Se de um lado preocupa pelo rápido avanço, de outro a inteligência artificial (IA) pode se colocar como importante ferramenta para solucionar problemas atuais. Aliando a tecnologia à bioquímica, o projeto “Digitais da Floresta”, anunciado nesta terça-feira (04) pelo Google com a The Nature Conservancy (TNC) no Brasil, quer rastrear a origem da madeira comercializada a partir da Amazônia. Com uma plataforma de inteligência, ainda em desenvolvimento, será possível identificar se um produto é feito de madeira ilegal.
Hoje, a ilegalidade chega a quase 40% da exploração madeireira na Amazônia, como mostra estudo reportado por ((o))eco. E a pressão é cada vez maior no setor pela rastreabilidade da madeira. Justamente para dar visibilidade à origem dessa cadeia do comércio madeireiro, o projeto irá fazer essa identificação com base na composição química e isotópica das árvores nativas.
Luiz Antonio Martinelli, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) – uma das parceiras da iniciativa –, conta que a metodologia isotópica é uma das mais recomendadas para o combate à exploração ilegal de madeira. “No entanto, ainda foi pouco testada em condições tropicais, onde o número de espécies é altíssimo”, comenta o docente.
O método consiste na criação de um modelo de rastreabilidade baseada no uso de isótopos estáveis para mapear o que seria a “impressão digital química” de árvores da Floresta Amazônica, o que justamente dá nome a iniciativa. Essa digital é imune à falsificação e não pode ser alterada porque é baseada na distribuição de isótopos estáveis de carbono, oxigênio e nitrogênio que são encontrados nas árvores.
A Diretora Executiva da TNC Brasil, Frineia Rezende, conta que em cada localidade a composição isotópica da água da chuva e, consequentemente, a água no solo têm uma composição característica de isótopos estáveis. “Durante a vida, as árvores absorvem a água e outros elementos químicos, principalmente do solo, e acabam apresentando uma composição isotópica semelhante à do local onde vivem. É uma espécie de ‘impressão digital’ isotópica única”, explica. “E é assim que o projeto buscará identificar de onde vem a madeira”, acrescenta.
Até o momento, a organização já iniciou um processo de análise de mais de 250 amostras de diferentes árvores nativas em vinte regiões do bioma, sendo o principal foco as espécies mais exploradas comercialmente. O processo conta com o apoio do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP. Para Martinelli, que coordena a pesquisa no Cena/USP, o principal desafio do projeto será “investigar a eficiência dessa metodologia em um ambiente diverso”, como é a Amazônia.
Marco Lentini, especialista sênior florestal do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), diz que a iniciativa tem a expectativa de trazer informação qualificada para os compradores e tomadores de decisão sobre os riscos de ilegalidade existentes nas cadeias de suprimento de madeira na Amazônia. “Esperamos que possa, deste modo, incentivar os produtores a acessarem a madeira responsável mais facilmente nos mercados”, comenta Lentini.
O Imaflora é um dos parceiros do projeto e irá, entre outras coisas, auxiliar na construção de uma API (Interface de Programação de Aplicação) aberta para permitir que qualquer entidade possa rastrear a origem geográfica da madeira.
Inteligência artificial para estimar localização
Para desenvolver junto com a TNC tecnologias e modelos de IA para essa plataforma do “Digitais da Floresta”, o Google irá disponibilizar 13 especialistas em machine learning (ML), geolocalização, UX Design e gerenciamento de projetos à organização. A construção de um modelo de IA capaz de estimar onde estava a árvore que deu origem a uma amostra de madeira exige a manipulação e a interpretação de extensas bases de dados, conta o diretor de parcerias globais do Google Brasil, Alessandro Germano. “Por isso, queremos ajudar também doando nosso talento e DNA para dar escala ao projeto”, explica.
A área filantrópica do Google também irá doar R$ 5,4 milhões à TNC. Segundo a empresa, esse programa chamado de Google.org Fellowship é inédito na América Latina e terá a duração de seis meses.
A ideia é que a plataforma de inteligência seja disponibilizada via Web e aplicativo no final do projeto, para que qualquer pessoa ou entidade interessada em monitorar zonas de desmatamento possa utilizá-la. Ainda conforme o Google, os dados serão apresentados de forma simplificada, para que sejam facilmente utilizados por consumidores, empresas, organizações ambientais e também por autoridades para coibir crimes ambientais, entre outros.
Ainda não há uma data oficial para o lançamento da plataforma, mas, segundo a assessoria da TNC Brasil, os pesquisadores estão trabalhando para que em um ano já se tenha a primeira versão da ferramenta.
“Esperamos também que esta plataforma contenha conteúdos que ajudem a promover a sociobiodiversidade da Amazônia”, completa o pesquisador do Imaflora.
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