Reportagens

O que os estudos de cérebros de golfinhos e baleias sinalizam à proteção da biodiversidade?

Rede de pesquisas liderada por bióloga brasileira busca respostas sobre a relação dos cetáceos com o ambiente onde vivem e sobre a própria evolução humana na interação com essas espécies

Elizabeth Oliveira ·
29 de julho de 2024

A pesquisadora Kamilla Souza teve certeza da sua paixão pela biologia quando ainda cursava o ensino fundamental e ficava vidrada nas aulas de ciências. Incentivo familiar para a formação da futura cientista não faltava. Por exemplo, foi nos livros de anatomia da tia enfermeira que ela encontrava informações que já revelavam uma afinidade com esse campo do conhecimento no qual decidiu se especializar. “Foi natural virar bióloga. Os professores sabiam disso”, conta a cientista, que depois de trilhar os caminhos de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também se graduou, fundou a inovadora Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, na qual atua como diretora científica. Nessa empreitada ela tem sido apoiada pelo Instituto Serrapilheira. 

Pelas ações em colaboração com esse coletivo que reúne dez instituições nacionais e duas internacionais, a bióloga conseguiu montar a maior coleção de cérebros de golfinhos e baleias da América Latina. São cerca de 50 unidades armazenadas para estudos que têm muito a dizer sobre a relação dos cetáceos com o ambiente onde vivem e sobre a evolução humana na interação com as espécies aquáticas estudadas, além de sinalizar sobre estratégias de proteção da biodiversidade marinha a partir das pesquisas em curso. 

Orgulhosa de ter construído toda a sua formação acadêmica em uma universidade pública, ainda que nesse percurso tenha tido oportunidades internacionais de aprimoramento profissional, a pesquisadora que atualmente vem desenvolvendo estudos de pós-doutorado na UFRJ afirma que o seu maior objetivo é fortalecer a ciência no Brasil.  A partir dessa atuação em rede, ela espera projetar estudos de ponta realizados no campo de pesquisa que está buscando consolidar no país.

Os cetáceos são espécies de vida longa e têm cérebros grandes e complexos que precisam ser compreendidos mais amplamente, como argumenta a pesquisadora. Os das baleias jubarte, por exemplo, pesam em média seis quilos, enquanto o peso de um cérebro humano é de 1,5 quilo. Nesse universo, as metodologias lideradas pela bióloga contemplam etapas que vão da coleta à dissecação até chegar à análise, completando dessa forma o ciclo de estudos. Como parte da divulgação científica, ela já publicou um artigo com resultados das suas experiências envolvendo detalhamentos sobre o cérebro do boto-cinza (Sotalia guianensis) em uma revista especializada internacional. Essa espécie, em risco de extinção, é um símbolo do Rio de Janeiro apresentado na bandeira da cidade.

Paixão pela biologia desde a infância impulsiona novas descobertas

A pesquisadora Kamilla Souza, fundadora da Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, em atividade de laboratório. Crédito: Acervo Pessoal

A pesquisadora conta que na graduação em biologia, ao assistir uma palestra sobre neuroanatomia, durante uma semana de integração acadêmica, ficou encantada com a possibilidade de estudos sobre cérebros de diferentes formas de vida. Foi assim que buscou se conectar com a equipe da professora palestrante e começou a estudar o cérebro de elefantes, tendo publicado o seu primeiro projeto em 2014. 

Como os cérebros maiores do que os dos seres humanos já despertavam o seu interesse por compreender a existência de diferentes formas cognitivas, entre outros aspectos, a bióloga decidiu estudar cérebros de cetáceos que, na época do mestrado, vieram do exterior. Fez análise de dois, tendo conseguido apoio para participar do seu primeiro congresso internacional.  A oportunidade trouxe a certeza do seu interesse em prosseguir com esse tipo de investigação no doutorado. “Eu queria estudar espécies de água doce e salgada para comparar como o ambiente pode moldar o cérebro dos animais”, explica.

Mas se antes havia a dependência de receber material de estudos do exterior, ela sentiu que precisava fazer algo diferente, começando do zero para mudar essa situação tanto para si como para outros interessados nesse tipo de experimento. “Eu me perguntava sobre o porquê de depender de material de fora quando temos uma biodiversidade enorme no Brasil”. Ela considera que esse foi “o pulo do gato” que a levou a aprender a extrair os cérebros dos cetáceos, trabalho minucioso que exige habilidade e conhecimento. Em dois meses de estudos no Japão, adquiriu essa expertise e também compartilhou conhecimentos já adquiridos no Brasil.

Quando voltou ao país quis apresentar o projeto para várias redes. Nesse processo, reconhece a importância da professora Haydée Cunha, do departamento de Genética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sua coorientadora, considerada crucial na construção de pontes para conexões com pesquisadores nacionais e internacionais. Esses elos foram fundamentais para o andamento das etapas seguintes que viriam a resultar na formação do que veio a se tornar a Rede que lidera na atualidade.“Sempre houve muita disponibilidade de apoio. Muita gente acreditou em mim”, celebra. Nessa mobilização que foi se fortalecendo, conseguiu que colegas coletassem cerca de 50 cérebros de cetáceos para análises, quando precisava de apenas quatro para fechar as pesquisas de doutorado. 

Com esse farto material armazenado, veio a ideia de institucionalizar a Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, iniciativa que se consolidou com o apoio do Instituto Serrapilheira. “Estamos conseguindo fazer agora o que não era possível antes”, afirma. Nesse processo, a pesquisadora explica que poder fazer viagens para as etapas de coletas de materiais e de análise, além de participar de palestras e intercâmbio de conhecimentos, têm sido ações fundamentais para a continuidade dos seus estudos. A partir desse coletivo científico, ela pretende mobilizar não somente pesquisadores de todo o Brasil como receber alunos de outros estados para investigações sobre cérebros de cetáceos.

Outra grande conquista que ela faz questão de ressaltar na sua trajetória foi ter sido aprovada em um processo seletivo da Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde se filiou a um laboratório de referência em estudos de ressonância magnética com cérebros humanos, sendo a única pesquisadora estudando cérebros de cetáceos em um curso de especialização. Com uma bolsa de pesquisa de intercâmbio, a bióloga conta que conseguiu avanços. Dentre os quais, tem usado protocolos de Oxford em análises de imagens geradas por um maquinário de alta resolução da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), instituição com a qual também tem contado para aprimoramento nesse tipo de experiência. “Estamos trazendo tecnologia de ponta para o nosso país”, comemora.   

O trabalho colaborativo tem possibilitado ir além da manutenção de uma geladeira com materiais de estudos na UFRJ. No Instituto Baleia Jubarte, na Bahia, e no Instituto Orca, no Espírito Santo, duas organizações integrantes dessa Rede, são mantidos mais dois refrigeradores e asseguradas outras formas de suporte às pesquisas. “Eles estão nos apoiando com uma importante infraestrutura”, observa a pesquisadora. A rede contribui monitorando encalhes e mobilizando esforços de coleta e armazenamento de cérebros de animais mortos para análise posteriormente no equipamento de última geração da USP.

Baleia jubarte no Rio de Janeiro, espécie cujo cérebro desperta grande interesse de pesquisa da Rede Brasileira de Neurobiodiversidade. Crédito: Enrico Marcovaldi/IBJ

Instituições parceiras destacam inovação nas pesquisas sobre neurobiodiversidade

Atuando com genética e evolução, a professora Haydée Cunha, da UERJ, é uma entusiasta das pesquisas da bióloga, da qual foi coorientadora, e da própria Rede Brasileira de Neurobiodiversidade. Para ela, é motivo de orgulho ter contribuído com a formação de pontes de diálogo e contatos com profissionais com os quais tem trabalhado, há anos, para que avanços fossem acontecendo na construção desse novo coletivo científico. 

Além de apontar inúmeros desafios para estudos da biodiversidade marinha no Brasil, a professora também argumenta que no país, alguns dos principais avanços relacionados a essa temática aconteceram a partir de 2010, por meio da criação da Rede de Encalhe e Informação de Mamíferos Aquáticos do Brasil (Remab), pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Embora a Remab tenha uma atuação mais ampla, abrangendo outros grupos de animais, e vá muito além da neurobiodiversidade, ela considera que algumas conexões entre profissionais dessa Rede, estabelecidas com a bióloga Kamilla Souza, têm grande importância para o fortalecimento da Rede que a pesquisadora fundou. 

Como trabalho inovador que a bióloga desenvolveu no doutorado, foi mencionado que a pesquisadora investigou o cérebro de espécies irmãs de botos (o cinza, de ocorrência no Rio de Janeiro, e o rosa, da Amazônia), separadas por milhões de anos na escala de evolução, estudo considerado importante para a compreensão de processos evolutivos. “Temos sempre novas perguntas e questões de pesquisas. É assim que avançamos”, observa Haydée Cunha.

A professora também destaca o papel relevante de projetos como o Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua), da UERJ, onde atua como pesquisadora. Por meio dessa iniciativa, são monitorados, por exemplo, botos cinza na Baía de Guanabara, onde existem cerca de 30 indivíduos.  Nesse contexto de muitas pressões urbanas, ela aponta a importância da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, “como bastião de resistência” para a fauna aquática.  

Crédito: Enrico Marcovaldi/IBJ.

José Truda Palazzo Jr., coordenador de Desenvolvimento Institucional do Instituto Baleia Jubarte, destaca o pioneirismo dos trabalhos liderados pela bióloga e a importância de apoiá-la com infraestrutura como essa e outras organizações estão fazendo. Ele conta que a equipe de monitoramento de encalhes tem colocado à disposição a infraestrutura de trabalho de campo e que o Instituto também está engajado na aquisição de equipamentos e materiais para dar suporte às atividades da pesquisadora. 

O ambientalista explica que animais de comportamento complexo como as baleias são produtos do uso do cérebro, sobre o qual a ciência ainda sabe pouco. “Esse trabalho de base que ela está desenvolvendo de forma inovadora é um passo fundamental para avançarmos nesse entendimento”, opina. “Além disso, a ciência costuma ser muito dura e esse projeto nos ajuda a resgatar um maravilhamento pelo tema que envolve e pelas suas perspectivas de descobertas que serão importantes para a conservação da biodiversidade marinha e o desenvolvimento científico nesse campo do conhecimento. Não por acaso, essa experiência está chamando a atenção de pesquisadores internacionais”, analisa.

Lupércio Araújo Barbosa, vice-presidente e cofundador do Instituto Orca, também ressalta a importância dos estudos desenvolvidos pela pesquisadora Kamilla Souza. Para ele, a cientista está conseguindo atuar de uma forma pioneira, por meio de protocolos que antes não existiam e virando uma página de ações improvisadas que marcavam esse tipo de investigação no passado, quando era muito comum a perda de materiais coletados. Tendo exercido a medicina por 35 anos, na especialidade de pediatria, mas apaixonado por biodiversidade marinha há décadas, ele conta que também se identificou fortemente com as pesquisas da bióloga envolvendo cérebros de cetáceos.  

A pesquisadora Kamilla Souza apresenta a Rede Brasileira de Neurobiodiversidade em evento internacional. Crédito: Acervo Pessoal

Para Barbosa, as investigações dela têm muito a elucidar tanto em relação à conservação da biodiversidade marinha como às interações entre humanos e os cetáceos estudados. A decisão de apoiar a iniciativa vem justamente dessa compreensão sobre a relevância das ações para a ciência, a natureza e a sociedade em geral.  Ele destaca que o cérebro é uma parte do organismo dos cetáceos que entra em decomposição muito rapidamente e, nesse caso, é fundamental a atuação em rede para as etapas de coleta desse órgão de animais mortos durante encalhes. Pela experiência da bióloga com neuroimagem e sua atuação em rede, o vice-presidente do Instituto Orca considera que essa linha de pesquisa também pode no futuro gerar comparativos entre o sistema encefálico de cetáceos e de humanos, trazendo respostas importantes que ainda não foram amplamente desvendadas pela ciência.

“Precisamos avançar em estudos de medicina animal, não somente depois dos animais mortos”, defende Barbosa. Ele acrescenta que avanços também devem ser alcançados nesse sentido, a partir da previsão de implementação de três centros de pesquisa com animais em reabilitação no litoral do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, iniciativas já aprovadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). 

  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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