Enquanto ((o))eco construiu a sua trajetória como referência no jornalismo ambiental, o Brasil perdeu uma área de 40,5 milhões de hectares de vegetação nativa, quatro vezes a extensão do território de Portugal (9,2 milhões de hectares). A maior parte dessas áreas desmatadas (inclui florestas e vegetação herbácea e arbustiva) foi destinada à agropecuária. Os dados disponíveis, referentes ao período de 2004 a 2023, são do projeto MapBiomas que têm monitorado a perda de florestas do país nas últimas quatro décadas, contribuindo para lançar reflexões críticas sobre como o modelo de desenvolvimento nacional tem impactado a natureza, podendo orientar tomadas de decisão com as séries históricas divulgadas.
Nas últimas duas décadas, a perda de florestas, equivalente a 35,8 milhões de hectares, se concentrou principalmente na Amazônia e no Cerrado, como destaca Júlia Shimbo, coordenadora Científica do Mapbiomas e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). No entanto, demais biomas como o Pampa e outros também foram afetados pela conversão de vegetação nativa para o desenvolvimento de atividades produtivas, sobretudo, com enfoque na agropecuária.
A gravidade da situação de seca histórica do Pantanal, por exemplo, impulsionada pelo cenário de crise climática e pelo aumento da degradação ambiental, foi tema de nota técnica lançada em julho pelo MapBiomas. Esses são fatores que têm contribuído para o recorde de incêndios no bioma.
“Essa realidade é preocupante por potencializar impactos causados pelos efeitos das mudanças climáticas”, alerta a coordenadora. Ela ressalta que consequências desse cenário já estão sendo observadas também nos episódios de seca que têm afetado os rios da Amazônia. “Por outro lado, temos os extremos vinculados às chuvas, como aconteceu no Rio Grande do Sul, onde áreas afetadas pelas mudanças de uso da terra podem se tornar inviáveis”, observa a especialista, que defende a necessidade de investimentos em medidas não somente de mitigação, mas principalmente de adaptação para fortalecer a resiliência das cidades brasileiras e promover mudanças em processos produtivos impactantes.
Jornalismo ambiental foi crucial na denúncia da crise Yanomami, afirma Dário Kopenawa
“Somos defensores da Mãe Terra e consideramos ((o))eco como um grande aliado”, afirma Dário Kopenawa, professor e vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), uma das vozes mais atuantes da Terra Indígena (TI) Yanomami, a maior do Brasil, situada entre os estados do Amazonas e de Roraima, ao longo de 10 milhões de hectares (extensão equivalente à de Portugal), onde vivem 32.212 indígenas Yanomami e Ye’kwana.
“Nos próximos vinte anos, precisaremos cada vez mais do jornalismo ambiental para levar à sociedade a cosmovisão dos povos indígenas”, destaca o líder indígena ao conversar com a reportagem sobre o aniversário deste projeto jornalístico e os desafios enfrentados diante da crise ambiental que se torna cada vez mais perceptível no país.
A gravidade do cenário de crise ecológica e humanitária enfrentada na TI Yanomami, com repercussões mais graves em Roraima, foi denunciada em 2022 pelo relatório Yanomami Sob Ataque, lançado pela Hutukara Associação Yanomami e Associação Wanasseduume Ye’kwana, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA).
Kopenawa opina que em cenário de florestas destruídas, rios e igarapés contaminados com mercúrio e comunidades inteiras afetadas por doenças e mortes na maior crise humanitária registrada nos últimos sete anos, provocada pela invasão de mais de 20 mil garimpeiros, o jornalismo ambiental praticado por ((o))eco e por outros veículos de comunicação teve um papel fundamental nos alertas que repercutiram no Brasil e no mundo.
“A situação não está completamente resolvida, mas o governo está trabalhando bastante e o problema tem sido minimizado”, relata em relação às desafiadoras ações de desintrusão da TI, deflagradas desde 2023, tendo completado mil operações em meados deste ano, com redução de alertas de garimpo em 70%.
“O jornalismo ambiental tem um papel importante de levar à população das cidades a preocupação com o que representa a destruição da natureza e para mobilizar a sociedade para a defesa da Mãe Terra. Durante a grave crise ambiental e humanitária que enfrentamos, tivemos o jornalismo como agente de denúncia para o mundo sobre a situação que as nossas comunidades estavam enfrentando”, opina Kopenawa, filho e herdeiro da luta do xamã Davi Kopenawa, reconhecido internacionalmente como uma das lideranças indígenas mais atuantes do Brasil.
Para ele, é importante que os jornalistas estejam atentos, já que ainda há uma parcela do garimpo em resistência em localidades remotas da TI Yanomami e em inúmeras outras Terras Indígenas do país. “A nossa grande preocupação é que têm facções criminosas envolvidas no garimpo e em outros crimes ambientais que afetam indígenas e não indígenas na Amazônia”, alerta. Esse problema tem sido abordado por instituições e inúmeros pesquisadores que vêm analisando essas interconexões criminosas na região. “Precisamos de mais combate pesado para limpar o nosso país das ações do garimpo”, conclui Kopenawa.
Obras de infraestrutura também impactam florestas e comunidades, alerta ambientalista
“As perdas ambientais não são eventuais. Percebemos que os instrumentos de políticas públicas usados estão sendo ineficientes, já que não estamos conseguindo deter amplamente esses processos impactantes”, observa Sérgio Guimarães, secretário-executivo do GT Infraestrutura, rede de articulação socioambiental que reúne cerca de 50 organizações da sociedade civil.
O ambientalista ressalta que diante do atual cenário de grande preocupação com os efeitos da crise climática, representa uma temeridade a opção pelas grandes obras de infraestrutura, sobretudo na Amazônia. Ele menciona a EF-170, conhecida como ferrovia Ferrogrão, projeto de quase mil quilômetros entre Sinop (MT) e Itaituba (PA), divulgado como prioridade pelo atual governo, como um dos grandes equívocos da gestão pública. Estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) já apontou que os impactos do desmatamento, resultantes dessa obra, partirão ao meio Terras Indígenas do Xingu, podendo causar prejuízos da ordem de 1 bilhão de dólares associados ao aumento de emissões de carbono e outros gases de efeito estufa, entre tantos outros impactos socioambientais.
Além disso, o asfaltamento da BR-319, no percurso entre Manaus e Porto Velho, é outra iniciativa que ampliará a perda de florestas nativas causando grandes impactos socioambientais em comunidades que vivem nesses trajetos, segundo alerta o ambientalista. “As populações estão assustadas com tudo isso”, afirma. Esse é um projeto de infraestrutura cuja licença prévia foi recentemente suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).
Antes dos processos de licenciamento, ele menciona a necessidade de utilização de mecanismos de escuta e diálogo com povos indígenas e outras populações que serão afetadas. “Não queremos ver a repetição de erros como aconteceu com a Usina Hidrelétrica de Belo Monte que opera com baixa capacidade e altos impactos, como inclusive já estava previsto”.
“O Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] tem sofrido muita pressão política para aprovação de grandes projetos de infraestrutura e não consegue resistir, na maioria das vezes, já que foi sucateado no governo anterior”, opina. “Além disso, há grande pressão dos governos estaduais. Sem contar que o governo federal é um governo de coalizão e há grandes interesses econômicos e políticos conflitantes em jogo”, acrescenta.
Quando indagado sobre o que mudou na agenda ambiental nos últimos vinte anos, tempo de existência de ((o))eco, ele reitera que “as mudanças climáticas passaram a representar uma situação dramática”. “Seja pela água ou pelo foco e pelas secas extremas, estamos vivendo uma realidade que se tornou a pior possível em áreas da Amazônia, do Pantanal, entre outras”, lamenta.
Como avanços, ele opina que tem sido de grande importância a atuação de projetos como o MapBiomas e de instituições públicas como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cujos dados monitorados dão a real dimensão de problemas como desmatamento e incêndios para que a sociedade brasileira possa se apropriar de informações qualificadas e os tomadores de decisão possam agir.
“Eu tenho pensado muito sobre a crise ambiental como uma crise em consequência de um modelo esgotado. Temos que trabalhar nas causas dessa situação, cuja tendência é se agravar”, alerta. “O desmatamento é resultado da frouxidão na implementação de políticas públicas, principalmente nos anos de desmonte que enfrentamos. É também reflexo da falta de consciência de alguns setores que não conseguem reconhecer que todos nós seremos afetados. As ondas de calor são um exemplo disso. Por enquanto, as populações vulneráveis estão pagando o preço mais alto. Mas em médio e longo prazos todo mundo pagará”, analisa.
Por fim, Guimarães resgata uma frase de José Lutzenberger, uma das maiores referências do ambientalismo brasileiro, que considerava “todo ganho ambiental como provisório”.
Organizações da sociedade civil pedem mais rigor na gestão de riscos socioambientais
Em Nota Técnica entregue recentemente à Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, e à Advocacia-Geral da União, um grupo de 11 organizações da sociedade civil pediu a edição de um Decreto Federal que trate da gestão de riscos climáticos e socioambientais no setor financeiro. O documento também foi enviado ao Ministério da Fazenda e aos quatro reguladores financeiros (Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários, Superintendência de Seguros Privados e Superintendência Nacional de Previdência Complementar), entre outras instituições.
“Os reguladores financeiros brasileiros estão entre os primeiros no mundo a incorporar essas questões em suas normas prudenciais, mas essas iniciativas estão se desenvolvendo de forma heterogênea. O que buscamos é que estejam alinhadas, para poderem ser mais efetivas”, diz Luciane Moessa, diretora-executiva e técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), entidade que liderou a iniciativa.
Segundo a executiva, “esse movimento é bem evidente no agronegócio, que se financia cada vez mais por LCAs (Letras de Crédito do Agronegócio), CRAs (Certificados de Recebimento do Agronegócio) e FIAGROs (fundos de investimentos focados no agronegócio)”. Ela explica que, por outro lado, “as empresas que cumprem as normas socioambientais e têm bom desempenho recebem na maioria das vezes tratamento similar às que não fazem isso”. “É por conta desse tipo de incoerência que propomos esse alinhamento, pois não adianta um regulador financeiro fazer o dever de casa e outros não, deixando brechas para que empresas com desempenho insustentável continuem sendo financiadas e recebendo cobertura de seguros”, acrescenta Moessa.
*Editado às 23h20 do dia 02 de setembro de 2024.
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