Ao sentir-se fisgado, o dourado dá saltos espetaculares na luta pela liberdade. Para sublinhar a bravura, a natureza o vestiu com escamas que refletem como ouro à luz do sol. Um dos mais briguentos e belos habitantes das águas brasileiras, ele está sendo reintroduzido no Rio Grande do Sul por voluntários e cientistas que trabalham para a conservação da bacia do rio dos Sinos. O peixe, porém, não foi escolhido apenas por ser bonito, mas porque é excelente indicador do equilíbrio ecológico das águas.
“Para nós, o dourado é uma bandeira. E bem real. Temos muitos peixinhos no rio”, brinca a professora Eunice Conceição dos Santos, de Caraá, município com pouco mais de 6 mil habitantes, na Serra Geral. Lá estão as nascentes do Sinos, onde neste ano foram soltos mais de 300 douradinhos, criados em tanques com metodologia desenvolvida por pesquisadores da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
A comunidade está de olho na qualidade da água, para garantir a sobrevivência dos filhotes. Essa é a essência do Projeto Peixe Dourado. “Nosso objetivo principal é motivar as pessoas para cuidarem da bacia hidrográfica”, explica Uwe Horst Schülz, pesquisador do Laboratório de Ecologia de Peixes da Unisinos e um dos coordenadores do trabalho, que é feito em parceria com o Comitesinos. Esse comitê foi criado por decreto, em 1987, para a preservação da bacia e é integrado por ongs, sindicatos, prefeituras e câmaras de vereadores.
No Caraá, quase toda a população acaba se envolvendo de alguma forma com os primeiros peixinhos desovados depois de quase cinco anos de pesquisas. Os moradores da beira do rio espantam pescadores, o comércio doou placas de sinalização nas matas, as crianças fazem trabalhos escolares sobre o assunto e os clubes de mães ajudam em campanhas ecológicas.
Mas o resto da bacia hidrográfica não tem o mesmo encanto das nascentes, onde o rio corre limpinho. A maior parte dos afluentes está poluída por esgotos sem tratamento e resíduos industriais de 22 municípios, onde vive 1,5 milhão de pessoas.
O rio dos Sinos percorre cerca de 190 km até desembocar no Jacuí, passando por uma região de grande concentração de indústrias. Em São Leopoldo, a 50 km de Porto Alegre, o rio faz uma curva na casa onde José Inácio Daudt (foto) nasceu, há 65 anos, e cresceu: uma área de 9 hectares, na zona urbana da cidade, propriedade da família há quase um século.
“Há quarenta anos, a gente bebia água desse arroio”, aponta José para o ponto em que o córrego Peão deságua o esgoto malcheiroso e denso no Sinos, nos fundos da casa. “Quando a sujeira começou, as serrarias jogavam o farelo da madeira todo no rio. Uma barbaridade. A gente não se metia. Minha família fez tanque para o gado beber água, e não pensava em alertar o vizinho para que parasse de poluir”, comenta.
Em 1957, a poluição da bacia já era motivo de denúncias do ambientalista Henrique Luís Roessler. “Vários arroios carregam substâncias químicas, tanino, sais minerais venenosos, anilinas e matéria orgânica de curtumes e de outras fábricas”, escrevia ele nas páginas do Correio do Povo. Mas sua coluna no diário da capital gaúcha também registrou a fantástica desova de dourados e grumatãs na piracema de 1962. “As águas dos rios Caí, Sinos e Gravataí fervilham de peixinhos jovens que agora já atingem o tamanho de lambaris”, escreveu em maio do ano seguinte, sem deixar de registrar que pescadores levavam quilos de filhotes para fritar.
“Se eu for contar a história desse rio, vou contar uma história predatória”, conta Maurício Daudt (foto), 34 anos, o filho de José Inácio. “Quando eu era criança, pescava todo o final de semana. Com espinhel, linha, rede…”. Hoje Maurício é responsável pelo trabalho prático de reprodução dos alevinos de dourado, sob a orientação de Uwe Schülz. Os peixinhos desovados no Caraá nasceram nos tanques da casa dele.
Por trás do sucesso da desova há muita pesquisa, inclusive com uso de radiotransmissores no corpo dos peixes (foto abaixo) para acompanhamento de migrações e comportamento da espécie. Depois da primeira fase de estudos, foram escolhidas as matrizes para a reprodução, nativas do próprio rio.
O dourado é um excelente bioindicador da saúde do rio. Peixe voraz, do topo da cadeia alimentar aquática, é sensível a todo impacto que sofrem os peixes pequenos que compõem sua dieta. O que ajuda os cientistas a avaliarem a qualidade ambiental da águas.
Para completar a ação em favor da natureza, a partir de setembro as prefeituras terão à sua disposição mapas com todas as informações sobre a bacia do Sinos. Os dados servirão de subsídio para projetos de conservação ambiental nos 22 municípios da bacia hidrográfica.
As informações foram levantadas por 500 voluntários que integram o Monalisa, um subprojeto do Peixe Dourado. Depois de serem treinados com cursos na Unisinos, estudantes, donas-de-casa, aposentados e funcionários públicos dedicaram horas de folga percorrendo arroios. Eles anotaram tudo – depósitos de lixo, margens degradadas, áreas preservadas, com as devidas latitudes e longitudes informadas por satélite. Um trabalho de formiguinha que teve a participação até de arrozeiros, interessados na qualidade das águas para garantir boa produção.
* Cristina Ávila é jornalista em Porto Alegre, especializada em Divulgação Científica pela Universidade de Brasília (UnB). Cobriu meio ambiente para o Correio Braziliense por seis anos
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