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Carta – Reservas extrativistas no Cerrado, para quê? II

De Carlos Valério GomesEstudante de Doutorado em Geografia - Universidade da Flórida Prezado Editor, O artigo da Verônica Theulen soa como se ainda...

Redação ((o))eco ·
5 de julho de 2006 · 18 anos atrás

De Carlos Valério Gomes
Estudante de Doutorado em Geografia – Universidade da Flórida

Prezado Editor,

O artigo da Verônica Theulen soa como se ainda estivéssemos debatendo sobre as possibilidades teóricas de implantar o modelo de Reservas Extrativistas. Ou seja, suas críticas são iguais às que surgiram no início do processo de discussão do modelo de implantação das primeiras reservas no início dos anos noventa. A autora trabalha com unidades de conservação e deveria estar um pouco mais familiarizada sobre as discussões e números desses quinze anos de experiência da política de Reservas Extrativistas. Se o modelo deve ser empregado no Cerrado Brasileiro, que vem sendo destruído pela expansão da soja, é uma boa e desafiadora discussão. Ao ser contra tal possibilidade com “argumentos” estritamente conservacionistas, a autora esqueceu de apontar ao menos uma possível solução contra a rápida degradação do Cerrado.

Porém, a capacidade de replicação do modelo de reservas é realidade hoje – e chegou até mesmo a populações de pescadores da costa brasileira, onde a questão agrária não é o grande foco. Sua implantação e/ou adaptação aos diversos cenários ecológicos e realidades sócio-culturais na Amazônia é um fato, e não foge aos princípios originais porque são populações extrativistas locais que estão constantemente fazendo tal opção. Entre os modelos disponíveis de ocupação por populações locais da Amazônia, o modelo de reservas tem sido o mais escolhido por sua origem dentro da luta de reforma agrária, mas também por sua capacidade de conciliação entre conservação e desenvolvimento.

Como se auto denomina “cuidadora de projetos no país inteiro com fraco pelo Cerrado”, talvez a autora deva concentrar seus esforços no seu ponto fraco, e não apresentar uma visão em branco e preto do modelo de reservas na Amazônia. Cuidar do Cerrado por si só já é muito, e com certeza um grande desafio para qualquer gestor envolvido com unidades de conservação. Mas se quiser realmente “cuidar” de projetos no país inteiro deveria fechar suas gavetas, deixar a papelada acumulada por um tempo e conhecer algumas Reservas Extrativistas. Um bom início de viagem seria sim a Reserva Extrativista Chico Mendes, que a autora menciona que está sendo “destruída pela pecuária”. Com tal argumento ela exacerbadamente tenta aplicar tal visão ao conceito das reservas como um todo.

Erroneamente também, a autora imagina que gado seja algo novo para populações de seringueiros que, desde os tempos dos patrões, sempre mantiveram uma relação indireta com gado na sede dos barracões. A localização e definição territorial da Reserva Chico Mendes é exatamente onde a expansão da pecuária aconteceu no Acre, foi exatamente ali que surgiu uma forma de reação inovadora e propositiva liderada por Chico Mendes, algo que não aconteceu com tal força em nenhuma fronteira de expansão da Amazônia na década de oitenta. Quem sabe não seria interessante para a autora, trabalhar no empoderamento de pequenos proprietários de terra no Cerrado e ajudá-los a reagir contra a expansão da soja na região, propondo novas e alternativas formas de ocupação, como os seringueiros fizeram de forma bem sucedida contra os fazendeiros no Acre.

Eu venho trabalhando com seringueiros da Reserva Chico Mendes desde 1994 e estes argumentos de um suposto “dilema” entre pecuária vs Reservas Extrativistas, como os enunciados pela autora, não trazem nada de propositivo aos verdadeiros desafios enfrentados por populações extrativistas da Amazônia. Escrevi uma dissertação de mestrado na Reserva Chico Mendes onde aponto para mudanças de uso da terra em algumas áreas (seringais) concentradas da reserva.

A pecuária em pequena escala tem sido um fator importante para o aumento dos índices de desmatamento nestas áreas. Longe se ser algo alarmante, como a autora tentar passar, isto é parte de uma dinâmica territorial de certa forma esperada em uma região onde interagem diferentes formas de uso da terra (fazendeiros, colonos, seringueiros). Atualmente, estou escrevendo minha dissertação de doutorado focalizando exatamente neste processo de expansão da pecuária em pequena escala nestas áreas com maiores índices de desmatamento. Em nenhuma destas áreas estes índices ultrapassaram os limites de desmatamento estabelecidos no Plano de Utilização da Reserva (10% de uma colocação), de acordo com imagens de satélites que estou processando, com outros colegas, para os períodos de 1986 (antes da implantação da Reserva), 1992, 1996, 2000 e 2003.

Se quisermos comparar estes índices aos que ocorrem fora da área da reserva, por si só demonstraríamos o papel ambiental que a Reserva Chico Mendes vem exercendo como limitadora da expansão dos desmatamentos na região. A imagem de satélite LANDSAT de 2003 focando alguns dos seringais que estou desenvolvendo minha pesquisa sobre a pecuária talvez ajude a autora a visualizar o papel da Reserva em conter desmatamentos em uma área de grande pressão externa no município de Brasiléia. Não precisa muita habilidade para qualquer pessoa perceber isto, embora seja uma imagem de centenas de quilômetros de distância. Acho que a autora deveria diminuir esta distância e fazer uma visita à Reserva Chico Mendes, afinal de conta o Brasil sem o Acre não é um “Brasil inteiro”.

Seria muito interessante que a pesquisadora citasse as fontes destas “pesquisas que apontam para a evidente inviabilidade ecológica dessas áreas no médio e longo prazo (às vezes, até mesmo no curto prazo)” e se juntasse ao debate verdadeiramente técnico/científico do modelo de Reservas Extrativistas na Amazônia. Nós estamos tentando fazê-lo via a “Rede de Pesquisadores em Reservas Extrativistas”. Que a autora continue seu grito por “socorro”, mas dificilmente será ouvida se seus gritos não vierem embasados em argumentos verdadeiros. Os seringueiros do Acre gritaram, lutaram e até mesmo morreram, e as Reservas Extrativistas são a mais concreta prova que conseguiram uma solução para o desmatamento que representava o fim da sua própria existência. Se o grito chegou ao Cerrado, deixe que seja ouvido porque, na pior das hipóteses, algo de bom irá ensinar. Continue gritando de volta!

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