Recentemente foi lançado, sem muito alarde, o primeiro livro de David Quammen publicado no Brasil. Para quem não liga o nome à obra, Quammen é um raro exemplar de jornalista dedicado exclusivamente (ou quase exclusivamente) à conservação da natureza. Em sua obra prima, “The Song of the Dodo: Island Biogeography in an Age of Exctinction1”, as principais idéias da Biologia da Conservação são apresentadas ao leitor de forma precisa mas agradável, contando pequenas histórias, sempre com sensibilidade e talento. Infelizmente para os interessados em conservação, “The Song of the Dodo” nunca foi traduzido para o português. O livro lançado agora no Brasil, “Monstro de Deus – Feras Predadoras: História, Ciência e Mito2”, fala dos grandes predadores – leões, tigres, ursos, crocodilos – e suas relações com o homem ao longo da história.
“Monstro de Deus” me pareceu um Quammen “menor”, não tão inspirado quanto o brilhante “The Song of the Dodo”. Mas quem foi rei nunca perde a majestade. Quammen nunca deixou de se preocupar em escrever bem, em contar histórias bem, e a sensibilidade ainda está lá, com toda força, em várias passagens do novo livro. Dentre elas, dentre todas as numerosas historinhas que se desenrolam e se misturam em “Monstro de Deus”, uma me tocou de forma muito especial. Outros leitores certamente discordarão da minha escolha, preferindo um dos numerosos trechos sobre feras selvagens em seus ambientes naturais. Mas minha passagem preferida é um pequeno e agridoce drama semi-urbano: a história dos ursos de Răcădău.
Răcădău é na Romênia, mas poderia ser em quase qualquer país. Procure Răcădău no Google Images. Eu também não sei como colocar na linha de comando do Google esses acentos malucos do romeno, mas não faz mal, funciona mesmo sem eles. As imagens que você vai encontrar sugerem à primeira vista um lugar bonito e agradável de se viver. É como se fosse um grande condomínio, com numerosos grandes prédios beges, cercados por muito verde. Răcădău parece um grande triângulo de prédios cercado por encostas de morros cobertas pelo que parece ser uma extensa floresta temperada que se perde no fundo das imagens. Mas olhe mais de perto. Os tais prédios beges são pobres, com paredes sujas, com reboco caindo em vários lugares. O que parecia à primeira vista uma grande piscina na verdade nada mais é que um lago artificial bastante árido. Entre os prédios, algumas pracinhas também áridas, e ruas estreitas, sem árvores, opressivamente cercadas de concreto. Răcădău é um condomínio de classe média baixa na periferia da cidade romena de Brasov, resultado dos programas de habitações populares em massa do ditador Nicolae Ceau?escu na década de oitenta.
O que faz Răcădău tão especial? Bom, não há tantos condomínios de classe média baixa por aí onde você possa ver ursos! Aqueles morros que você vê atrás dos prédios, em Răcădău, abrigam uma população de ursos pardos (Ursus arctos). Apenas uma rua de asfalto, que contorna o condomínio, separa os prédios da subida dos morros, e da floresta. Esta rua tem várias grandes caçambas de lixo, onde é depositado todo o lixo de milhares de pessoas que vivem ali, antes de ser recolhido. Em meio a toneladas de lixo inorgânico, há também restos de refeições várias, bagaços de frutas, cascas de ovos, e por aí vai. Aconteceu que os ursos naturalmente acabaram por descobrir esse imenso filão de comida. Toda noite, alguns ursos descem da floresta e vem abrir as lixeiras atrás de restos de alimento no lixo. Nunca se sabe quantos vem, ou quais vem, em cada noite em particular. Fêmeas com filhotes são bastante comuns.
Toda noite, uma pequena multidão se reúne para ver os ursos. Há todo tipo de gente. Gente que trabalhou o dia inteiro num escritório. Funcionários públicos. Aposentados. Casais de namorados que estacionam os carros e ficam vendo os ursos (bom, pelo menos dizem que ficam vendo os ursos). Adolescentes ouvindo música alta. Há até crianças, quem sabe matando o tempo depois da escola para esperar a noite cair e os ursos aparecerem. Finalmente, os ursos surgem saindo da floresta, e cada movimento deles é seguido pelos olhos curiosos de uma platéia heterogênea, por vezes barulhenta, mas quase sempre atenta e respeitosa para com as grandes estrelas do lugar. Os ursos estão habituados com a presença de pessoas, mas não interagem com elas. Remexem demoradamente nas lixeiras, passeiam, encontram um petisco aqui e outro ali, e depois aos pouquinhos vão indo embora.
Os habitantes de Răcădău têm orgulho de seus ursos. Quammen descreve como a camareira do hotel onde ele pernoitava, ao saber que ele tinha vindo à Romênia para ver os ursos, abriu o rosto num sorriso ao dizer que no seu bairro havia ursos. Ela morava em Răcădău, e pelo menos naquele momento tinha muito orgulho disso.
A prefeitura de Răcădău, porém, vive muito preocupada – compreensivelmente – com a possibilidade de que os ursos machuquem alguém. Por isso, instalou lixeiras com tampas especiais projetadas para impedir que os ursos as abrissem. Tentaram três diferentes modelos, um após o outro. Não deu certo. As lixeiras continuam aparecendo abertas. Por que? Os ursos descobriram maneiras de abri-las? Não, não é isso. Quem sabe as pessoas as esquecem abertas? Não, também não é isso. A resposta é mais interessante que essas, e o ponto central do meu argumento. As lixeiras ficam abertas porque os moradores propositalmente as abrem, de forma a permitir que os ursos tenham acesso a elas. A cada noite, portanto, os ursos podem voltar, sabendo que tem boa probabilidade de obter algum petisco.
Não me entenda mal. Não estou, nem por um momento, dizendo que acho ótimo que ursos pardos vivam revirando lixo e sendo uma atração turística local. Para mim, só poderemos dizer que conservamos a espécie urso pardo enquanto houver ursos pardos vivendo na natureza, caçando, pescando e acasalando, como ursos pardos sempre fizeram. O que estou dizendo é que essa população particular de ursos pardos de Răcădău, vivendo nessa condição semi-urbana, simboliza algo muito importante não só para os ursos pardos como um todo, como para nós mesmos.
Para os habitantes de Răcădău, ver os ursos é um dos poucos momentos de excitação, de fascínio, de suas vidas tão cinzas (ou, vá lá, beges). Representam algo diferente, interessante, talvez aventuresco. Mas há muito mais do que isso. Os ursos de Răcădău representam uma janela para um mundo diferente e misterioso.
Muito além das preocupações cotidianas, das relações com os vizinhos do próximo prédio bege, das contas a pagar, os ursos de Răcădău representam o único vislumbre de um mundo onde nada dessas coisas tem a menor importância. Um mundo de ursos, de gralhas, de trutas, de texugos, cada um com suas próprias vidas, suas próprias preocupações, de seu almoço, de seu acasalamento, que desconhecem completamente o PIB, o saldo bancário e a política do governo. Um mundo livre de tudo isso, com seus próprios problemas, seus próprios dramas, um mundo cheio da naturalidade e da simplicidade que tanto nos fazem falta, um mundo que mal entendemos. Os ursos de Răcădău são, para essas pessoas, sua reserva de mistério.
Nossa mente foi imensamente superdimensionada pela evolução. Nosso cérebro nos trouxe até aqui pela sua espetacular capacidade evoluída de compreender as coisas, de juntar e analisar informações. Esse poder de processamento que obtivemos é tão grande que pensamos o tempo todo, tentamos entender o tempo todo, e o mundo tornar-se-ia um lugar muito sem graça se achássemos que já tivéssemos entendido tudo, que não haveria mais nada radicalmente novo para entender. O real não nos basta, não satisfaz nossa curiosidade. Ficamos procurando mundos imaginários ou mistérios. Nada pode ser mais satisfatório como resposta perpétua à nossa curiosidade que um mistério – que afinal nada mais é do que uma curiosidade que nunca pode ser satisfeita.
A natureza sempre nos fornece muitos dos mais interessantes mistérios – não em mundos imaginários, mas em mundos que mal conseguimos imaginar. A perda da natureza, que se acelera nos últimos séculos, representa também a morte do mistério. Não há mais grandes matas virgens, inexploradas, que não façamos a menor idéia do que contenham. Não há mais grandes feras maravilhosas e desconhecidas, que mal imaginamos como sejam. As madeireiras, as “frentes de desenvolvimento”, em última análise a expansão populacional humana, esmagam e fracionam as florestas antes impenetráveis do sudeste da Ásia, abrem à destruição os mais recônditos refúgios na Floresta Amazônica, transformam os antes misteriosos gorilas das montanhas em meros sobreviventes precariamente ilhados num mar de miséria e interesses. Com isso, todo nosso Mundo fica mais pobre – inclusive dentro de nossas mentes. Como será pobre o Mundo no dia, que eu espero que nunca chegue, em que soubermos que não há mais vastidões na Sibéria onde o majestoso tigre de Amur vaga à procura de suas presas, ou savanas africanas onde leoas e zebras desempenham seus papéis em tragédias de força e movimento, ou florestas onde onças machos e fêmeas encenam seus ritos ancestrais.
O grande ecólogo e conservacionista Edward Wilson escreveu um livro sobre o que ele chamou de biofilia3. Wilson argumenta vigorosamente que gostar de bichos e plantas não é apenas algo aprendido, mas sim uma parte essencial da própria natureza humana. Se Wilson está certo, e eu acredito que esteja, é bem provável que o sentimento de biofilia dentro de nós tenha múltiplas raízes. Não ficaria nada surpreendido se descobrisse que a manutenção de um sentido de mistério no mundo é um dos componentes da biofilia.
Espero, claro, que ursos pardos de vida independente continuem sempre existindo. Mas tente fechar as lixeiras de Răcădău. Aposto que não será fácil. Os escriturários, as camareiras, os velhinhos, os namorados, os adolescentes “sem causa”, as crianças não vão deixar. A pequena janela que eles tem para um mundo selvagem e misterioso, mesmo essa janela assim tão estreita, é importante demais para eles.
Isso é uma razão para esperança. Conservar a natureza é uma luta muito difícil e que está fadada a não dar certo enquanto depender apenas de razões utilitárias, as quais sempre vão poder ser contestadas por outros grupos de interesse. Mas a natureza é importante para nós também por outras razões, muito mais sutis, dentro da nossa mente e do nosso inconsciente. Essas coisas são universais, parte essencial de nossa própria natureza. A esperança de um mundo melhor está justamente em que tantas pessoas tão diferentes percebem isso, espontaneamente, sem que seja preciso aprender: pois está dentro delas.
Referências
Quammen, D. (1997). The Song of the Dodo: Island Biogeography in an Age of Exctinction. Simon & Schuster, New York.
Quammen, D. (2007). Monstro de Deus – Feras Predadoras: História, Ciência e Mito. Companhia das Letras, São Paulo.
Wilson, E.O. (2002). Biophilia: the Human Bond with Other Species. Harvard University Press, London.
Fernando Fernandez é pesquisador do Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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