“Setenta e cinco por cento dos produtos agrícolas passam pelos supermercados”, repete o descendente de imigrantes pomeranos Alfredo Stange, gerente de Agricultura Orgânica da Secretaria de Estado da Agricultura do Espírito Santo, ao perceber que o número não chama a atenção da repórter. Ele tem razão em insistir, pois o dado reflete, sinteticamente, o motivo da imensa distância que ainda separa os produtos orgânicos e agroecológicos da maioria da população desejosa de engolir menos agrotóxicos e mais sabor nos alimentos.
Quem faz sua feira nos supermercados e não nas seculares feiras livres, dificilmente se sente motivado a levar pra casa produtos orgânicos. Via de regra, neles, os orgânicos são disponibilizados apenas na versão embalada, que é a mais cara que se tem notícia. E o motivo do alto preço não se restringe às famigeradas bandejas de isopor.
O que de fato encarece a comercialização de orgânicos é o custo da logística de organização e transporte dos produtos da lavoura até o ponto de exibição ao consumidor final, organização que inclui mecanismos para atender às exigências de escala, pontualidade, formato, tamanho e tantas outras estabelecidas pelos super e hiper mercados, acostumados a adquirir hortifrutis de médios e grandes produtores, seja diretamente com os proprietários, seja por meio das Ceasas – as Centrais de Abastecimento Estaduais, onde a grande oferta permite realizar negócios a baixo custo e com garantia de encontrar, todos os dias, todos os produtos eleitos como essenciais, mesmo que estes, segundo as leis da Natureza, devessem ser colhidos apenas durante determinados períodos do ano.
Nas palavras do agricultor orgânico Lourival Haese, de Santa Maria de Jetibá, cidade mais pomerana e maior produtora de orgânicos do Espírito Santo, o quarto maior produtor entre os Estados da federação os “supermercados acham que agricultura é matemática. Não entendem que a terra tem ciclos, que nem sempre dá pra produzir aquilo que se quer, do jeito que se quer, na quantidade que se quer”.
A cultura de padronização da natureza, incutida na cabeça do consumidor, faz com que ele ache natural, por exemplo, tomar suco de laranja o ano todo e comer salada com muito tomate, e barato, todos os dias. Um passeio nas lavouras convencionais destes dois frutos, de onde qualquer um sai com dor de cabeça provocada pela grande quantidade de agrotóxicos, ou mesmo um bate-papo rápido com um produtor orgânico em uma das tantas feiras livres especializadas, o faria substituir, nas estações mais quentes, a laranja por outras frutas cítricas naturalmente disponíveis e diversificar os itens da salada.
“Aos 14 anos eu já tinha me intoxicado duas vezes com veneno de tomate. O tomate hoje deve receber mais de vinte variedades de veneno todos os dias”, arremata Almerindo Uhlig, produtor orgânico de Afonso Cláudio há 20 anos. Ele está entregando seus exuberantes alfaces orgânicos no pátio de carga e descarga de um supermercado de Aracruz, no norte do Espírito Santo, o único no país, pelo menos até onde esta reportagem de O Eco pôde apurar, que vende produtos orgânicos a granel. No Estado, é seguramente o primeiro a conseguir certificação para executar a façanha, após três anos de pesquisa e muita insistência.
Mais barato
A determinação e ousadia do proprietário, Aderjânio Pedroni, militante da “agricultura alternativa”, como foi batizada nos anos 80, e um dos fundadores da primeira certificadora de orgânicos capixaba, precisa ser copiada. Esta é a melhor solução, nas cidades médias e grandes, para tornar mais acessível o preço dos orgânicos aos consumidores.
Os números não deixam dúvida. Quando a reportagem esteve no local, o supermercado de Aracruz vendia a cenoura convencional a R$ 0,89 o quilo. A orgânica era encontrada, embalada, a R$ 4,18 e, a granel, a R$ 1,58 – duas vezes e meia mais barata que a embalada e apenas 5% mais caro que na feira de orgânicos da capital, onde a mesma cenoura orgânica a granel custava R$ 1,50.
A certificação para venda de orgânicos a granel inclui medidas para conservação da água e reciclagem dos resíduos para diferenciar os orgânicos dos convencionais nos carrinhos, entre outros cuidados. A licença para o supermercado, emitida em janeiro, com duração de um ano e previsão de inspeções a cada quatro meses, foi o pontapé para a implantação de um projeto maior, em parceria com a prefeitura e alguns produtores. A meta é que em 2008 toda as verduras do supermercado sejam orgânicas. Só de alfaces, a demanda é de 2 mil pés por semana. Através do projeto, os produtores recebem empréstimo para investir na adequação das propriedades, com um bom tempo de carência para começar a pagar. Três já foram certificadas e outras cinco estão em processo de certificação.
Incentivos como este são fundamentais para livrar os agricultores – e a terra, a água e os consumidores – dos agrotóxicos. Na opinião no coordenador estadual do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no Espírito Santo, Dorizete Cosme, o que mantém o produtor no sistema convencional é a desorganização e a desarticulação. A falta de informação é tanta que a maioria desconhece linhas de créditos específicas para a agricultura orgânica e ecológica, algumas criadas há quase dez anos, como a BB Produção Orgânica e o Pronaf Agroecologia “São condições bem favoráveis de crédito, mas os agricultores desconhecem, nem procuram se inscrever”, diagnostica Dorizete.
A estratégia do MPA, um dos maiores fomentadores da Agroecologia no Estado, é realizar reuniões nas comunidades, onde os interessados se informam, se mobilizam e iniciam o processo de conversão. “Os produtores estão viciados em monocultura. Estamos incentivando a diversificação”, resume.
Foi o que aconteceu com a família de Izilda da Silva Trozeski, a Dona Doquinha, agricultora em Águia Branca. Há mais de 30 anos, seu sítio produzia apenas café. A alimentação da família vinha basicamente do mercado, repleta de industrializados. “A gente não tinha saúde. Sofria de colesterol alto, glicose alta, ácido úrico, reumatismo”. Ela e o marido passaram a freqüentar as reuniões do MPA e no ano passado começaram a plantar milho e quiabo e a produzir pamonha. O resultado no bolso foi rápido: “O café nunca deu lucro, chegava no final do ano devendo porque comprava tudo fora. Ano passado, só o milho deu R$ 800,00 de lucro”, conta. Esse ano, em apenas dois meses, ela calcula que a sobra com o quiabo, o milho e a pamonha tenha sido de R$ 2 mil. A alimentação e a saúde da família também melhoraram.
Outra frente de ação do MPA é o convênio com o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – o PAA, do Governo Federal. Por ele, os agricultores se comprometem a entregar alimentos agroecológicos a instituições sociais cadastradas no programa (asilos, orfanatos, escolas …) e, mediante comprovante de entrega dos produtos, recebem o pagamento diretamente do Governo. Uma fórmula simples e segura de levar alimentos sadios a uma população que ainda não tem condições de adquirir produtos orgânicos, seja por limitação financeira, seja pela distância de feiras – comuns ou especializadas.
A ausência de feiras e outras formas de comercialização a granel de produtos orgânicos e agroecológicos ocorre na maioria dos vilarejos rurais e das pequenas cidades, como a Águia Branca de Dona Doquinha, que sequer tem uma feira livre própria. “A feira da cidade vem de fora: os caminhões param numa área coberta por dois dias. Fora isso, verduras só nos supermercados e mercados, que trazem da Ceasa”, lamenta Ana Lúcia Basílio da Silva, coordenadora do MPA no município.
O distrito de Patrimônio da Penha, limítrofe com o Parque Nacional do Caparaó, é outro exemplo intrigante, especialmente pelo fato de a agricultura orgânica e ecológica ser uma das formas de manejo do solo mais indicadas para o estabelecimento de corredores de biodiversidade nas zonas rurais. Distante 250 km da Ceasa, a vila tem 300 habitantes e é cercada de propriedades agrícolas familiares, mas que só produzem café e gado. Os próprios agricultores compram no hortifruti local boa parte das poucas verduras e legumes de que se alimentam.
O proprietário do pequeno comércio, Evaldo Ribeiro Nunes, calcula vender entre 600 e 700 kg por semana, para uma clientela de mil pessoas, a maioria agricultores residentes num raio de 5 km da vila. Mesmo assim, a cada quinze dias ele precisa percorrer 500 km pra abastecer seu comércio com os produtos da Ceasa. “Já cansei de falar com produtor, mas eles desconfiam de mim, acham que eu vou ganhar dinheiro em cima deles e continuam sem produzir pra vender e comprando verdura comigo”, desabafa.
Quando se puxa o assunto, é comum perceber o desconforto dos moradores com a situação esdrúxula a que chegaram, tendo de comprar verduras com tantos quilômetros rodados e tão envenenadas, havendo tanta terra pra se plantar alimentos nas próprias redondezas. Sinal de que as coisas podem começar a mudar a qualquer momento. Tirar os agrotóxicos do prato é cada vez mais uma questão de logística de comercialização, que se resolve com criatividade, articulação e persistência.
Fernanda Couzemenco é jornalista ambiental no Espírito Santo.
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