Nos 50 anos de Grande Sertão: Veredas, não custa lembrar que ele não é só o monumental romance de Guimarães Rosa, mas também um parque nacional que, não por acaso, tem seu nome. Mas cuidado para não estragar a festa, comparando o parque com o Grande Sertão do livro, o “sem tamanho”, o que estava “em toda parte” de Minas Gerais a Mato Grosso, de Goiás à Bahia, o que ficava “onde os pastos carecem de fechos”e onde “um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com uma casa”.
Tão desmedido ele era em sua imensidão agreste que nele criminoso vivia “arredado do arrocho da autoridade”. Mas o país mudou demais nesse meio século. E, hoje, os criminosos não dispensam o sertão. Arredados do arrocho da autoridade eles vivem mesmo no meio das grandes cidades brasileiras. No mapa, o Grande Sertão oficial cabe na modesta mancha verde que se encravou como parque entre Minas Gerais e a Bahia. Visto assim, encravado na fronteira dos dois estados, como se um estivesse tentando empurrá-lo para dentro do outro, ele parece mofino.
Está entregue no momento a dois funcionários do Ibama. Mas criá-lo foi uma luta histórica, como as de Riobaldo Tatarana. Entre valentias e negaças, levou pelo menos três anos até o primeiro decreto. Foi obra do governo, mas trabalho de ONG. A Funatura, ou Fundação Pró-Natureza, teve que providenciar seus argumentos, sua localização e até suas verbas, tiradas de um projeto então inédito de conversão da dívida externa em investimentos ambientais. Foi dela também a iniciativa de batizá-lo com um título de obra literária.
Parque e livro
O parque é de 1989. Portanto, 33 anos mais jovem do que o livro. Na ocasião, presidia a Funatura a engenheira agrônoma (e, modéstia à parte, colunista aqui de O Eco) Maria Tereza Pádua, trazendo do serviço público um saldo reservas naturais que somaram oito milhões de hectares só na Amazônia, das muitas que leva em seu currículo. Para a equipe técnica da ONG, Maria Tereza só contratava quem tivesse atravessado, com gosto, as 538 páginas do Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. A leitura obrigatória orientava a corrida para chegar antes da soja, dos fornos de carvão vegetal e dos eucaliptais aos últimos cenários onde as paisagens do livro continuavam reconhecíveis. Um dia, Maria Tereza perdeu-se na exploração do parque. Dormiu ao relento. Para comer, nada. De beber, só o cantil. E no cantil havia cachaça para passar a noite a céu aberto, vendo como teria visto Riobaldo “aquelas estrelas sem cair. As Três-Marias, o Carretão, O Cruzeiro, o Rabo-de-Tatu, o Carreiro-de-São-Tiago”.
Tratava-se de fazer a primeira unidade de conservação nos Gerais. Ou seja, nos confins do Cerrado onde Guimarães Rosa catara anos antes o arsenal de palavras mágicas que davam ao Brasil de suas histórias uma toponímia de país imaginário – Urucuia, Liso do Suçuarão, Andrequicé, Traçadal. Não faz muito tempo, Dieter Heidemann, um alemão que se fez sertanejo como professor de Geografia da USP, bateu os mesmos ermos trilhados pelo escritor em 1952 com o vaqueiro Manuelzão. Onde um encontrara veredas de “belo verde-claro, aprazível, macio”, o outro topou com cupinzeiros, anunciando “veredas mortas” e a “secagem dos buritizais”.
Perdas incalculáveis
A viagem de Guimarães Rosa com Manuealzão teceu o fio das cavalgadas que ele começara a puxar dez anos antes, palmilhando numa sela o Pantanal mato-grossense com o vaqueiro Mariano. Ele foi “o descobridor do paraíso ecológico do Brasil Central”, escreveu o jornalista Franklin de Oliveira, numa época em que “ecológico” ainda era um adjetivo que a imprensa não gastava com pouca coisa e o país ainda não se esquecera de que o Grande Sertão de Guimarães Rosa ia “do estritamente mesológico ao simbólico”. O crítico Paulo Rónai insistiu nisso, ao fazer o prefácio para a primeira edição de Grande Sertão: Veredas.
Meio século depois, o concreto diluiu-se na ficção. O “A ‘mãe das águas’ sofre perdas irreparáveis”, concluiu Heidemann, de sua viagem pelos caminhos de Guimarães Rosa. “Aliás, a morte dos riachinhos acompanha o viajante”. Em suas estradas, contou recentemente no jornal O Estado de S. Paulo o repórter Daniel Piza, “se vêem mais caminhões transportando sacos de carvão, empilhados como um trapézio invertido, do que bois. O carvão é feito a partir da madeira do eucalipto, queimada em amplas carvoarias que são como ilhas terrosas no meio de um mar de árvores, por funcionários que um dia foram ou seriam vaqueiros”.
De onde Guimarães Rosa tiraria atualmente a obra-prima, se o pouco que sobrou dos Gerais está mais ou menos guardado, como relíquia, num parque nacional que mal saiu do papel, nasceu com 84 mil hectares e em 2004 chegou aos 230 mil hectares atuais a duras penas. Sua expansão quase se perde para sempre dois anos atrás na Casa Civil do ministro José Dirceu, que andava ocupado demais administrando o mensalão para pensar nesse tipo de bobagens. Ampliado, menos de 20% de suas terras pertencem ao governo. Falta-lhe estrutura para receber visitantes. Sua folha de arrecadação nunca passou de um renque de colunas vazias, como um buritizal seco.
Só no livro
No entanto, ele é parte inseparável do Brasil que Guimarães Rosa conservou para sempre. Aquele onde “se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente”. Onde, “de repente, com a gente se afastando, os pássaros todos voltavam do céu, que desciam para seus lugares, em ponto, nas frescas beiras da lagoa”. E onde “as pessoas não são sempre iguais, ainda não foram terminadas”.
Ele existia de fato, meio século atrás, quando Riobaldo Tatarana já avisava que, dos Gerais, “de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada”? Vá lá, no Grande Sertão de Guimarães Rosa misturava-se “o conteúdo geográfico bem nítido” com “outros conteúdos vagos e simbólicos”, avisou Paulo Rónai. Mas há 50 anos todos eles pareciam igualmente verossímeis. Hoje, Grande Sertão mesmo só no livro. O outro virou saudade. E, como disse Riobaldo Tatarana, “toda saudade é uma espécie de velhice”.
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