Por que razão o encalhe de uma baleia promove uma comoção nacional? Ela nem precisa estar viva para causar uma espécie de frenesi coletivo, como mostrou a infeliz jubarte que apareceu morta na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. A Defesa Civil isolou a área para retirar o corpo da baleia, mas ainda assim teve gente que furou o bloqueio para chegar perto do animal e tirar uma foto. Uma delas foi presa por desacato à autoridade policial.
“Não dá para explicar as correntes humanas que se formam para observar esses cetáceos ou as aglomerações comovidas pela impotência diante daquele triste espetáculo. É como se uma morte de 10 toneladas pesasse mais do que as mortes de poucos quilos”, afirma Ulisses Mattos em seu artigo “Salvem as Baleias”, publicado no Jornal do Brasil, em 05/09/2004.
Pensando no assunto e tentando entender o que causa e o que não causa comoção em massa, me lembrei de uma charge genial feita por Henfil, lá pelo início da década de 70. Encontrei a charge na coleção de um amigo. Ela retrata perfeitamente nossas paradoxais atitudes em relação a mortes catastróficas. O golfinho que fazia o seriado do Flipper morreu no mesmo dia em que centenas de mulheres e crianças foram dizimadas por bombardeios no Vietnã. A charge mostrava uma família impassível diante dessa notícia e, no outro quadro, arrasada por conta da passagem do Flipper desta para melhor.
No início deste ano, por exemplo, foram recolhidas 17,5 toneladas de peixes mortos na Lagoa Rodrigo de Freitas e, outras 10 foram retiradas da lagoa de Marapendi, na Barra da Tijuca. Ninguém se comoveu ou parou para chorar pela morte dos bichinhos. Na época, o que deu notícia foi o mau cheiro que incomodava os moradores de um dos mais badalados bairros da cidade do Rio de Janeiro.
O fato é que estes miseráveis peixes não têm o mesmo charme ou a mesma sorte das baleias, dos golfinhos ou das tartarugas marinhas. Não caíram no agrado dos idealizadores de projetos brilhantes que transformam algumas espécies de animais em jóias raras e acabam nos convencendo disso. Não há quem tenha coragem de dizer que acha uma tartaruga feia ou que não vê graça alguma numa gigantesca baleia. Enfim, não há outra explicação para a comoção social que toma conta da humanidade quando um “exemplar” de alguma destas espécies valiosas é encontrado morto. É uma belíssima sacada de marketing. Coisa para Duda Mendonça nenhum botar defeito.
O projeto Tamar, por exemplo, fez com que as tartarugas se tornassem paixão nacional. Mesmo aqueles que não participam diretamente do projeto podem salvar tartaruguinhas e evitar a extinção da espécie. Basta adotar uma delas! Fazer uma doação de R$ 100,00 (valor para o Brasil; no exterior a contribuição é de US$ 50,00) à Fundação Pró-Tamar. Você recebe um kit de adoção com uma camiseta exclusiva e o Certificado de Adoção, com o nome dado por você a ela, e ainda concorre a uma viagem de uma semana para Fernando de Noronha ou Praia do Forte, com um acompanhante e hospedagens pagas.
O aumento do número de baleias encalhadas tem a ver com o aumento das populações de baleias no litoral brasileiro. Graças à proibição da pesca da baleia e ao trabalho de proteção e preservação que vem sendo realizado pelo Projeto Baleia Jubarte e pelo Projeto Baleia Franca, a quantidade de baleias que hoje nadam ao longo do nosso litoral aumentou nos últimos 10 anos. Aumenta o número de baleias, aumentam as chances de encalhe. Se eu fosse baleia, detestaria saber que biólogos passam dias, meses e anos me rastreando. A proibição da caça, apesar de me parecer razoável, também pode acabar saindo pela culatra. No noticiário de 2030, por exemplo, talvez possamos nos deparar com uma notícia do tipo “superpopulação de baleias faz com que autoridades liberem a pesca do animal em alguns pontos da costa do país”.
Gandhi dizia que a evolução de uma sociedade pode ser mensurada pela forma como esta trata seus animais. Se usarmos o padrão de tratamento dispensado às tartarugas, peixes-boi, baleias e outros astros da extinção, é lícito imaginar que já ultrapassamos o Nirvana.
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