anos. E 1999 passou sem que se tocasse mais no assunto. Até que Verônica entrasse na história para “não deixar mais ninguém pensar em outra coisa”, segundo Malu. “Eu era voluntária da rede”, diz Verônica. Dois anos antes, produzira quase à força o estatuto da entidade, convidando Malu e Milano para um café e anunciando que ninguém mais sairia enquanto o rascunho não estivesse pronto. Sem estatuto, a rede não podia ter patrocinadores.

Verônica, como Malu, foi aluna de Milano. Ela explica por que isso acontece tanto na Fundação: “Ele tem isso de bom. É um professor exigente, rigoroso e às vezes chatíssimo, desses que não faltam a uma aula, chegam na hora, ficam até o fim, entregam apostila no começo do ano, corrigem prova e dão nota. Mas quem pode vai atrás dele”. Verônica cresceu em Curitiba. Aos 17 anos, foi estudar Biologia e Engenharia Florestal, as duas ao mesmo tempo, porque estava interessada em aprender conservação – o que, a rigor, a universidade não oferecia. Como estudante, juntou-se ao Grupo de Estudos Espeleológicos do Paraná, que fazia campanhas para salvar cavernas. Seu caso era com as campanhas. “Nunca cheguei a ser propriamente uma espeleóloga”, avisa.

Mas, no grupo, conheceu Gisele Sessegolo, “uma bióloga apaixonada por cavernas”. E ela a levou para estagiar na Ecossistema Consultoria Ambiental, sua firma de serviços voltados para a recuperação de áreas degradadas. Verônica dava expedientes na empresa de 12 horas por dia e ainda cuidava da rede como se fosse sua, carregando toda a memória da ONG em seis pacotes, que não saíam do porta-malas de seu Volkswagen Apolo. À falta de um endereço fixo, o carro era o escritório da rede. “Lá pelo fim de 1999 eu estava em Bonito, no Mato Grosso do Sul, quando ouvi falar do decreto para criar o Parque Nacional da Serra da Bodoquena, que estava emperrado em Brasília. Liguei de lá mesmo para Milano, dizendo que poderíamos fazer o segundo congresso em Campo Grande, e assim dar uma força ao Parque. Num minuto, ele concordou.”

O atrevimento custou-lhe meses de serões gratuitos, trabalhando noite adentro na casa de Milano, depois que ambos saíam do emprego. A rede não tinha sequer telefone. Verônica comprou um celular. Era esse o número que constava nos cartazes anunciando o congresso – 9183-2391. “Cada nome que confirmava a presença era uma comemoração. Nunca mais me esqueço da manhã em que o Milano me ligou às 6h45, dizendo que o John Terborgh viria”, conta. Autor de Requiem for Nature, livro belo e sombrio como as florestas tropicais que tenta salvar da extinção, o biólogo aproveitaria a passagem por Campo Grande para urdir o Parks Watch, um sistema de monitoramento que vela pelas unidades de conservação na América Latina.

Em maio, quando pingou nas contas da rede a primeira verba de patrocínio, Milano contratou Verônica para se dedicar à preparação do congresso em tempo integral. Ou seja, deu-lhe um salário de mil reais por mês, emprestou-lhe uma mesa na Fundação O Boticário e pediu que, em troca, ela se demitisse da Ecossistema. Até no mês que passou em hospital, acompanhando o pai internado numa UTI, ela cuidou do programa. Mas foi, ela diz, “um tremendo congresso”. A rede ganhou finalmente uma sede, alugada em setembro de 2001. E, naquele mesmo ano, Verônica foi incorporada à Fundação.

Encontrou-a funcionando num escritório dentro da fábrica em São José dos Pinhais, um conjunto de salas que, mais tarde, seria ocupado pelo departamento de TI. O programa de incentivo a projetos alheios já não funcionava como nos primeiros anos, quando a verba do patrocínio vinha diretamente da mantenedora e, na hora de fechar cada rodada de seleção, era negociada com o vice-presidente e diretor comercial da empresa Bernardo Fedalto. “As contas, naquele tempo, eram o maior problema da Fundação, e o número de propostas aprovadas era sempre maior do que o dinheiro disponível”, diz Fedalto. Ex-engenheiro da prefeitura de Curitiba e controlador da Companhia de Desenvolvimento do Paraná, ele passara a vida amansando números rebeldes na administração pública. Na empresa, depois de torcer o nariz para a Fundação, foi seu primeiro diretor financeiro. Acabou se “interessando por meio ambiente e no fim já dava até palpite em pesquisa de macaco”, diz ele. Fedalto só deixou o conselho ao se aposentar, em 2003, passados os 70 anos. Saiu convencido de que, se Krigsner estava mesmo errado quando criou a Fundação, “esse foi o erro mais bem-sucedido da história do ambientalismo no Brasil”.

Foi na administração de Fedalto que a Fundação começou a formar seu fundo patrimonial, para garantir a perenidade da instituição. O fundo fechou 2004 na casa dos 8,6 milhões de reais. E a Fundação tinha um prazo para se tornar auto-suficiente até 2020. A data em si já era outro sinal de mudanças radicais operadas por mãos femininas. Desde a virada do milênio, a Fundação passara a reger seu dia-a-dia por normas fixadas a longo prazo. A mudança de hábito custou-lhe uma crise memorável – a do relacionamento com Maria Carolina Zani, diretora de Finanças e Infra-estrutura de O Boticário. Carol tinha 18 anos de carreira ascendente.

* Esta reportagem faz parte de um livro sobre os 15 anos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

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