Análises

O que o Iguaçu tem a ver com isso?

Redação ((o))eco ·
28 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

De Rosa CartagenesIndigenista e jornalista de Santarém-PACaras-Pálidas versus Caras-de-Pau?O diretor de Assuntos Fundiários da FUNAI, Arthur Nobre Mendes, propôs em reunião na sede do IBAMA em Brasília, no último dia 13, o arrendamento de 90 hectares próximos a atual área indígena de Santa Rosa do Ocoí (São Miguel do Iguaçu – noroeste do PR), como solução provisória para acomodar o núcleo Avá-Guarani que invadiu o Parque Nacional de Iguaçu na primeira semana do mês. Provisoriedade é tudo o que a FUNAI tem a oferecer aos índios no momento, e como salientou o antropólogo da Itaipu Binacional, Rubens Thomaz de Almeida (que trabalha com povos Guarani desde 1973), os Avá-Guarani, ou Ñandeva, declaram que só arredam pé diante da transferência para uma área definitivamente sua. Provisoriedade poderá comprometer seriamente a área ocupada do Parque, que deveria ser intocado enquanto ecossistema único e patrimônio natural da humanidade (e lá se vão algumas centenas de árvores e espécimes ameaçados, como xaxim e palmito juçara, caça de animais silvestres protegidos, compactação do solo, assoreamento de um córrego, ameaça de incêndio e lixo, muito lixo…). Provisoriedade é tudo o que os Avá têm tido nas últimas décadas, apesar do colunista d’O Eco ter elegantemente dispensado dívidas históricas pré-cabralinas (Marcos Sá Corrêa em “O que o Iguaçu tem a ver com isso?”) e, como aqui já foi lembrado, os Ñandeva não tinham terras oficialmente demarcadas na década de 70, quando a megalomania ufanista do governo militar investiu pesado na construção da Itaipu Binacional, sobrando água e faltando terra – para os índios. Como o próprio discurso de “desenvolvimento com responsabilidade social” da Itaipu reza, antes dos caraíbas chegarem, sem restrições de territórios e fronteiras, os Avá-Guarani ocupavam todo o Oeste do PR e leste do Paraguai. Aliás, sem pátria nem patrão, os Guarani ocupavam praticamente toda a extensão que vai do norte da Argentina, Bacia dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai até o Rio Grande do Sul. Depois de sobreviverem a missões, reduções, expedições punitivas, assentamentos e encomiendas, modernidade os Guarani contemporâneos têm competido com companhias de colonização, estradas, minifúndios e latifúndios, monoculturas extensas, barragens, Itaipu Binacional, Gasoduto Brasil-Bolívia e até usinas nucleares, como Angra dos Reis. Tanto as últimas manchas de Mata Atlântica na região litorânea, que milenarmente fundamentam conceitos míticos e místicos dos Guarani relativos ao acesso à “Terra Sem Mal” (Ywy Marãey), quanto os recursos hídricos planálticos da Bacia do Prata, perfeitos para o aproveitamento hidrelétrico e contornados por terras férteis, são objeto de desejo, usufruto e posse de latifúndios, colonos, posseiros, empresas, administrações públicas e unidades de conservação, cada qual argumentando seus direitos, quer fundamentados na ação pregressa do Estado, que estimulou e legitimou a ocupação colonizadora desde séculos passados, ou na “moderna” Constituição Federal. Haja fôlego cultural. O Parque Nacional do Iguaçu, criado ainda na década de 30 e tombado pela UNESCO em 1986 como Patrimônio Natural da Humanidade, é o repositório último de milhares de espécimes nativas, algumas endêmicas, muitas extintas em outros lugares, outras em risco de extinção. Já os Avá-Guarani foram transferidos para a exígua reserva de Ocoí, expulsos que foram de seus últimos redutos naturais pelas águas da Itaipu Binacional, que com a então “doação” de 600 ha. em Diamante D’Oeste se viu livre de culpa quando em 1993 a Justiça Federal condenou a FUNAI e o IBAMA pela crítica situação das comunidades indígenas envolvidas. Jogados nos 20% da reserva legal numa área florestal do INCRA, depois demarcada (1981) e homologada como terra indígena pela FUNAI mesmo estando em plena APP (Área de Preservação Permanente), os Avá-Guarani foram literalmente espremidos e ilhados numa fração de planície cercados de colonos e sojeiros por todos os lados. E lá se vão mais de 35 anos de enrolação. De acordo com as referências censitárias, em 2000 a população do Ocoí já era de 550 indivíduos, enquanto na “aldeia nova” em Diamante D’Oeste, Tekohá Añentete, a população era de 160 pessoas. É lá, na Tekohá, que a Itaipu Binacional faz sua mídia de que “o celular, quem diria, tornou-se artigo de extrema necessidade”, e que “os colóquios da tribo, antes na casa de reuniões” cederam o lugar para “a imagem da telinha”, via satélite. A nova redução Guarani é à impessoal aldeia global…E o que o Iguaçu tem a ver com isto? Iguaçu, Itaipu, Guaraqueçaba, Irati, Paraná, Biguaçú, Itajaí, tudo tem a ver com os Guarani, que fundamentam seu conceito de territorialidade numa versão ampla e própria de inerência e interatividade entre indivíduo, comunidade e natureza que dispensa fronteiras, limites e cartografias, todos inventados pela visão e necessidade expansionista da sociedade envolvente. Todo mundo devorando nacos e mais nacos de florestas e águas que um dia foram seu habitat natural e lugar cosmológico, os Guarani foram relegados à marginalidade por séculos, e apenas em décadas recentes, por força da quase total destruição ou ocupação de seus lugares originais, tiveram de sair de sua “invisibilidade social”, que se configurou quase como uma opção de sobrevivência, visto que não quiseram se submeter à redução dos “postos indígenas” que o Estado lhes ofereceu desde os tempos do antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio), nem optaram pelo confronto direto, algo avesso a sua cultura de resistência não beligerante. Torna-se muito impróprio, num olhar percuciente, generalizar Guaranis, Pataxós, Maxacalis, Javaés e os índios do Parque Nacional de Manú (Amazônia peruana), por mais que os impactos ambientais de suas presenças, nos moldes de insustentabilidade ecológica e econômica que a aculturação e/ou redutibilidade ocidental lhes impôs, possam ser equivalentes. Como já se disse uma notinha crítica de O Eco, população tradicional é dose para lidar com o meio ambiente. Os pós-modernos tecnocratas e neoliberais da sustentabilidade também. Que o digam Mr.Bush e Dona Dilma.Os Avá-Guarani requisitam uma pequena fração, e que não é o Parque Nacional do Iguaçu, de um amplo território que já foi seu, desde que legitimado e definitivo, operando dentro das regras do jogo que criamos, as quais sempre desrespeitamos. A ocupação de área no Parque é uma estratégia de pressão política de um povo que já não tem mais nada a perder, porque nunca perdeu sua dignidade de pertinência a seu espaço geográfico e cosmológico. Queremos o Parque Nacional do Iguaçu íntegro e preservado sim, e torcemos por uma solução rápida para o bem da integridade do Iguaçu, mas será verdadeira a premissa de que as Grandes Águas “pertencem” mais a humanidade que aos Guarani? Ocorre que para a maior parte da sociedade brasileira “índio bom é índio longe”, ou seja, são lindos aqueles hipotéticos bons selvagens genéricos que virtualmente habitam a Amazônia, pintados de urucum e enfeitados de penas. Os Guarani, travestidos de molambos ou reduzidos à mendicância nas margens das BRs do sul-sudeste não merecem reconhecimento social de indianidade, categoria também inventada por esta mesma sociedade ocidental. Ou seja, devem ser tratados como uns sem-terra-caras-de-pau, merecedores de cassetete… A natureza lamenta, e o Parque Nacional do Iguaçu sofrerá algumas baixas, mas a sociedade civil, pluriétnica, multirracial e pretensamente democrática deve agradecer que não se tente nenhuma intervenção cirúrgica tipo prendo-e-arrebento para a retirada dos Ñandeva. Diante de um quadro histórico, antropológico e socioambiental complexo, isto é apenas uma fração dos males da terra na Terra Sem Males. Concluindo: os legítimos caras-de-pau somos nós, os caras-pálidas. Sem precedentes.

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