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Carta – O Jaú e a derrota amazônica

De Carlos César Durigan Coordenador Executivo/Executive Coordinator FVA - Fundação Vitória Amazônica Prezado Sr. Marcos Sá Corrêa, Indignação é a...

Redação ((o))eco ·
25 de julho de 2006 · 18 anos atrás

De Carlos César Durigan
Coordenador Executivo/Executive Coordinator
FVA – Fundação Vitória Amazônica

Prezado Sr. Marcos Sá Corrêa,

Indignação é a palavra para expressar o sentimento que suas mal escritas e mal intencionadas linhas causou entre as pessoas que têm dado sua vida pela construção de um cenário positivo para a conservação da biodiversidade no Rio Negro. Nunca, em seus 16 anos de trabalho árduo, a Fundação Vitória Amazônica (FVA) recebeu tão mal alinhavadas e mesquinhas críticas, cunhadas para denegrir um trabalho sério, ético e reconhecido nacional e internacionalmente.

Os trabalhos da FVA no Parque Nacional do Jaú (PNJ) iniciaram-se em 1992, quando integrantes da entidade, com apoio e participação de instituições renomadas como o IBAMA o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e o Fundo Mundial para a Natureza (WWF- Brasil), iniciou os trabalhos para a implementação do Parque, após mais de 10 anos de sua criação. A partir daí, iniciou-se uma série de ações conjuntas, envolvendo diversos atores, inclusive os grupos sociais locais, que culminaram nos avanços para a construção de uma estratégia de conservação participativa de fato. Existem ainda muitos desafios pela frente, mas podemos dizer que há resultados positivos como a elaboração do primeiro plano de manejo de um Parque Nacional na Amazônia feito de forma participativa. Frutos deste trabalho consistente e coletivo estão o reconhecimento do PNJ como patrimônio natural da humanidade pela UNESCO, a geração de um vasto conhecimento sobre a biodiversidade e a sociodiversidade da região e, mais importante, o início dos diálogos e ações conjuntas em prol do desenvolvimento regional, aproximando cada vez mais as comunidades ribeirinhas locais desta nova realidade.

Antes do início destes trabalhos, o cenário do baixo Rio Negro era de conflitos generalizados. Afinal, todo o processo de criação de unidades de conservação (UCs) na região nunca levou em consideração a vida das populações locais, indígenas e não-indígenas, comunidades agroextrativistas assentadas há gerações nessas áreas e que de repente viram seus modos de vida transformados e passaram a ser considerados como infratores de uma lei que desconheciam. A forma como o PNJ e a Estação Ecológica de Anavilhanas foram criadas, em pleno regime militar, num processo bem intensionado do ponto de vista ambiental, mas carente de embasamento técnico consistente e conhecimento regional na definição de seus limites e categorias, demonstram a precariedade com que os processos foram trabalhados, gerando assim desafios na sua implementação que persistem até os dias atuais, passados mais de 25 anos. As cicatrizes deixadas pelo processo inicial de implementação destas áreas são evidentes até hoje na região, e isto explica o processo movido por ex-moradores do PNJ, tirados de suas terras de forma autoritária, sem nunca terem recebido qualquer indenização por isto. Era comum para os técnicos que trabalharam o processo de reversão desse quadro negativo ouvirem questões como: O que são estas áreas protegidas? Áreas protegidas, mas protegidas de quem? Invasores, mas não vai ser mais fácil invadirem sem a gente por aqui? Por que somos de repente marginais, ilegais nas áreas onde viveram nossos pais e avós? Por que nossa vida é mal vista? Somos ilegais por existirmos?

Estas e outras tantas questões foram incansavelmente levantadas pelas famílias viventes nas áreas afetadas por esta nova realidade. O trabalho da FVA, apesar das grandes dificuldades, desde então tem mostrado que é possível reverter este quadro negativo, é possível construir um novo cenário geopolítico na região onde unidades de conservação de proteção integral e de uso sustentável possam coexistir e manter a base da vida das populações locais, assim como conservar a biodiversidade.

Ao contrário do quadro que o Senhor pinta, a parceria construída entre a FVA e o IBAMA, tem gerado a implementação de fato do PNJ, processo lento e que tem muita ainda a ser feito, mas que acreditamos ser um caminho seguro e de resultados duradouros. O plano de manejo do PNJ não foi um simples documento “encomendado” pelo IBAMA, mas sim um processo construído a muitas mãos, envolvendo de fato os grupos sociais locais, os caboclos, os comunitários, os extrativistas, os moradores, os infratores, como queira chamá-los. Basta dizer que desde os primeiros trabalhos, o apoio destes grupos se fez valer, com disposição e força para participar e gerar as informações e ações que fizeram do Jaú “…não um parque de papel, como tantos”, usando suas palavras. O que falar das dezenas de trabalhos técnicos, publicações científicas, dissertações e teses geradas, frutos destes trabalhos, executados em parceria com profissionais e instituições conceituadas como o INPA, a Universidade Federal do Amazonas, a Universidade de Brasília, a Universidade de São Paulo, a Universidade de Campinas, entre tantas outras, que geraram tantos subsídios não só à conservação do PNJ, mas à conservação da biodiversidade da Amazônia. Portanto, a FVA é sim parceira técnica legítima e formal do IBAMA na gestão da unidade e não uma entidade infiltrada no governo para trabalhar contra a unidade como o Sr. Corrêa sugere em tom irônico e desrespeitoso.

Disto tudo e com muita luta, surge agora a Reserva Extrativista do Rio Unini, mais um resultado deste esforço coletivo unindo a população local com técnicos do IBAMA, pesquisadores e entidades socioambientalistas da região. Como dizer que isto é um retrocesso? Ora, há um incremento de área considerável somando mais 830.000 hectares ao mosaico de UCs existentes na região. Não estamos perdendo área, estamos sim, consertando erros do passado, estabelecendo um mosaico de UCs cada vez mais equilibrado para a região. Somam-se agora um total de mais de 5 milhões de hectares dessas áreas, com uma reduzida densidade populacional, e que promete ser um modelo de uso do espaço para todo o mundo, onde podem ser conciliadas ações de desenvolvimento local e conservação da biodiversidade. pois é impossível construir o desenvolvimento sustentável sem garantir o mínimo de condições de sobrevivência e dignidade destas populações que aqui vivem e que seus modos de vida garantiram e são responsaveis ainda hoje pelo estado da conservação ambiental da região.

O Senhor também trata a revisão de limites de unidades de conservação como se fosse um “atentado” às mesmas, ignorando completamente que isto é um mecanismo legítimo e legal previsto na lei que rege o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Posto da maneira mal-informada do artigo, parece que o Estado nunca erra ao definir, muitas vezes em gabinetes e longe da realidade local, os limites e categorias de unidades de conservação. Técnicos que estão trabalhando em campo têm começado a perceber o quanto os desenhos dos limites de várias unidades de conservação são inadequados para a proteção da biodiversidade e gestão territorial. É óbvio que a revisão destes limites deve passar por um profundo processo de análise técnica e não deve prejudicar a importância que determinada unidade de conservação possui na região. Neste ponto o Sr. Marcos Corrêa não precisa perder suas noites de sono, já que o PNJ conta com uma equipe técnica do mais alto gabarito e com grande experiência de campo trabalhando a seu favor. O Parque não será retalhado, e pode até aumentar de tamanho e de importância biológica com uma revisão criteriosa de seus limites.

Portanto, Sr. Corrêa, apesar de suas críticas grotescas, vindas de um banker de concreto urbano e pasteurizado, cada vez mais distante de nossa realidade amazônica, continuaremos trabalhando. É possível que vozes equivocadas, amargas e intransigentes como a sua se levantem vez em quando para desviar nossos sentimentos de otimismo ao construirmos uma sociedade mais justa e sustentável, mas sempre teremos a certeza e a força para continuarmos na nossa luta, construindo o cenário que acreditamos para a conservação da biodiversidade e para a vida humana na Amazônia.

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