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Tirando onda: o parasurfe abre o mar para a diversidade 

O surfe quebra barreiras e promove a inclusão de pessoas com deficiência. A experiência de se mover nas maritimidades está alavancando ferramentas de acessibilidade

15 de dezembro de 2025
  • Rede Ressoa

    A Rede Ressoa é um projeto colaborativo de divulgação científica e comunicação sobre o Oceano.

  • Laura Cristina

    Graduanda em Geografia na Unicamp; autista; bolsista no projeto Ressoa Oceano, sob orientação e coordenação da Prof.ª Dr.ª Germana Barata, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor). Pesquisadora, fotógrafa e escritora.

  • Alexandre Etechebere

    Professor de Educação Física, mestrando em Educação Física Adaptada na Unicamp, integrante do Laboratório de Esporte, Diversidade e Aventura (LEDA)

  • Raquel Cunha

    Professora de Geografia, doutoranda em Geografia na UFPE, integrante do Laboratório de Estudos em Espaço, Cultural e Política (LECgeo - UFPE), artista e pesquisadora.

  • Bruna Regina

    Artista, curiosa sobre as potências do corpo. Bacharel e licenciada em Dança na Unicamp, mestranda em Artes da Cena na mesma instituição.

A praia, no contexto brasileiro, evoca sentimentos de liberdade e prazer, pois está associada a um espaço lúdico, relaxante, sociável e de bem-estar. No entanto, para desfrutá-la plenamente, é preciso combater a normatização do “corpo de praia” – a ideia predominante acerca de qual corpo deve usufruir do ambiente da praia, do mar e ser beneficiado pelas políticas públicas. O acesso a esses ambientes ainda não é uma realidade para pessoas com deficiência (PcD), pois há barreiras físicas de acessibilidade universal e barreiras simbólicas que excluem e territorializam outras possibilidades de vivenciar a maritimidade. 

Estar sobre uma prancha, sustentado pela água e em diálogo constante com o imprevisível, reverte padrões, gerando autonomia real e vívida.  Essa experiência, quando acompanhada de acolhimento, orientação técnica e um ambiente seguro, transforma cada gesto em possibilidade de reconstrução.

O corpo, como a escritora Adrienne Rich nos lembra, é a nossa geografia mais íntima, é um espaço pessoal e um elo sensorial para as experiências no mundo. Ele carrega trajetórias das nossas vivências e as necessidades que buscamos satisfazer. No mar, o corpo do praticante se torna território de escuta, experimentação e transformação: a flutuação, a força da onda, o toque da água salgada e a interação com a paisagem aquática mobilizam sensações profundas, despertando confiança, entrega e presença. Nesse cenário, o contato com o mar surge como uma potente ferramenta que vai além da inclusão, estimulando uma conexão profunda com o próprio corpo, com a natureza e com o prazer de se satisfazer no mundo. 

A Praia de São Lourenço, em Bertioga (SP), recentemente foi palco de uma vivência de surfe adaptado em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Escola de Surf Riviera, para consolidar o potencial da cidade para o turismo inclusivo com infraestrutura adaptada.

Relatos sobre a vivência de surfe adaptado em Bertioga

Experiência maravilhosa que tive a oportunidade de vivenciar. […] eu e minha filha, ela sempre gostou muito de água, curtiu bastante, nem queria sair da água […]”

“Passando para agradecer toda a equipe organizadora do evento, vocês são incríveis. […], proporcionando esse dia para os alunos da natação, um excelente treino de habilidades sociais. E mostrando que as pessoas com deficiências são pertencentes de todos  lugares”

“Meu esposo, minha filha, meu filho estiveram, e voltaram pra casa transbordando alegria pela experiência que vivenciaram”. 

“Meu esposo está perto de completar 40 anos, teve a oportunidade de conhecer o mar, ele tem muita dificuldade social e de interação, e se sentiu confortável em estar com vocês”.

Maritimidades

O mar e o ambiente aquático, como um todo, são investigações de vivência e representação. As percepções que podem ser notadas pelas pessoas na paisagem, como vento, areia, sol, sal, sabores e odores, são incorporadas nas suas relações. Isso porque, ao entrar em contato com a água, o corpo absorve minerais e outros componentes que provocam reações químicas e orgânicas nele, resultando em sensação de bem-estar. A estreita relação humana com corpos d’água, principalmente no mar, marca experiências de vida importantes para o desenvolvimento de habilidades sociais, técnicas e econômicas. Todas essas habilidades são intrínsecas ao que podemos chamar de maritimidade, ou seja, relações sociais diversas com o mar, seja para trabalho, lazer, espiritualidade, explorações econômicas, políticas e sociais. 

A apropriação do mar, no Brasil, por classes mais altas, é um processo importante para o entendimento dessas territorialidades que disputam o ambiente para satisfação de diversos desejos. Nesse processo, muitos povos locais são desapropriados dos seus espaços de vida. As progressões de disputa pelo ambiente litorâneo seguem o exemplo da Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 3 de 2022), conhecida como PEC das Praias, que sugere a privatização de regiões praieiras. A aplicação dessa proposta pode acentuar a exclusão social ao ambiente de praia, inviabilizando o amplo acesso ao ambiente marinho e degradando o ecossistema costeiro. 

Diante de tais conflitos, o acesso ao mar já é uma realidade restrita a poucos grupos de pessoas, além da ocupação dos espaços públicos e aquáticos por empresas e indústrias. Dada a instituição da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), a restrição do acesso de pessoas com deficiência ao mar é considerada inconstitucional, o que implica a imposição do Estado em garantir o acesso livre e inclusivo, bem como a ampliação da cultura oceânica para todas e todos, inserindo as comunidades nesses espaços.

Surfe adaptado

O surfe adaptado é uma modalidade que consiste em permitir a experiência de uma pessoa com deficiência na prancha. Em uma sociedade que impõe diferentes barreiras para tal grupo, o ato de surfar soa como um grito de liberdade, que permite o contato direto com o mar e diferentes sensações corporais, garantindo o direito ao lazer e ao esporte, conforme previsto pelo Artigo 42 da LBI. A prática, que promove o contato direto com o mar, é vista como um ato de autonomiae oferece diversos benefícios físicos, como a melhoria da coordenação e equilíbrio, além de vantagens emocionais e sociais, como o aumento da autoestima e a redução da ansiedade.

Além das pessoas com deficiência, o surfe adaptado também pode ser utilizado como ferramenta terapêutica para outros grupos, como idosos ou pessoas com depressão. Para que a prática seja viável, é necessário o apoio de projetos que forneçam a estrutura necessária e equipes qualificadas, profissionais da educação, saúde e voluntárias e voluntários. As adaptações incluem esteiras de acesso, cadeiras de rodas especiais e diferentes tipos de pranchas e flutuadores.

Pessoa com deficiência sobre uma prancha no mar. Crédito: Vitória Borges

No Brasil, o projeto Adaptsurf foi pioneiro, sendo inaugurado no Rio de Janeiro, em 2007. Depois, outros projetos foram sendo criados, promovendo o acesso da PcD ao surfe adaptado, tanto no contexto de lazer e reabilitação, como no âmbito competitivo. Por mais que enfrente as barreiras da sociedade, o surfe adaptado é bem estruturado e possui muitos praticantes no Brasil e no mundo. No último campeonato mundial de parasurfe, houve a participação de 25 países, contemplando todos os continentes, dado que demonstra que a prática do surfe adaptado já faz parte de diferentes culturas e ainda tem muito potencial de crescimento.

Parasurfe

O parasurfe é a modalidade competitiva do surfe adaptado, com atletas divididos em 9 classes funcionais. Apesar de ter uma estrutura de alto rendimento, com campeonatos mundiais promovidos pela Associação Internacional de Surfe (ISA, na sigla em inglês), o parasurfe ainda não faz parte dos Jogos Paralímpicos, mas há uma mobilização para sua inclusão a partir de 2032. O acesso ao parasurfe se restringe às pessoas com deficiência que são enquadradas nas classes funcionais, sendo toda a conjuntura do esporte competitivo alocada apenas para quem faz parte desse recorte. Entretanto, mesmo não dando acesso ao campeonato mundial, a Confederação Brasileira de Surf (CBSurf) promove baterias destinadas a pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), deficiência auditiva e deficiências intelectuais.

Em agosto de 2024, foi aprovado um programa pelo Ministério do Esporte denominado Maré Inclusiva, que oferecerá a prática do surfe adaptado e parasurfe, objetivando a melhora da qualidade de vida, autonomia e inclusão na sociedade como um todo. O programa garante 50% das vagas para meninas e mulheres e tem como meta promover, apoiar e fomentar a criação de núcleos de atendimento gratuitos voltados ao parasurfe, possibilitando, assim, o impulsionamento da modalidade. O Brasil é bicampeão mundial por equipes e possui um vasto histórico de medalhas individuais em campeonatos da ISA. Foram conquistadas 57 medalhas individuais, sendo 24 de ouro, 17 de prata, 9 de bronze e 7 de cobre, nos últimos 10 anos.

Diferença entre Surfe Adaptado e Parasurfe 

Surfe Adaptado: Prática realizada por qualquer pessoa com deficiência física, intelectual, visual, auditiva ou com transtorno do neurodesenvolvimento, sem nenhum tipo de restrição na participação. Com foco terapêutico e de lazer, é permitido diferentes adaptações e suporte de monitores. 
Parasurfe: Utiliza a mesma estrutura do Surfe Adaptado, porém, com foco competitivo. Nas competições oficiais, participam apenas os atletas que são elegíveis nas 9 classes funcionais (7 para deficiência física e 2 para deficiência visual). Em tais campeonatos, é onde se concretiza todo processo de treinamento para as demonstrações das habilidades do Parasurfe, tendo como critérios de avaliação a técnica, grau de dificuldade, combinação de manobras, variedade, velocidade, força e fluidez. Há suporte de monitores apenas para alguns casos em que é necessário por segurança.

No Brasil, há um destaque de melhores praias para o parasurfe: praia da Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, conhecida pelo projeto Praia Para Todos, que oferece infraestrutura completa de acessibilidade, incluindo cadeiras anfíbias e esteiras na areia, além de apoio de voluntárias e voluntários para a prática do surfe adaptado. A praia do Gonzaga, em Santos (SP) é pioneira, pois abriga a primeira escola pública de surfe adaptado do mundo; a infraestrutura da orla da cidade, com foco em acessibilidade universal, torna a experiência ainda mais completa. Além disso, a cidade de Guarujá (SP) também conta com projetos como o Surf Special, na Praia das Astúrias. Além disso, há uma série de locais na costa brasileira, de norte à sul, em que se encontra pessoas com deficiência praticando a modalidade em questão e demonstrando suas potencialidades e habilidades dentro do surfe. 

Em maio de 2025, foi realizado um projeto de surfe adaptado que levou alunas e alunos da extensão de natação paralímpica da Faculdade de Educação Física da Unicamp para surfar na praia de São Lourenço de Bertioga, no litoral paulista. Na ocasião foi possível vivenciar uma série de sensações que fortaleceram os vínculos entre os participantes, além de proporcionar o surfe para as pessoas com deficiência do projeto de extensão. A experiência contribuiu no acesso ao surfe adaptado, trouxe novas perspectivas e obteve depoimentos de realização e satisfação dos envolvidos. 

Participante da atividade promovida pela Unicamp. Bertioga (SP). Crédito: Vitória Borges

Os esportes e exercícios marinhos são de extrema importância para o desenvolvimento físico e o bem-estar das pessoas. A participação de pessoas com deficiência, idosos e pessoas com mobilidade reduzida potencializam o avanço das leis e tecnologias de acessibilidade, cada vez mais necessárias, e mostram que o mar é um espaço para todas as pessoas, resultando em movimentos de valorização de atividades corporais, educação social sobre o cuidado e a preservação do ambiente oceânico, gerando consciência coletiva quanto ao acesso adaptado e institucional das pessoas em cada lugar. 

Vale a pena ler

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