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Os parques da discórdia II

Para entender o que os faxinais têm a ver com a conservação da paisagem de Prudentópolis, só conversando com quem mora neles, como faz a advogada Vânia Santos.

12 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Da varanda de Alfredo Basílio Michalzuc, a vida do faxinal parece tão bem regulada pelos costumes imutáveis que os bichos cumprem sozinhos sua rotina de criação doméstica. Passam o dia misturados na beira do mato, fuçando, ciscando ou pastando livremente no território comum onde a ausência de cercas dá a impressão de que nada tem dono. Mas, pouco antes do escurecer, eles se dispersam e voltam para casa, como se um toque de recolher restabelecesse no campo a propriedade privada.

E como é que os Michalzuc sabem o que é de quem? “Isso os bichos sabem”, responde Slauka, a mulher de Alfredo. Os porcos estão acostumados a dormir em seus chiqueiros. As galinhas só esperam a portinhola abrir para se encarapitar em seus poleiros. E chega uma hora em que até as vacas vêm se encostar na cerca do curral, como se estivessem pedindo para entrar. “Porco bem tratado só vai longe na época do pinhão”, diz Slauka.

Mas pinhão é coisa que mesmo ali, em Prudentópolis, um município cujo melhor produto é a paisagem, o interior do Paraná tem cada vez menos. Até duas ou três décadas atrás, ali foi lugar de serrarias. E elas passaram seu pente fino nas matas de araucárias que ainda povoam as lembranças de Slauka. “Pinheiro? Nossa, como tinha. Quando a gente precisava de lenha para cozinhar, era só pegar do chão. Isso aqui era cheio de pinheiro. Mas cada um pegou sua parte e vendeu”, diz ela.

“Isso foi lá por 1965”, explica o marido. Alfredo está com 50 anos. Cresceu num tempo em que os meninos iam para a escola “pelo meio do mato”, ouvindo no caminho “grito de papagaio e gralha azul”. Seu avô foi da geração “que abriu o vale” para a colonização ucraniana, “desbugrando a terra”. Seu pai ainda “derrubava pinheiro grosso no machado”. Seu irmão “subia nas árvores em frente de casa ia longe, pulando de galho em galho”.

Havia naquelas terras “muita madeira boa”, como peroba, canela e imbuia, para não falar das araucárias. Mas havia também muita serraria, como “a do Shefrenski, do Ternuski”. A maioria delas já foi desmanchada. Mas o estrago que elas largaram para trás foi suficiente para deixar Alfredo vacinado para sempre contra as tentações do progresso a qualquer custo. “Ganhar só dinheiro não interessa para mim”, ele comenta, sem pôr nas palavras a ênfase que, em outra boca, tentaria confeitar a frase com uma lambuzada final de credibilidade.

Alfredo não trabalha com retórica. Mesmo falando manso, ele é um dos líderes da resistência aos legisladores municipais que, de uma hora para outra, resolveram tomar conta do tesouro ambiental de Prudentópolis, que há mais de um século estava entregue, entre igrejas bizantinas, festas eslavas e casas de madeira, pelas sólidas tradições dos imigrantes que povoaram Prudentópolis. Ele fala pela associação dos faxinais. E ela não aprova os parques municipais, por achar que mais cedo ou mais eles trarão para dentro de suas terras a ameaça de desapropriação.

Slauka e Alfredo estão casados há quase 30 anos. Criaram-se “a menos de cinco quilômetros” um do outro. E, para os padrões locais, são prósperos. Os maiores proprietários do faxinal têm no máximo 50 alqueires. Eles têm 15, onde criam duas vacas, que dão de sobra para o leite e a manteiga da família. “Se tiver mais, só estraga”, diz ela. Recentemente, compraram um trator e “o cavalo ficou debalde”, segundo Slauka. Plantam milho, soja, mate, feijão – em resumo, tudo, porque ali “só não dá arroz”. Todas as verduras que lhes chegam à mesa vêm da própria horta. Criam galinha, porco, bagre, tilápia e até “um boizinho novo”.

O casal tem telefone celular e carro. Mora a 18 quilômetros da cidade. Mas produz a maior parte do que consome. Para o dinheiro que banca as outras despesas, cultivam tabaco, que secam a poucos metros da casa. “Duas secas de fumo pagam a compra de dois meses”, diz ela. Luxo no faxinal é comer com fartura. E para isso funciona o velho regime de exploração coletiva dos lotes coloniais, que permite a quem não tem um palmo de chão soltar seus animais nos terrenos dos vizinhos.

“Faxinal tem os que tem terra e os que usam a terra, todos morando mais ou menos juntos”, traduz Alfredo. E Slauka completa: “Se isso acabar, o povo daqui vai sofrer muito. Como é que pobre vai ter carne? E quando chegar a Páscoa, como é que vai fazer se não tiver um porco para assar? Um porco pequeno está por mais de 300 reais. Quem é que pode pagar tudo isso?”

No dia seguinte, a pergunta que Slauka deixou no ar seria respondida por sua sogra, Josefa, que mora a 200 metros do filho: “Vaca não come terreno”. Logo, pode pastar à vontade, que a posse continua onde sempre esteve. Nesse meio onde os vínculos de sangue se confundem com as relações de vizinhança, o regime parece tão natural que seus devotos têm dificuldades para defini-lo em termos tirados diretamente do cotidiano. “As casas aqui são uma do lado da outra. A gente vê o vizinho se apertar. Se estou bem e meu vizinho não está bem, eu vou ter que passar a chave em tudo”, Alfredo esclarece.

Sua mãe está com 85 anos. Teve 11 filhos. Nove “casaram-se por aqui mesmo”. Os outros moram na Barra Vermelha, que fica a poucos quilômetros de distância. Tem 60 netos e 20 bisnetos. Por essas e outras é que ali “todo mundo é parente”. E não é à-toa. Vindos sobretudo da Polônia, sem falar português, aqueles colonos – escreveu a pesquisadora Cecília Hauresko, num estudo sobre a etnografia dos faxinais – “foram se agrupando de forma que lhes fosse assegurada a sobrevivência ou, na pior das hipóteses, fosse-lhes garantida a expressão e a comunicação, visto que se comunicavam apenas em ucraniano. Os primeiros imigrantes que chegaram foram salvos pela vida em grandes grupos, criaram ali inteiras colônias e assim foi possível a ajuda em conjunto. Eles formavam uma só família, até tratavam um aos outros como irmãs e irmãos”.

Essas coisas duram. Josefa nasceu em outubro de 1920, mas seu registro é de fevereiro. “Quando meu pai ia a Imbituva, que era sede de comarca, aproveitava para registrar os filhos e as terras”, diz ela, que comemora seus aniversários em 14 de outubro, por ouvir a mãe dizer que a data devia ser essa. “Nasci, cresci, criei família e faço questão de morrer aqui”, ela afirma. Na vida, só fez uma viagem para longe de Prudentópolis. Foi a Aparecida do Norte. Tem cinco imagens da santa na sala de sua casa que, como é costume na região, faz parte da cozinha.

Aos domingos, sua casa fica entupida de parentes. Mas ela não abre mão de cuidar pessoalmente do serviço, “inclusive varrer”. Gente parada, a seu ver, acaba ficando nervosa. É por isso também que não gosta de televisão, embora tenha um aparelho desligado na sala. “Quando liga, fica todo mundo quieto, calado, olhando”, ela argumenta. Já passou por cinco cirurgias. Na última, os médicos puseram-lhe uma tela na barriga, “que nem no chiqueiro dos porcos”. Mas não precisa de óculos, a olho nu passa linha em agulha “de primeira” e, quando vai à cidade, dispensa acompanhantes, porque é capaz de levar na memória toda a lista de compras.

Ela é da época em que a área rural de Prudentópolis não passava “de mato escuro, cheio de macacos”. Hoje, diz Josefa, “o pessoal faz lavoura no capim”. A viagem a Imbituva levava um dia, de carroça. Não havia estrada, médico, farmácia, “nada”. As crianças aprendiam em casa a falar em ucraniano e só na escola tomavam contato com a língua portuguesa. Uma vez por ano seu pai ia a pé até Ponta Grossa, tocando a criação que levava para vender na cidade.

No faxinal, ela viu muita mudança. Mas o que sobrou mais ou menos intacto dá de sobra para mostrar aos forasteiros os benefícios da teimosia, que manteve do lado de fora as tentações do agronegócio. “Como as crianças vão viver sem um pingo de leite, de banha? Temos que lutar para ver se o faxinal continua como está. Senão, vai tudo para a cidade e lá não tem comida”, afirma Josefa. Para ela, “os poderosos” estão de olho naquelas terras, porque os colonos conseguiram mantê-las em melhor estado do que as outras, onde “as pessoas só querem saber de lavoura”. A seu ver, “quem tem poder e dinheiro não gosta de criadouro, só quer fazer plantação”.

E é contra isso que seu filho anda brigando. Embora suas suspeitas estejam voltadas neste momento para os projetos de unidades de conservação da prefeitura, elas têm raízes mais fundas, fincadas nos esforços da administração municipal para substituir os faxinais por formas mais rentáveis de agricultura. Não é fácil confiar num governo que ora promove o desmatamento, ora defende as florestas. Alfredo acha que está na hora de pensar “num faxinal modernizado, com criação de raça, pastos tratados com calcáreo, com as famílias ganhando um dinheiro extra com o turismo”.

Em outras palavras, aquelas de sempre, ele quer mudar para que tudo continue igual. E, melhorando a renda dos moradores, daria para sustentar mais famílias no faxinal, evitando que elas dêem o mal passo rumo à cidade, onde “acabam na Vila da Luz”, a única favela de Prudentópolis. “Vai lá ver como elas estão agora. No interior todo mundo se conhece e se ajuda. Na cidade, não. Esse pessoal vende a terra por 20 mil, 40 mil, compra carro e, quando vê, o dinheiro acabou na mão deles. Gente do interior não sabe lidar com dinheiro. O filho de um casal que vendeu sua terra hoje trabalha como empregado, dirigindo trator de esteira. E quem comprou está rico com uma tropa de filhos”, conta Alfredo.

Na década de 80, ele tomou conta da igreja local. Cada faxinal tem a sua, uma mais cenográfica do que a outra, quase todas decoradas no meio do campo com pinturas que guardam a influência dos ícones bizantinos, uma herança da colonização ucraniana e dos padres basilianos, que fizeram em Prudentópolis seu primeiro seminário no Brasil e ainda rezam missa de costas para os fiéis, reservando o português para a hora do sermão. Na igreja, Alfredo liderava 200 famílias, como agora pastoreia a associação dos moradores.

Ele luta em duas frentes. De um lado, estão os “ricos”, que compram pedaços dos faxinais, cravando-lhes uma cunha em forma de cercas que, com o tempo, desfiguram todo o sistema que permitia o uso comunal das propriedades. Nesse caso, fala como qualquer ambientalista: “Quem compra terra aqui compra para fazer lavoura. Limpa tudo até encostar na cerca. Aí vem outro, limpa mais um pedaço. Quando a gente vai ver, só tem ricos se encostando”, diz ele.

Do lado oposto, ele enfrenta o programa ambiental da prefeitura, que está no forno desde o começo do ano em Prudentópolis. Segundo Alfredo, dá no mesmo: “Querem fazer um parque municipal? Vão acabar querendo desapropriar, terceirizar tudo”. E com isso, desmembrados, os faxinais acabam ficando inviáveis, como acontece quando “os ricos” começam a fatiá-lo. Alfredo sabe que o problema ficou maior do que a associação. “Sem advogado, estaríamos perdidos”, ele reconhece. E é aí que entra a ONG da Dra. Vânia Santos.

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