O livro tinha tudo para se chamar “Não foi por falta de aviso”. Mas seu título, ainda mais pálido do que a capa verde-abacate, parece feito de propósito para pegar o leitor de surpresa. Dentro, as 216 páginas de sermões ambientais tacham de “tarados” os caçadores que abasteciam as colônias gaúchas de sabiás para as grandes festas da passarinhada com polenta. De “idiotas”os madeireiros. De “negociatas”as políticas públicas. De “farsa”o Dia da Árvore. De “horroroso”o futuro do país. De incuráveis a “indolência, preguiça e imprevidência”, que inspiram no Brasil a exploração da natureza, desde que os marinheiros da frota de Pedro Álvares Cabral pisaram no litoral baiano e, sem dar um passo além da praia, colheram os palmitos que reforçariam o serviço de bordo na viagem para a Índia. Em outras palavras, fechado, “O Rio Grande do Sul e a Ecologia” soa manso. Aberto, rosna.
É livro póstumo, editado pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental, com textos de Henrique Luiz Roessler, “um naturalista contemporâneo”. Ou melhor, de um contador que, empregado na Capitania dos Portos, trabalhou de graça a vida inteira como fiscal de caça e pesca. Roessler criou em 1955 a União Protetora da Natureza, uma ONG pioneira. E escreveu semanalmente no suplemento rural do jornal Correio do Povo até às vésperas de morrer, em 1963. Três regimes e quatro constituições passaram pela política brasileira desde que ele pôs o ponto final em suas 301 crônicas. De lá para cá, desapareceu a maior parte das paisagens que ele tentou preservar. Mas as denúncias que fez continuam novas em folha.
Como no caso da reforma agrária, aliada do desmatamento. “Logo após a concentração dos sem terra na Fazenda Sarandi, seguida da expropriação da mesma pelo governo do estado, atacou-se, inusitado e afobado, o trabalho de extração da madeira de lei existente da referida gleba”, ele conta numa crônica datada de junho de 1962, lá vão quase 44 anos. Nela, citava uma CPI da Assembléia Legislativa, quando governava o Rio Grande do Sul o engenheiro Leonel Brizola, tratado anonimamente por “Exmo. Sr. Governador do PTB”. Brizola era o padroeiro do Movimento dos Agricultores Sem Terra. “Master”, para os íntimos.
Esse avô do MST foi a vanguarda das madeireiras nas terras devolutas do estado. Segundo Roessler, a CPI mostrou que nas florestas do governo os “intrusos derrubavam as árvores e as vendiam às serrarias, que ali perto ou até dentro das áreas protegidas se estabeleciam. E a própria administração começou a compartilhar a devastação, vendendo as célebres árvores ‘desvitalizadas’, chamuscadas pelo fogo ou ‘tombadas’, sem que nos contratos constasse a maneira do tombamento, que geralmente era produzido pelos machados”.
E ai do Serviço Florestal se abrisse inquérito contra as invasões. “Imediatamente, a Imprensa, a Assembléia Legislativa e todos os ‘homens de corações bem formados’se bandeavam para o lado dos pobres agricultores sem terra”, diz ele. Como fiscal voluntário, Roessler viajava sem parar pelo Rio Grande do Sul. E ia vendo pelo caminho “caminhões-reboques levando madeira para os depósitos e postos de embarque”, o “céu toldado pela fumaça dos incêndios florestais e pelas queimadas das roças”, as noites iluminadas “pelo clarão das fogueiras e braseiros nas encostas e cumes dos morros” e as “serras mecânicas derrubando árvores centenárias em poucos minutos”.
A extinção era feita às claras. Mas, a julgar pela insistência de Roessler em repetir as mesmas histórias, só ele parecia achar “desconcertante”, por exemplo, a notícia de que o “Instituto Gaúcho da Reforma Agrária abriu concorrência pública para vender 2.568 árvores de grande porte, sendo 1.117 pinheiros, 1.078 canelas, 80 cedros, 1 cabreúva, 20 tarumãs, 148 pessegueiros do mato, 37 açoita-cavalos, 11 ipês, 38 angicos, 28 cangeranas e 10 louros, localizados em terras públicas, no município de São José do Rio Preto”.
Aonde não chegava a reforma agrária, havia o Serviço de Proteção aos Índios, pai da Funai, traficando madeira nativa nas reservas de Nonoai, Guarita, Rio Ligeiro e Cacique Doble. Roessler guardou o depoimento de um cacique “que veio a pé para Porto Alegre, com sua família, para se queixar ao Governador” do “zelador do Toldo, fulano, que vende nossos pinheiros, arrenda nossas terras, faz parceria de plantações com estranhos e nos obriga a trabalhar de sol a sol”. Esse funcionário do SPI “mandou cortar 30 pinheiros grossos, verdes, vendendo a madeira, que é puxada de caminhão para fora do Toldo, nada recendendo nós de um patrimônio que é nosso e que está sendo roubado sob as vistas das autoridades”.
E, faltando o pretexto da política indigenista, qualquer motivo servia para o desmatamento. “Existia no quilômetro 42 da Rodovia Getúlio Vargas”, lembra Roessler mais de uma vez, “uma figueira centenária de grande beleza e porte, que oferecia aos viajantes magnífica paisagem panorâmica, conservada pelos construtores da estrada, que até desviaram o leito da rodovia para poupá-la. Foi abatida à noite pelo bronco colono, como ato de vingança, por ter a estrada cortado a sua propriedade”.
Como voluntário do serviço de fiscalização da caça, ele viu de tudo. Um pequeno agricultor flagrado de noite num charco catando rãs, cujas patas traseiras o filho cortava com tesoura. Um fazendeiro autuado de madrugada com 260 sabiás depenados no porta-malas. Uma professora de escola rural que ganhava dos alunos pássaros mortos por atiradeira como se fossem maçãs.
Acabou convencido de que a sociedade brasileira estava construindo um deserto no cenário exuberante dos trópicos. Há quase meio século, Roessler fez mais que o possível para “alarmar a opinião pública” e “convencer o poder público da necessidade urgente de providências” contra a malversação do “mísero restolho de nossas florestas”. Como não foi ouvido até hoje, não custa ler suas crônicas outra vez.
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