Reportagens

Rádio o quê?

Simpósio reúne pela primeira vez no Brasil pesquisadores que mexem com tecnologia de ponta para saber o que os bichos fazem mesmo quando não podem ser vistos.

Manoel Francisco Brito ·
17 de fevereiro de 2006 · 19 anos atrás

Radiotelemetria.

O Aurélio diz que é a “telemetria realizada por meio de ondas radioelétricas” – o que no fundo não quer dizer muita coisa. No Houaiss, uma ida à letra T em busca da definição de telemetria dá uma ajudinha: “arte de medir distâncias… técnica de obtenção, processamento e transmissão de dados a longa distância”. Serve para entender o conceito, mas não exatamente explica por que esse assunto, com toda a pinta de ser monotonamente técnico, está sendo tratado nas páginas eletrônicas de O Eco.

Essa parte é fácil de resolver. Desde a década de 70, a radiotelemetria vem sendo usada no Brasil para rastrear bichos em seus habitats. Basta equipá-los com radiotransmissores e munir pesquisadores com receptores capazes de receber seus sinais e, diz Robert Kenward do Center for Ecology and Hydrology, da Inglaterra, uma das principais autoridades no tema, eles estarão prontos para “achar um animal quando quiserem e não somente quando ele está no seu campo de visão”.

Bem, essa é a idéia. Infelizmente, não é tão simples assim. “Não é nada igual aos filmes de James Bond”, diz Peter Crawshaw, que começou a usar a radiotelemetria em 1978 para acompanhar onças no Pantanal. Em outras palavras, nesses quase 40 anos, apesar dos avanços – hoje é possível rastrear animais até com o auxílio de satélites – ela ainda tem muitos limites.

Antônio de Pádua Almeida, biólogo do Projeto Tamar, que desde o ano passado começou a instalar transmissores em tartarugas que visitam a costa brasileira para rastreá-las através de satélites, explica que os sinais enviados só podem ser captados lá do alto se elas estiverem na superfície, porque quando mergulham a água salgada impede a emissão. E mesmo quando um satélite capta o sinal, não quer dizer que a localização seja perfeita. “Ela só é exata se a tartaruga estiver exatamente embaixo da rota de passagem do satélite”, diz Almeida. Caso contrário, a localização pode ter um erro que varia de um a mil metros. Apesar dos problemas, poder acompanhar um bicho com ciclo de vida tão complexo – marcado por longas migrações e longo período de maturação sexual – quando ele está longe das praias é fundamental para definir políticas mais precisas de conservação.

Almeida, Crawshaw e Kenward estiveram reunidos durante dois dias na Universidade Estadual de Londrina com estudantes e outros pesquisadores no I Simpósio de Radiotelemetria do Brasil. O encontro foi organizado pelo pesquisador José Eduardo Mantovani, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que desenvolve um projeto com a pesquisadora Tânia Sanaiotti, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), para rastrear gaviões-reais na região Norte do país. Mas em se tratando de radiotelemetria, Mantovani faz muito mais do que isso. Em abril do ano passado, ele criou um fórum de discussão do tema na internet que têm hoje 148 cadastrados.

Preço e burocracia

Mantovani é também o único que fez um levantamento — informal, como ele mesmo aponta — sobre quem usa esta tecnologia para pesquisar fauna no Brasil. Os dados são de 2003. “Há 36 grupos trabalhando com radiotelemetria. A maioria, 95%, utiliza transmissores VHF, que têm alcance mais limitado”, diz. Dois por cento trabalham com equipamentos que empregam VHF para a transmissão de dados e GPS para a localização dos animais. A maior parte desses pesquisadores encontra-se em universidades e acompanha peixes de rio e mamíferos terrestres.

Mantovani também tem uma lista dos principais problemas que afetam o trabalho dessa turma. Eles são, pela ordem, custo, burocracia, dificuldade de captura de animais e inadequação dos equipamentos às condições do país.

A questão do custo é uma barreira que ainda deverá por muito tempo impedir a propagação da radiotelemetria no Brasil. Os equipamentos são importados, e mesmo lá fora são caros. “O preço varia entre 100 dólares para radiotransmissores em VHF a até 2 mil e 500 dólares para os que empregam tecnologia de GPS”, informa Kenward. Além dessa conta, paga-se também um preço alto para andar atrás dos bichos equipados com transmissores. É que as ondas tem um limite geográfico de propagação. Dependendo da potência do equipamento, não é preciso ver o bicho para saber onde ele está, mas é necessário estar relativamente por perto.

Não há como acompanhar uma onça no Pantanal sentado dentro de um apartamento em São Paulo. É obrigatório se deslocar no mato, acompanhando os sinais. Vale andar a pé, a cavalo, de carro e até de barco. “Mas o melhor mesmo é buscar os sinais de avião”, diz Crawshaw. Num projeto de radiotelemetria com onças que desenvolveu nos anos 80, 64% das localizações foram feitas voando, coisa que demanda mais dinheiro.

E no quesito financiamento, só quem não parece estar extremamente apertado é o pessoal que trabalha com peixes, graças sobretudo à presença de hidrelétricas nos rios brasileiros. A bióloga Lisiane Hahn, da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, conduz um estudo sobre dourados no rio Uruguai graças ao dinheiro pago como compensação ambiental pela hidrelétrica de Itá. Com o financiamento, implantou receptores em 78 dourados.

Alexandre Godinho, biólogo do Centro de Transposição de Peixes da Federal de Minas Gerais, estuda o comportamento de várias espécies em dez bacias de rios também com o dinheiro de empresas de eletricidade. No seu caso, elas o procuram na maior parte das vezes para realizar estudos de impacto ambiental. “Há muito não preciso fazer projetos para tocar pesquisas. As empresas é que nos procuram”, diz. Quem não tem grana de hidrelétricas, caça com gatos, ou gatilhos.

Capacidade de invenção

Carlos Zucco faz parte de um grupo de biólogos que trabalha no Pantanal com radiotelemetria desde 2000. Eles queriam usar GPS para fazer o acompanhamento de animais em ambiente bastante fragmentado na região. Sem ter os 3 mil dólares necessários para pagar por cada um dos equipamentos, os biólogos resolveram dar uma de engenheiros e construíram uma gambiarra para adaptar em tamanduás-bandeira usando um GPS de mão acoplado a pilhas e um transmissor VHF.

Levou tempo até encontrarem a mecânica ideal de colocar tudo isso junto e descobrir como instalar os equipamentos nos animais. Mas quebrou um supergalho. O grupo já gerou uma tese de doutorado, quatro de mestrado e, no caso dos tamanduás, descobriu que sua atividade e uso da paisagem na região pesquisada é altamente influenciada pela temperatura. Se o dia estiver quente, por exemplo, o bicho tende a descansar quando o sol está alto e se mexe mais à noite. Se o clima fica ameno, a equação muda.

Zucco agora está testando meios de atar o equipamento em veados-campeiros para poder tocar a sua própria tese de mestrado. Contente com os resultados da criatividade do seu grupo, ele ainda reclama muito da burocracia a que são submetidos na hora em que se vêem obrigados a trazer componentes de fora. A Receita Federal, além de impor taxas altas, demora muito a processar a entrada de equipamentos. Não tanto, entretanto, quanto o Ibama para soltar licença de captura dos animais. Godinho, da UFMG, demorou um ano certa ocasião para obter autorização para pescar e marcar peixes. “Outra licença que eu pedi em 2004 ainda não chegou”, diz.

Ter dinheiro, ou criatividade, e capacidade de enfrentar a burocra, é só metade do caminho. Pegar o bicho e meter nele um radiotransmissor é um outro pedaço grande do problema. Lisiane Hanh lembra que ainda hoje ela trabalha sem um protocolo definido para anestesiar peixes na hora de abri-los para introduzir o equipamento. Hoje já tem uma boa idéia do que é preciso. Mas, para descobrir, anestesiou alguns dourados para todo o sempre. No começo, por exemplo, fazia a cirurgia em um isopor cheio d’água, no qual jogava óleo de cravo. “Era pôr o óleo e o bicho virar de barriga para cima para nunca mais acordar”, conta. Levou um tempo para ela descobrir que o óleo, em contato com o isopor, provocava uma reação química nociva aos peixes.

O último obstáculo a ser transposto é a inadequação dos equipamentos às condições ambientais do Brasil. Alguns desses problemas, do ponto de vista tecnológico, ainda parecem intransponíveis. A água atrapalha a propagação de ondas de rádio. Essa situação, lembra Mantovani, deixa a turma que trabalha com radiotelemetria na Amazônia de cabelos em pé. “Além de chover muito por lá, a floresta fica molhada por longo tempo depois que a água pára de cair”, diz. Em resumo, trabalhar com radiotelemetria significa enfrentar um monte de problemas. Mas quem mexe com ela, nem imagina a possibilidade de deixá-la de lado.

“Ela traz resultados imediatos e exatos e permite medidas de manejo da fauna mais próximas da realidade”, diz Hahn. Permite às vezes até contestar o que se imagina ser a realidade. Quando começou a trabalhar com dourados, Hanh guardava no cérebro uma lição importante aprendida nos bancos da faculdade de Biologia sobre a velocidade do peixe que subia um rio para a reprodução. “A certeza é que o máximo de distância que um peixe cobria era de 21 quilômetros por dia”, relembra. No rio Uruguai, um dourado marcado por ela com radiotransmissor percorreu 61 quilômetros em 24 horas.

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