Meio ambiente e populações tradicionais na ilha baiana de Boipeba aguardam uma manifestação definitiva do governo Lula sobre o possível uso de terras da União por um megaprojeto turístico-imobiliário privado autorizado pelo governo estadual. ((o))eco acompanha o caso desde 2019.
Na quarta-feira (4), acaba o novo prazo de 90 dias para que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) se posicione sobre “irregularidades identificadas no processo administrativo” envolvendo o aproveitamento de parte da ilha pelo empreendimento Ponta dos Castelhanos.
A suspensão começou em abril e foi renovada em julho. Desde então, estão proibidas obras no imóvel de 1.651 ha, quase 20% da área de Boipeba. A ilha é uma das porções mais preservadas da Mata Atlântica brasileira e abrigo de quilombolas e extrativistas.
As medidas federais pesaram documentos, informações de moradores da ilha, entidades civis, Governo Estadual, Prefeitura de Cairu – onde está Boipeba e outras ilhas – e da Mangaba Cultivo de Coco, grupo de empresários à frente do projeto, com pousadas, residências, pista de pouso e infraestrutura náutica.
O deputado estadual Hilton Coelho (PSOL-BA) avalia que os adiamentos permitiram a residentes da ilha e movimentos sociais se informar mais e melhor sobre os impactos do licenciamento, assinado em março pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema).
“Os embargos estão em sintonia com as comunidades tradicionais da região. Elas não querem que a autorização ao projeto seja validada, mas sim que seus direitos sejam respeitados, como a titulação de seus territórios ancestrais”, destaca o parlamentar.
O PSOL rompeu este mês com o governo Jerônimo Rodrigues (PT), que apoiava desde o pleito de 2022. Os embates incluem a violência na segurança pública e o descaso com o meio ambiente. A sigla segue na base do governo Lula, que mantém promessas de amplo respeito às questões ambientais.
Imbróglio fundiário
Em julho, a SPU afirmou a ((o)eco que, de forma preliminar, “identificou incompatibilidade do empreendimento com o instrumento de inscrição de ocupação, haja vista a previsão de parcelamento da área, o que não exclui, por ora, a possibilidade de concessão de outro instrumento definitivo aos atuais ocupantes, observados os direitos das comunidades tradicionais”.
A declaração ampliou expectativas sobre a legalidade do Ponta dos Castelhanos frente ao regramento federal. Ilhas sem sedes municipais, como Boipeba, são completamente terras da União e deveriam ser destinadas sobretudo a usos tradicionais, diz o Ministério Público Federal (MPF).
Além disso, a vegetação de Mata Atlântica em estágio médio ou avançado de regeneração não poderia ser derrubada para iniciativas particulares, apenas para obras licenciadas e de comprovada utilidade pública ou interesse social.
A inscrição das terras alvo do Ponta dos Castelhanos foi repassada à empresa no governo de Jair Bolsonaro, em abril de 2022. Antes, o terreno foi comprado de um empresário acusado de apropriação de terras públicas.
“Não há autenticidade nos documentos apresentados [para a negociação e uso das terras]. A SPU não pode fazer uma possível ‘lavagem’ de terras griladas aprovando de vez o projeto”, reclama Hilton Coelho (PSOL-BA).
Por meio da Lei de Acesso à Informação, a SPU confirma que “não houve repasse de terras da União à referida empresa, mas sim transferência do instrumento de inscrição de ocupação, outorgado inicialmente em favor de outra pessoa”.
A autarquia lembra que um decreto federal de 1977 define que tal inscrição, “ressalvados os casos de preferência ao aforamento, terá sempre caráter precário, não gerando, para o ocupante, quaisquer direitos sobre o terreno ou a indenização por benfeitorias realizadas”.
O imbróglio fundiário gerou repetidos pedidos do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União para que o Governo da Bahia cancelasse de vez a licença do projeto, ainda sem efeito.
“Se a SPU atropelar essas recomendações imporá uma forte desvalorização ao governo federal e poderá ensejar uma grande e longa batalha judicial”, avalia o deputado estadual Hilton Coelho (PSOL-BA). Em junho, a Mangaba Cultivo de Coco afirmou que o “projeto atende a todos os requisitos legais e regulamentares”, que o Inema definiu condicionantes “que buscam evitar qualquer inadequação ou prejuízo ambiental” e que “será garantido o acesso das comunidades a todos os caminhos relacionados com a pesca e coleta de mangaba e mariscos”. Saiba mais aqui.
Direitos ancestrais
Remanescentes de quilombos na ilha baiana vêm sendo reconhecidos pela Fundação Palmares, como o da Comunidade de Boipeba, em 20 de setembro. Há pelo menos outros três povoados similares na ilha, Moreré, Monte Alegre e São Sebastião (Cova da Onça).
Monte Alegre é reconhecida pela Fundação Palmares desde 2006. Moreré foi certificada há um mês. Cercada pelo projeto Ponta dos Castelhanos, a comunidade de Cova da Onça ainda não reivindicou seu título de remanescente quilombola.
Morador de Boipeba, Benedito da Paixão Santos, o Bio, avalia que os reconhecimentos reforçam o papel das comunidades na preservação de sua cultura afrodescendente, de economias menos agressivas à natureza e de ambientes em terra e mar da Mata Atlântica.
“A SPU agora tem provas vivas de que Boipeba foi certificada como quilombola. Por isso, esperamos que o projeto não tenha sido suspenso duas vezes apenas enquanto a SPU preparava uma decisão favorável aos grandes empresários”, ressalta.
Bio defende que a ilha seja mantida como um cenário de agricultura familiar, de extrativismo, de turismo de base comunitária e de outras atividades em sintonia com os ambientes naturais. Tais ações ajudariam igualmente a driblar o desemprego e a pobreza.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que, em 2021, o salário médio mensal do município de Cairu era de 1,7 salário mínimo e que apenas 18,1% da população tinha ocupação formal. Mudar isso depende também de iniciativas públicas.
Dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mostram que a Prefeitura de Cairu recebeu R$ 85,7 milhões em royalties pela exploração de gás natural do Campo de Manati, de 2007 a 2022. Seriam quase R$ 165 milhões atualizados pela inflação do período.
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