Aparentemente a convenção das mudanças climáticas globais encontra-se em um impasse. E a base de tal impasse está a incapacidade de olhar para frente. Presos à lógica do retrovisor, os países se acusam mutuamente e, comme d’habitude, imputam a terceiros as suas próprias responsabilidades e, o que é pior, mantendo o problema intocado e insolúvel. Como sabemos, o Protocolo de Kyoto tem o objetivo de reduzir as emissões de gases estufa. Tal redução, no entanto, não vale para todos os signatários do documento, voltando-se apenas para os países do chamado Anexo I, isto é, aqueles considerados desenvolvidos. Os países em vias de desenvolvimento não estão obrigados, nesta etapa do protocolo, a qualquer redução.
O raciocínio do protocolo é bastante simples: a grande maioria dos gases estufa que hoje estão na atmosfera foi gerada no passado, logo, os responsáveis pelas emissões que, majoritariamente, são as causadoras do aquecimento global, é que devem reduzi-las. Um raciocínio simples e, até mesmo, simplista. Assim, quem não integrar o Anexo I pode continuar a emitir gases de efeito estufa sem qualquer problema. O modelo adotado, contudo, empaca na dureza da Realpolitik e da força econômica dos diferentes países desenvolvidos que – do seu ponto de vista – não querem arcar sozinhos com os custos das medidas preconizadas pelo protocolo.
No protocolo, assim como em um bom e velho Centro Acadêmico, as decisões são tomadas pela assembléia e a conta é enviada para a casa dos pais que, sem muita alternativa, acabam por pagá-la. Tudo fica mais fácil e até mesmo mais divertido se, no meio da assembléia, conseguirmos um bom mote para atacar o “imperialismo yankee” representado pela administração Bush (43º Presidente). Não é preciso relembrar o fato de que a administração Clinton também não aderiu aos termos do Protocolo de Kyoto, ainda que tenha se utilizado de uma retórica mais agradável aos ouvidos terceiro-mundistas. Na verdade, a relutância norte-americana em aderir ao protocolo está baseada nos custos que o país terá que incorrer para uma completa adequação do que seria a sua parte no acordo. Entretanto, é forçoso reconhecer que inúmeras medidas vêm sendo adotadas nos Estados Unidos com vistas à redução das emissões de gases estufa. São medidas voluntárias adotadas por muitas empresas, o Mercado de Carbono de Chicago, várias normas estaduais, com destaque para a Califórnia e, pasmem, até mesmo medidas do governo federal. Na verdade, a retórica do governo norte-americano não corresponde à ação da sociedade norte-americana quanto ao problema.
O Protocolo de Kyoto, tal como está firmado, é um belo exemplo de irrealismo político, visto que estabelece obrigações apenas para os países ricos e deixa os demais inteiramente livres para emitirem o quanto desejarem. É óbvio que a posição adotada pelos Estados Unidos, ainda que muito criticável pelo seu unilateralismo, tem como conseqüência uma pressão sobre os demais países “ricos” que passam a ostentar posição desvantajosa na arena econômica internacional. Por outro lado, hoje já se sabe que o crescimento do volume de emissões da China, por exemplo, ultrapassará o dos Estados Unidos antes do que se imaginava. O protocolo, no entanto, não está preparado para lidar com tal situação, visto que construído com os olhos no passado. Aliás, é discutível que os países “em vias de desenvolvimento” não tenham auferido algum benefício com as emissões passadas. Como sabemos, a chamada globalização é um fenômeno muito mais antigo do que parece ser e, seguramente, desde as grandes navegações européias já se pode falar em uma grande interdependência internacional e em divisão internacional do trabalho. Se ela foi justa ou injusta é uma outra questão. Na verdade, a ótica do retrovisor consiste exatamente nisto, enquanto buscamos cobrar “dívidas históricas” deixamos de enfrentar os problemas do presente.
Parece muito pouco provável que países como Brasil, China, Índia e Rússia possam passar incólumes a uma nova rodada de negociações do Protocolo de Kyoto, se é que desejamos ter alguma atuação efetiva sobre as causas antrópicas das mudanças climáticas globais. Neste contexto todo, a posição brasileira é bastante cômoda, visto que a não-realização do prometido “espetáculo de crescimento” faz com que as nossas emissões industriais não aumentem significativamente, diferentemente do que ocorre com a China, por exemplo. Por outro lado, é nas queimadas que reside a nossa maior fonte de emissão de gases estufa.
Queimadas e destruição de florestas podem, com as medidas adequadas, serem estancadas e diminuídas e, utopia realizável, eliminadas. É apenas uma questão de implementar medidas adequadas de incentivos econômicos, fiscalização e punição. Existem exemplos de países que lograram deter a destruição das florestas. O que impede que o Brasil obtenha bons resultados de sua posição privilegiada, visto que, inclusive, é um dos países elegíveis para a aplicação do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo? Além da inexistência de políticas consistentes para a redução da emissão de gases de efeito estufa, não se pode deixar de considerar a pouco inteligente opção de se unir à China que, em matéria de meio ambiente, democracia e direitos humanos, cá para nós, não é boa companhia. No entanto, o fanonismo persiste como um modelo na cabeça dos responsáveis pela nossa política externa.
A inexistência de políticas internas consistentes para a redução de gases de efeito estufa é que faz com que, no âmbito externo, adotemos políticas bastante questionáveis, no melhor modelo do “venham poluir o Piauí”. Na verdade, passamos para os fora internacionais a incapacidade de resolvermos nossos próprios problemas e nos esquecemos que, de uma forma ou de outra, já temos uma estrutura institucional, técnica, jurídica e econômica que, seguramente, não nos colocam no mesmo saco da Índia, da China ou da Rússia. Uma aliança em questões ambientais com tais países é, na prática, uma aliança contra os interesses do Brasil, visto que, nem de longe, damos à nossa indústria ou à nossa agricultura os incentivos ambientais que aquelas nações dão. Basta uma simples olhada na quantidade de obras paralisadas por questões ambientais no Brasil para que se tenha uma visão realista das disparidades ambientais entre os países do chamado BRIC. O mesmo se diga em relação à agricultura. Aqui chegamos ao ridículo de tratar com honras de chefe de estado ao Sr. Bové, que é um dos principais inimigos dos produtos agrícolas brasileiros.
Poucas pessoas têm se dado conta que a política energética brasileira está sendo implementada pelo Ministério Público e pelos órgãos ambientais, com conseqüências contrárias àquelas pretendidas ou verbalizadas. Refiro-me ao fato de que a matriz energética brasileira, essencialmente fundada nas hidrelétricas, tem sofrido alterações que não decorrem de uma opção político-administrativa, mas de circunstâncias geradas externamente ao governo. De fato, as constantes demandas administrativas e judiciais – muitas com fundamentos válidos, outras nem tanto – têm imposto um comportamento ao mercado no sentido de privilegiar às térmicas em detrimento de outras fontes mais limpas. No que se refere à energia nuclear, continuamos em cima do muro, não se engaveta o projeto de Angra III, nem se lhe dá seqüência. Assim, vivemos o pior dos mundos, pois temos os custos sem os benefícios. Todas essas questões e, principalmente, as indefinições fazem com que não tenhamos nenhuma proposta relevante a apresentar no cenário internacional, limitando-nos a reclamar do “imperialismo yankee”, ao mesmo tempo em que pregamos compreensão para a Bolívia.
É evidente que mudanças no Protocolo de Kyoto são necessárias e que os países do grupo BRIC devem promover reduções de suas emissões, se é que queremos um protocolo voltado para o futuro e não para o passado. Caso contrário, o protocolo tende a virar fumaça, sem querer fazer trocadilho. Iniciativas como o biodiesel, por exemplo, são importantes, porém insuficientes. Elas precisam ser conjugadas com ações firmes no sentido de formulação e implantação de uma política energética que tenha por base a redução da emissão de gases estufa. Na verdade, trata-se de uma continuidade em nossa tradicional matriz hidrelétrica, com as adaptações necessárias aos dias de hoje. É necessário, também, que as instituições façam os seus papéis constitucionais sem que a superposição de atribuições e invasões de competência acabem gerando as perplexidades que hoje existem. A política externa é um reflexo da política interna, as incoerências demonstradas pelo Brasil na questão das mudanças climáticas globais, nada mais é do que a reprodução para consumo externo das incoerências praticadas dentro de casa, fruto de uma política construída com os olhos voltados para o retrovisor e não para o futuro.
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