Voltando de Brasília, encontrei no avião Sérgio Bernardes, o cineasta genial, filho do não menos fora de série arquiteto do mesmo nome. Não nos víamos há quase três anos. Do alto de seu corpanzil de um metro e noventa, Sérgio abriu um benfazejo sorriso e sentou-se ao meu lado. Logo iniciamos um papo gostoso em torno de Arnaldo Carrillo, produtor, crítico, dirigente e pensador de cinema sem igual, que o Brasil finalmente homenageará na terça-feira, quando o Ministro Gil e o Presidente Lula colocarão no peito a Medalha do Mérito Cultural Brasileiro.
Passado o quebra-gelo e findo o brinde merecido ao perspicaz Carrillo, Sérgio perguntou-me o quê ando lendo. Mostrei-lhe a página de O Globo, estampada com a recentíssima pesquisa do IBGE reiterando o que todos temos impotente conhecimento há décadas. Nada novo, a matéria de Lydia Medeiros apenas aprofunda a dimensão da tragédia: “As queimadas, apesar da agilidade no monitoramento do problema, tem indicadores preocupantes e não estão sob controle. Em 1998, foram detectados 107 mil focos de calor. Em 2003, foram 212, 9 mil.” Em um instante, foi-se o ar bonachão e alegre de Sérgio Bernardes. Seus 58 anos bem viajados e vividos ganharam feições centenárias, seu corpo de sargento do Batalhão de Choque curvou-se e pareceu reduzir-se às dimensões de um hobbitt.
Como poucos brasileiros, Sergio Bernardes conhece a floresta brasileira e seus dramas pelo viés de suas entranhas. Sérgio tem 37 anos de cinema. Seu primeiro documentário, Desesperato, é de 1967. Já em 1975, foi agraciado com o Leão de Ouro em Veneza. Em 2002 montou o também premiadíssimo Unknown Amazon, exibido no British Museum, de Londres. Sua história cinematográfica está umbilicalmente ligada às florestas e matas brasileiras. Sérgio Bernardes já filmou tudo que há de interessante e belo na natureza brasileira. Desde o Monte Roraima à Floresta da Tijuca, passando pelo Pantanal e pelo Cerrado, Sérgio conhece o Brasil na cor verde.
Para ele, a matéria de Lydia Medeiros não é novidade. Pelo contrário, é notícia velha. O que assusta, contudo, é que a velocidade da devastação está aumentando. “De Altamira a Parintins tudo vai cair para entrar a soja. Os otimistas diziam que esse era um processo para demorar 20 anos. Hoje está claro que não vai demorar nem cinco.”
“A soja e a vaca estão destruindo a Floresta. Nesse ritmo nunca vamos conseguir provar que a árvore em pé vale mais que a árvore derrubada, pela simples razão de que em dez anos não teremos mais árvores em pé”. O cenário que vê é aterrador. “O Brasil tem o maior estoque de pastos de mundo. Hoje é possível voar duas horas sobre a Amazônia Legal em monomotor só sobre pastagens”, afirma com a autoridade de quem filmou cinco quilômetros de um rio amazônico cheios de mogno, “para exportação” e um caminhão carregado com duzentas motosseras. Motosseras que inviabilizaram qualquer possibilidade de desenvolvimento sustentável e subverteram a relação harmônica dos povos tradicionais com a Floresta: “o que me surpreendeu não foi filmar o contentamento de quem ganhou uma motossera, mas os olhos tristes de quem ficou de fora da distribuição”. Primeiro o fogo, depois a motoserra. Até onça calcinada Sérgio já filmou.
Para minha surpresa, contudo, Sérgio, concorda que essa guerra não será vencida na Amazônia. Com a autoridade de quem acumulou todo esse conhecimento, Sérgio Bernardes é categórico: “80% dos brasileiros espremem-se em cidades que não são planejadas, ou pensadas a sério há duas décadas. As favelas não são mais enseadas em meio à cidade formal, mas verdadeiros mares de gente miserável espremida na urbe. As cidades brasileiras estão acéfalas porque as obras são eleitoreiras e cosméticas. Não são estruturantes. Não há um pensamento continuado ou um projeto de longo prazo. E sem a massa crítica que (deveria) emanar das cidades, perderemos as Florestas. De norte a sul, só tenho ouvido ladainhas e visto descalabros. Não vai sobrar nada”.
Cada vez mais deprimido, tento mudar o rumo da conversa e indago sobre o atual projeto de Bernardes, que diz ter encontrado uma imensa Sumaúma na Serra do Divisor. Trata-se, para ele, de uma das maiores árvores do Brasil e certamente a mais imponente que viu em toda a vida. Freqüentam seus galhos 16 famílias de macacos, centenas de pássaros, milhares de insetos. Tão logo termine o período das cheias, a equipe de Sergio Bernardes vai filmar essa sumaúma 24 horas por dia, continuamente por um mês e meio. As câmeras serão colocadas em diversos ângulos, captando a copa, a raiz, o tronco, as folhas, o caule os galhos e a terra. Cada mamífero, ave, serpente ou outra espécie de ser vivo será registrada. “Quero mostrar quanta vida uma única árvore suporta. Será que as pessoas enclaustradas em seus apartamentos citadinos têm consciência do ecossistema que uma árvore provê por si só?” Uma vez terminada a filmagem, a edição produzirá uma fita de 52 minutos para ser projetada em sete telas arrumadas de forma paralela, no contexto de grandes mostras, feiras e exposições.
Sérgio chama a empreitada de Projeto Árvore. Está previsto para ficar pronto em agosto de 2005. Isto é, se a sumaúma da Serra do Divisor ainda estiver de pé até lá.
Leia também
Entrando no Clima#41 – COP29: O jogo só acaba quando termina
A 29ª Conferência do Clima chegou ao seu último dia, sem vislumbres de que ela vai, de fato, acabar. →
Supremo garante a proteção de manguezais no país todo
Decisão do STF proíbe criação de camarão em manguezais, ecossistemas de rica biodiversidade, berçários de variadas espécies e que estocam grandes quantidades de carbono →
A Floresta vista da favela
Turismo de base comunitária nas favelas do Guararapes e Cerro-Corá, no Rio de Janeiro, mostra a relação direta dos moradores com a Floresta da Tijuca →