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Ouro Verde, depois do café

Em Ouro Verde, Paraná, dá para sentir o mundo dando voltas em torno de eixos como Siegfried Gutmann, um agricultor que chegou à região para desmatá-la e agora quer reflorestar.

17 de janeiro de 2007 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Foi gafe chegar sem aviso à casa do catarinense Siegfried Gutmann. Na tarde alta, com o sol lá fora cozinhando a paisagem, o agricultor estava dormindo, depois de emendar a noite com o dia no baile da colônia. Sobre a mesa rústica da varanda, os mocassins de festa e as botinas de elástico continuavam misturados aos instrumentos agrícolas, como se fizessem parte do mesmo expediente.

Dançar pela madrugada adentro nas quartas-feiras e nos sábados é um compromisso que ele leva tão a sério quanto as outras rotinas de pequeno proprietário rural em Ouro Verde do Oeste, no Paraná. Se o mundo dançasse mais e se deitasse menos, diz ele, quando as palmas conseguem tirá-lo do sono, a natureza não estaria arcando agora com os custos da superprodução de seres humanos.

Selva pura

Ouvi-lo era recomendação da prefeita Cleunice Alves Cardoso. “Tem pouca terra e produz como grande”, ela explicou. Ouro Verde, o município, mal passou dos seis mil habitantes. Deve o nome ao café, que sumiu sem deixar lembrança nas colinas atualmente tomadas pela soja. E continua “selva pura” na memória dos pioneiros, que chegaram ali a partir das frentes de colonização, que trouxeram Siegfried no começo dos anos 60 e, mais tarde, a prefeita.

A mineira Cleunice veio de Mutum, na Zona da Mata mineira, onde três anos seguidos de safras perdidas haviam quebrado sua família de médios cafeicultoires. Siegfried era adolescente quando desembarcou no sertão paranaense, depois de viajar “dois dias e duas noites” na caçamba de um caminhão, por trilhas carroçáveis que os pioneiros rasgaram na floresta. Ambos aproveitaram a mudança para ir longe, cada um a seu modo.

Cleunice fez universidade. É professora de matemática. Recrutado pela igreja luterana, Siegfried embarcou ainda jovem para a Alemanha, que o treinou como avicultor durante cinco anos. Na prefeitura, uma das preocupações de Cleunice é encontrar novas vocações econômicas para o município, que só tem 17 anos, mas está virando rapidamente terra de velhos, com hipertensão, com diabete e outras doenças da terceira idade no topo de seus programas de assistência social. Lá, quem é jovem deixa a cidade para trabalhar onde tenha emprego.

Vertente inútil

Mas Siegfried, aos 64 anos, está na lista das soluções. Antes que acorde, dá para ouvir no silêncio da sesta as engrenagens automáticas de seus dois aviários funcionando sozinhas, para alimentar na hora certa os quase 40 mil frangos da granja, nos dois galpões que fazem a sua casa parecer um mero anexo dos prédios principais. Ele engorda aves em ritmo industrial para um grande abatedouro. Sobra-lhe espaço em seus poucos alqueires para criar gado de corte, manejando cerca de 70 cabeças em 14 piquetes, para que os pastos repousem onde os bois não entram. Ao todo, somando “as aves com os bichos”, ganha “uns 65 mil reais por ano, brutos”.

Não era assim quando Siegfried comprou a terra em 1996. Encontrou nela “uma vertente inútil, com uma aguinha que não dava para nada”. Os bois do antigo proprietário zanzavam soltos no pasto abandonado, ajudando as enxurradas a cavarem barrancos de três metros de altura no terreno. Ele tapou os buracos, cercou o bebedouro, plantou árvores e baniu todas as culturas que exigem herbicidas, evitando que o veneno escorrese para o córrego. Dez anos depois, enfrentou uma estiagem de 125 dias. Faltou água nos vizinhos para criar frangos. Em seu terreno, até o fim da seca, “a fonte jorrava”. Por quê? “Porque o mato segura a chuva, a água entra no solo, em vez de escorrer pelo chão, e vai sair filtrada lá embaixo, limpinha”, ele esclarece.

Siegfried foi um dos primeiros agricultores do município a participar do programa Cultivando Água Boa, uma parceria da Itaipu Binacional com prefeituras, para a recomposição de matas ciliares. Os corredores de árvores que assinalam nos campos o curso dos rios estão mudando a paisagem da região. Está convencido de que precisa fazer alguma coisa para abater a sua dívida de colono com Ouro Verde, que conheceu quando ainda se fisgavam no rio Paraná peixes tão grandes “que era preciso juntar vários homens para carregá-los” e os ipês “com 30 centímetros de diâmetro”, rebarbados pelas serrarias, iam diretamente para o fogo. Siegfried diz que tomou essas providências pelos netos. “Mesmo que eles nunca venham morar aqui”.

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