A bem preservada ilha da Marambaia, no Rio de Janeiro, hoje pertencente à União e protegida pela Marinha, pode ter parte de sua área entregue a 150 famílias consideradas herdeiras de escravos. A juíza Monique Calmon de Almeida Biolchini, da 1a. Vara Federal de Angra dos Reis, autorizou o Incra a cadastrar os moradores e demarcar a área para titulação de propriedade definitiva.
O pior efeito que essa decisão pode ter sobre o meio ambiente é tornar a ilha de mata atlântica vulnerável à especulação imobiliária. Mas segundo Mário Lúcio Machado Melo Junior, superintendente regional do Incra, isso será legalmente inviável. Por se tratar de área quilombola, o título de posse será coletivo e inegociável. “Esse título é específico para quilombolas. É para uso residencial e sobrevivência sustentável. Eles não podem vender a terra”, explica, “Não tem a história do ‘meu terreno’, não se divide como propriedade privada”.
Procurador da República da região de Angra dos Reis, André Vasconcelos defende o mesmo raciocínio. Para ele, no momento em que os atuais moradores, ou seus descendentes, decidirem deixar o local ou mudarem de estilo de vida, eles deixarão também de ser quilombolas e perderão o direito sobre a terra, garantido pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. “Eles não podem negociar a terra. O objetivo da Constituição é defender o direito a uma cultura, não a um tipo de reforma agrária”.
Polêmica
O procurador Vasconcelos entrou com uma ação na Justiça em 17 de janeiro contra a Marinha brasileira por ter impedido a entrada de funcionários do Incra na Marambaia no fim do ano passado. Há um outro processo em curso contra a intenção das Forças Armadas de retirar a população quilombola da ilha para transformá-la integralmente numa área de exercícios militares. O resto da restinga de Marambaia já é utilizado pela Aeronáutica e pelo Exército para este fim, o que serve de estímulo para a sua conservação.
O Eco procurou a Marinha para esclarecer a questão, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Em janeiro, quando fui à Marambaia para acompanhar pesquisadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em trabalhos de campo, indaguei oficiais sobre o problema. Como resposta, ouvi que o caso corria em sigilo e que eles não tinham permissão para falar. Por outro lado, presenciei almirante e comandantes comemorando o aniversário da unidade da Marinha na Marambaia, o Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (Cadim), em um churrasco junto com os quilombolas.
Uma pesquisa na internet sobre o tema mostra quanta poeira o processo de regularização das terras da ilha já levantou. E o nível de mobilização que famílias que dependem de navios da Marinha para viajar até o continente conseguiram alcançar. Existe um endereço eletrônico chamado Dossiê Marambaia que tem como objetivo reunir provas de que a terra realmente pertence a descendentes de escravos do comendador Joaquim José de Souza Breves, o Barão do Café, que foi dono de boa parte da região no século XIX e traficava negros. Segundo os moradores, antes de morrer, ele doou verbalmente a propriedade para ex-escravos. A procuradora-geral Ana Maria Lima de Oliveira, da Fundação Cultural Palmares (FCP) – órgão público ligado ao Ministério da Cultura -, alega que a descendência foi comprovada por estudos antropológicos e é irrefutável. Mas há controvérsias. Principalmente por parte da Marinha.
Em uma carta publicada no Dossiê Marambaia, datada de abril de 2002, o Capitão-de-Mar-e-Guerra Antonio Carlos Fonteles Juaçaba, então diretor do Cadim, afirma que em nenhum momento existiram quilombos na Marambaia. “(…) Importante destacar que a conformação da ilha, em função de sua reduzida dimensão e pela presença de elevações de pequeno porte, constitui, ainda hoje, um verdadeiro ‘beco sem saída’. Logo, seria impossível que escravos fugidos nela estabelecessem um acampamento fortificado, ou seja, um quilombo, pois seriam facilmente capturados”, escreve. Em seguida expõe a versão da Marinha para a origem da população ali presente. Depois da abolição da escravatura e do falecimento do comendador, a fazenda teria ficado abandonada e “suspostos descendentes dos empregados” permaneceram na região. Em 1905, o território foi integrado ao patrimônio da União e a partir de então funcionaram ali uma escola de Aprendizes-Marinheiros até 1910 e, vinte anos depois, uma escola técnica de pesca, desativada em 1971 com a inauguração do Cadim. Nessa época, funcionários da antiga escola também teriam fixado residência na ilha.
Apesar dos quilombolas não poderem revender a terra, eles ficarão livres para desmatar áreas, fazer roçados e construírem novas casas, desde que respeitem os limites impostos por lei. Segundo a procuradora-geral Ana Maria Lima de Oliveira, a função de fiscalizá-los será do Ibama, mas ela não acredita que eles tenham interesse em degradar o meio ambiente. “Eles têm uma relação com a natureza que a gente não tem”, diz.
Quarta-feira, dia 15, funcionários do Incra desembarcaram na Ilha da Marambaia cheios de equipamentos de medição para demarcarem os limites da terra que deverá ser repassada aos quilombolas. Os cálculos serão baseados em trabalhos antropológicos e no depoimento dos próprios moradores. Mario Lúcio não soube dimensionar o quão grande pode ser essa área, mas se for o que mostra um mapa exposto no Dossiê Marambaia, a União terá que entregar boa parte da ilha ao cuidados dos quilombolas. Incluindo a maioria das praias e uma área estudada por pesquisadores da UFRRJ por sua biodiversidade. O relatório final do Incra sobre a demarcação da terra só deve ficar pronto em meados de março.
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