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Mortes e mortes

A diferença na repercussão dos assassinatos de Dorothy Stang e Dionísio Ribeiro revela o costume brasileiro de achar que a pobreza justifica qualquer crime.

3 de março de 2005 · 20 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Nestes dias de tantas mortes violentas no campo, no sul do Pará ou no Rio de Janeiro, — e em muitos outros lugares do país — não se pode evitar algumas reflexões sobre o valor da vida das pessoas em função da política oficial e da propaganda de grupos de interesse.

O lamentável assassinato da freira Dorothy Stang mereceu uma inédita resposta do governo federal que não só enviou prontamente contingentes de polícia e até do Exército — além de uma legião de funcionários públicos das mais diversas áreas — como permitiu a intervenção pessoal de vários ministros com a ordem expressa de achar os culpados (e os acharam) e impor certa ordem na região. Até o presidente da República tocou no assunto reiteradamente, em entrevistas e discursos nas últimas semanas.

Recentemente também foi assassinado de modo covarde o ambientalista Dionísio Julio Ribeiro Junior, que dedicou sua vida à preservação da Reserva Biológica do Tinguá (RJ). A imprensa soube do homicídio porque a organização não-governamental a qual pertencia fez uma denúncia pública. E, felizmente, a resposta dos meios de comunicação esteve à altura do assunto. Mas, com exceção de autoridades locais, os altos escalões estadual e federal não comentaram o crime, nem sequer o Ministério do Meio Ambiente que, no caso anterior, demonstrou inusitada agilidade. A policia foi eficiente e o assassino do ambientalista foi capturado. Uma operação para conter os criminosos foi montada, mas tudo indica que as conseqüências não vão muito além de uma breve exibição da força pública.

Pouco depois que a irmã Dorothy foi morta, seus protegidos e/ou aliados na luta pela terra assassinaram dois “fazendeiros” (diga-se de passagem, reles brasileiros) no sul do Pará, de forma igualmente cruel. A notícia foi brevemente comentada na televisão Mas o chocante foi o fato de nenhuma das autoridades federais — nem o ministro da Justiça, que fazia incessantes pronunciamentos sobre o crime contra a freira — mencionaram que matar fazendeiros também é crime. E isso não é novo. Os bem organizados promotores da luta social contabilizam cuidadosamente seus mortos e esfregam continuamente esses números nos olhos do público, apresentando-os como mártires da luta social. Entretanto, se a contabilidade dos fazendeiros e especialmente de humildes trabalhadores rurais massacrados pelos sem terra fosse feita, poderia ficar evidente que esses últimos nem sempre levam a melhor parte e sequer são considerados vítimas.

A questão não é a defesa dos “com-terra” ou dos “sem-terra”. É evidente que o Brasil necessita de mais equidade na posse dos recursos da produção agropecuária e florestal. O que não é claro é que o método para fazer justiça seja o assassinato, as invasões e o roubo, de uma parte ou de outra. Os grileiros da Amazônia são, sem dúvidas, bandidos. São duplamente criminosos se assassinam para alcançar seus objetivos. Porém, nada na moral ou na legislação permite considerar que os sem-terra possam fazer o mesmo. Menos ainda que sejam perdoados ou tratados de modo benévolo pela autoridade que, a priori, considera sua luta “justa” ou pelo menos “justificada”. Enquanto isso, essas mesmas autoridades considerem que defender a propriedade é uma luta intrinsecamente “injusta”. Essa é a mensagem mais revoltante do episódio dos assassinatos da freira e dos fazendeiros do sul do Pará. Os políticos deste país deram status político à morte da freira e, por outro lado, mantiveram o assassinato dos fazendeiros — que nem eram grandes, poderosos ou ricos — na esfera puramente policial. Nenhum deles se atreveu a lembrar que todos os seres humanos são de igual valor ante Deus e ante a Justiça.

O caso da irmã Dorothy se assemelha ao de Chico Mendes, que foi assassinado no Acre em 1989 por obra de “fazendeiros” — nesse caso, tão pobres como ele mesmo e, sem dúvidas, muito mais ignorantes. Em ambos os eventos, a luta pela terra ou pela posse dos recursos naturais foi entendida como defesa da natureza. Ou então, como agora se fala, como um passo adiante para o uso sustentável da floresta, o que não é tão evidente como alguns supõem. Os dois casos tiveram também uma enorme repercussão internacional pela atrativa mistura de insumos sociais e ambientais. Contrariamente, o assassinato de Dionísio Julio Ribeiro, cuja vida de sacrifícios não cede em nada à da freira Dorothy ou a do Chico Mendes, não mereceu nem uma menção por parte das autoridades “importantes” do país.

Talvez a pouca atenção ao assassinato de uma pessoa como Dionísio seja reflexo do julgamento desinteressado dos políticos do governo. Pode ser até que eles considerem os catadores de palmito e os caçadores presumivelmente gente humilde, gente que tem boa justificativa para matar os que se opõem à suas atividades ilícitas. Afinal, que importam uns palmitos a mais ou a menos e uns poucos bichos que sobram na mata? Quem liga para a vida de uns malucos que andam por ali exigindo que a lei seja cumprida? A pobreza atenua qualquer delito. O governo atual, com a ajuda ativa de organizações sociais de todo tipo, passa a mensagem de que a pobreza justifica tudo, inclusive a violação das leis e até os crimes mais hediondos.

Acredito que tanto o governo como as organizações sociais tenham razão no sentido de que a pobreza é o principal problema da humanidade e, inclusive, que a conservação da natureza (idealizada para que a qualidade da vida humana seja melhor) dependa grandemente da chamada inclusão social. O que é muito mais difícil de aceitar é a reiteração, provavelmente involuntária, de que os fins justificam os meios e de que, em conseqüência disso, a ética pública e a porção do corpo jurídico do país devam se submeter a essa premissa.

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