Kenton Miller recebeu pela primeira vez, há algumas semanas, um prêmio relativamente importante por uma vida inteiramente dedicada a estudar, cuidar e promover as áreas protegidas do mundo, em especial as da América Latina. Ele não é um ambientalista sensacionalista, nem vem da esfera política, tampouco nasceu em berço nobre. Por isso, dentre os muitos ambientalistas norte-americanos da sua geração, foi o último a ganhar um prêmio que em termos de dinheiro é de pouco expressivo. Mas isso não importa. O fato é que ele merece realmente e deveria ser muito mais reconhecido na América Latina.
Kenton Miller, nasceu em Chicago em 1939. Graduou-se como engenheiro florestal na Universidade de Washington e fez seu doutorado na Universidade de Nova Iorque. Desde cedo se orientou ao tema da conservação da biodiversidade em áreas protegidas da América Latina.Assim, durante os 10 anos que trabalhou para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), estabeleceu o Programa de Manejo de Áreas Silvestres do Centro Agronômico Tropical de Investigação e Ensino (CATIE) em Turrialba, Costa Rica, que foi e continua sendo a matriz de grande parte dos especialistas em unidades de conservação da América Latina e do Caribe. Dirigiu o Programa de Manejo de Áreas Silvestres para a Conservação do Meio Ambiente, com sede no Chile, projeto que foi o eixo conceitual do estabelecimento e manejo da maior parte das áreas protegidas da região.
Posteriormente, como professor na Universidade de Michigan, continuou sua tarefa de preparação de profissionais para as áreas protegidas da América Latina, participando no Programa de Treinamento em Administração de Áreas Protegidas em conjunto com o Serviço de Parques Nacionais dos Estados Unidos, onde tantos latino-americanos se formaram. Em 1975 foi eleito, pela primeira vez, presidente da Comissão de Parques Nacionais e Áreas Protegidas (hoje denominada Comissão Mundial de Áreas Protegidas ou WCPA da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Em 1982 foi nomeado nada menos que diretor-geral da UICN, posição que reteve até 1988. Logo passou ao World Resources Institute, um importante think tank washingtoniano, onde exereceu vários cargos até recentemente. Outra vez eleito Presidente da WCPA em 2000, exerceu essa função até 2004, quando por razões pessoais decidiu não se candidatar à reeleição.
Mas a sucessão de posições oficiais, embora de menção necessária, não revela o personagem. Miller é o verdadeiro pai do planejamento de áreas protegidas na América Latina. Seu primeiro livro “Planeamiento de Parques Nacionales para o Ecodesarrollo en America Latina” (publicado em espanhol, o que não é usual para um estadunidense) é até hoje a bíblia dos profissionais em unidades de conservação e, sua intervenção pessoal em muitos dos planes de manejo da área, deixou rastros indeléveis. Ele, por exemplo, assessorou e guiou pessoalmente a preparação do primeiro plano de manejo feito no Brasil (Parque Nacional de Brasília) e, até hoje, os planos inspirados nas suas recomendações são os melhores e mais efetivos, com relação a custo benefício, feitos neste país. Através de vários livros e outras publicações e palestras, é o inspirador do planejamento eco-regional, hoje aceito como norma para a conservação da biodiversidade. Desde muito antes que virasse moda, Miller foi promotor da participação ativa das populações locais no manejo das áreas protegidas e da redistribuição dos benefícios econômicos gerados nelas entre os habitantes locais.
Ao mesmo tempo nunca deixou de colocar claramente que as unidades de conservação são a melhor alternativa disponível para conservar a diversidade biológica e, dentre muitas outras máximas de uso comum na atualidade, foi o primeiro em dizer que “as áreas protegidas são a coluna vertebral da conservação da natureza”. Difícil é detectar algum dos grandes progressos da humanidade no tema da conservação da biodiversidade, dos últimos 40 anos, nos quais Miller não tenha deixado rastros substanciais. Desde a Estratégia Mundial de Conservação da Biodiversidade de 1970 até as inclusões sobre esse tema nos Objetivos do Milênio das Nações Unidas, passando pela Convenção sobre a Diversidade Biológica, todos esses eventos têm rastros indeléveis do pensamento de Kenton Miller.
Para os latino-americanos o mais importante de Miller é, quiçá, o apoio permanente às iniciativas locais, fruto da sua lealdade ao continente onde deu seus primeiros passos profissionais; sua simpatia, simplicidade e modéstia, e sem dúvida, sua coerência entre propósitos e ações. Ainda que cientista e, mais que isso, filósofo da conservação, Miller não é um profissional de escritório. Cada uma das suas propostas é fruto da sua experiência e de suas observações feitas na realidade do campo, nas próprias áreas protegidas ou, também, em tempos mais recentes, na sua modesta propriedade transformada numa reserva natural nas montanhas de West Virginia. Por isso é que os ambientalistas de campo apreciam tanto suas orientações que não são como é freqüente, produto de especulações puramente teóricas ou retóricas. Miller, finalmente, é uma pessoa que nunca foi mesquinha no seu apoio e elogio a outros, como é tão comum no meio.
Na vida pessoal, Kenton Miller e sua esposa Suzana formam um casal fora do comum. Ainda que de profissões muito diferentes, eles têm profundo respeito e compreensão pelas atividades um do outro e, por isso, conseguem se complementar até nos seus respectivos trabalhos. Sem ter sido nunca ricos, pois sempre priorizaram a importância do trabalho sobre as suas compensações econômicas, somaram filhos adotados aos próprios, sempre ajudaram a quem necessita e nunca deram queixa de nada. Sua casa está sempre aberta e é permanentemente alegre e interessante. Isso inclusive quando, como uns poucos anos atrás, Kenton foi ameaçado por uma estranha e prolongada enfermidade do sangue que fez temer o pior e que o afastou temporariamente de parte de suas atividades. Felizmente, isso já passou.
Kenton Miller merece ser conhecido e reconhecido pelo que fez e pelo que sem dúvida ainda fará. O Prêmio Ambiental Alemão, Bruno H. Schubert, que acaba de receber com muito merecimento, é um bom pretexto para falar sobre este grande homem e excelente amigo da América Latina.
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