Quem topa pela primeira vez com Ana Rafaela D´Amico em seu local de trabalho, o meio da floresta amazônica, pode até se perguntar o que ela faz por ali. Sua pouca idade – 27 anos completados em setembro, cabelos louros, olhos claros e traços ainda de menina confundem o observador. Mas tudo não passa de primeira impressão. Ana Rafaela chefia hoje uma das unidades de conservação mais problemáticas do país, o Parque Nacional dos Campos Amazônicos, área que protege frágeis ecossistemas em pleno arco do desmatamento, entre Rondônia, Amazonas e Mato Grosso.
Natural de Guaraniaçu, no interior do Paraná, Rafaela tomou gosto pela natureza ainda pequena, quando acompanhava o pai nos trabalhos de reflorestamento de pinus e via o poder da mata que crescia ao redor. Mas ela só descobriu que a conservação era o que desejava fazer pelo resto da vida quando um acaso a desviou da medicina, curso que sonhava em fazer, para a biologia. O empurrãozinho do pai foi decisivo para que ela tentasse o curso. E foi paixão à primeira vista.
Graduada na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), em Cascavel, Rafaela dedicou os primeiros anos de trabalho à conservação de mamíferos do Parque Nacional do Iguaçu. Mas ela queria mais, e sabia onde encontrar. O segundo concurso público promovido pelo Ibama, em 2005, a levou para Rondônia, onde trabalhou no Núcleo de Unidades de Conservação (NUC) e depois como coordenadora das unidades de conservação do estado.
Com a divisão do Ibama e a criação do Instituto Chico Mendes (ICMBio), em 2007, o setor em que trabalhava se extinguiu, o que a aproximou ainda mais do recém criado Parque Nacional dos Campos Amazônicos. “Era uma unidade que estava precisando muito da gente, estava com vários problemas que eu já atendia pelo NUC. Como não havia ninguém pra responder, acabava chegando até mim”, explica.
Em apenas um ano e quatro meses, os resultados de seu trabalho – e o de sua equipe – já podem ser contabilizados. Em 2006, a unidade que hoje comanda foi considerado o parque nacional mais desmatado do país. Em 2008, ações empreendidas pela equipe de Ana Rafaela, como aumento da fiscalização, reuniões com moradores do entorno da unidade e acordos de convivência com os que ainda estão dentro dela, garantiram um ano sem nenhum hectare derrubado no parque. O próximo passo é a conclusão do plano de manejo, cujos trabalhos de campo foram realizados em novembro.
Por tudo isso, os desafios de Ana Rafaela ainda estão só começando. Superar a ausência da família, enfrentar as doenças da região, combater desmatamentos, invasões, garimpos ilegais, queimadas e gado na unidade de conservação são alguns dos requisitos de quem escolheu trabalhar na Amazônia.
Você conhecia a Amazônia antes de trabalhar em Porto Velho?
Ana Rafaela D´Amico – Não, não conhecia nada. Meu primeiro contato com a Amazônia foi quando eu vim fazer o concurso do Ibama em Rondônia.
E como foi esse “encontro”?
A gente costuma dizer que a Amazônia é ‘ame-a ou deixe-a’. Ou a pessoa vem e quer sumir desesperadamente – e eu já passei por isso – ou você gosta e quer continuar. O que notamos muito aqui é falta de pessoal, porque ninguém quer ficar. Não precisa ficar dez, vinte anos, mas cinco ou um pouco mais de tempo. A gente tem que trabalhar aqui para não deixar acontecer com a Amazônia o que aconteceu com a Mata Atlântica. Então, quanto mais gente ficar pra tentar frear um pouco esse desmatamento, essa ocupação desenfreada vai ser sempre bem-vindo. Eu penso em ficar um tempo aqui e tentar contribuir o máximo possível com a preservação desse local que é tão importante.
Você escolheu ser chefe da unidade ou foi uma designação?
Escolher é um modo de dizer. Na época não tinha mais NUC e eu até pensei em voltar pro Paraná, mas resolvi ficar em Rondônia por questões pessoais. Também já estava um pouco cansada daquela coisa de coordenação de NUC, porque a gente está sempre dando um apoio aqui, outro ali, e eu queria um projeto que pudéssemos fazer do começo ao fim. Como o parque estava precisando – os outros parques estavam bem encaminhados, tinham seus gestores – foi questão de atender a uma necessidade e uma vontade também, porque a área é muito instigante. Essa diversidade de ambientes, essa coisa do Cerrado no meio da Amazônia foi um desafio que resolvi assumir.
Quando você estava pra assumir a gestão da unidade, titubeou em algum momento?
Com toda a certeza. É minha primeira experiência como chefe de uma unidade, e tão grande e problemática. Eu pensei muito antes e depois também “onde estava com a cabeça de assumir?”. Mas acho que é um desafio muito legal e está sendo muito gratificante, porque a equipe que temos é ótima. Às vezes eu acordo e fico pensando “será que estou indo pelo caminho certo, será que não é muita responsabilidade, será que eu vou ter competência pra lidar com os problemas grandes”? Mas acho que não devo ser a única, acho que nenhum gestor de unidade de conservação na Amazônia consegue dormir tranquilo todo o tempo.
E como é a sua relação com as pessoas com as quais tem de lidar? Você enfrenta muita resistência justamente por ser nova?
O primeiro contato acho que choca um pouco, mas não é só comigo, é com todos os analistas do parque. Tanto eu, como a Érica, o Tércio, é todo mundo com cara de menino mesmo, gente nova. E acho que isso assusta um pouco o pessoal. Essa é uma coisa com a qual a gente tem que trabalhar muito, impor respeito mesmo, mostrar que, apesar da idade, estamos aqui pra trabalho sério e vamos fazer esse trabalho sério.
Alguém já se recusou a falar com você?
Não, por enquanto não.
Quais são os seus principais desafios como gestora de uma unidade tão grande e complexa como essa?
O principal desafio é fazer com que ela cumpra com seus objetivos. Os limites com que o parque foi criado são muito complicados. Acho que o mapa dos Campos Amazônicos é o pior desenho que uma unidade de conservação podia ter. Porque não é uma unidade, são quatro unidades de um parque separadas. Tem um rio que foi excluído e outra área que ficou de fora por conta da estrada [Rodovia do Estanho, que liga o sul do Amazonas ao noroeste de Mato Grosso]. Então, o desafio da equipe é fazer com que os campos mantenham suas características naturais. Ele já está muito alterado na margem da estrada e, com a exclusão, a pressão para colocar gado ao longo dela tem aumentado. Se isso acontecer, e fragmentar o pouco do que sobrou de campo ainda íntegro, o parque vai ficar separado por um mar de gado e soja. Outro desafio é frear a invasão da unidade, porque estamos no meio do arco do desmatamento, recebendo toda a pressão do norte do Mato Grosso, da Transamazônica, para invadir, tomar posse, colocar gado ou mesmo furtar madeira.
Eu acho que conseguimos trazer um retorno muito bom em um ano e quatro meses de gestão. Estamos com o diagnóstico do plano em elaboração, a gente já conseguiu sinalizar os limites mais conflitantes, neles já tem placa, o que ajuda muito. Já fizemos duas reuniões com o pessoal que ainda mora dentro do parque para tratar de regularização, fazer acordo de convivência enquanto eles estão lá. Em 2006, o parque foi a unidade de conservação mais devastada do país, em 2007 ainda teve um desmatamento muito grande, quando a gente começou a botar o pé e dizer “peraí, que agora é parque não pode [desmatar]”. Esse ano, até agora, não teve nenhum hectare desmatado. Com certeza teve furto de madeira, teve caça, teve garimpo rolando, mas desmatamento mesmo, não. O parque tem hoje quase seis mil hectares de área desmatada. São mais de 2.500 hectares [desmatados] na região da invasão e outros 2.500 na região do Pito Aceso, onde tem os moradores que estavam lá antes da criação.
Quais são seus planos para o futuro?
ARD – Eu quero trabalhar com unidade de conservação. Tenho muita vontade de trabalhar em outros biomas, um pouco na Caatinga, no Pantanal, mas isso é muito a longo prazo. Também tenho vontade de passar um pouco por Brasília, estar no olho do furacão, onde as coisas estão acontecendo, ver de cima o que está acontecendo nas pontas, pra depois voltar pra ponta com mais conhecimento. Não pretendo ficar a vida inteira na Amazônia, vai chegar uma hora que vou falar “agora deu”, porque a Amazônia suga muito, acho que aqui a coisa é mais complicada pelas dificuldades que a gente tem, facilidade pra pegar doenças…chega uma hora que o próprio corpo precisa de um pouco mais de calma.
Falávamos que os gestores na Amazônia são geralmente muito jovens. Você acha que esse quadro deveria ser diferente?
ARD – Eu nem culpo quem não quer ficar, porque ficar realmente é complicado. Eu acho que o Instituto [Chico Mendes] deveria dar uma diferenciação na política de recursos humanos para incentivar a permanência das pessoas na Amazônia. Eu não posso reclamar porque estou numa capital, Porto Velho, mas quem está em Costa Marques (RO), Cruzeiro do Sul (AC), São Gabriel da Cachoeira (AM), recebe a mesma coisa do que quem está em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro. Então eu acho que nosso instituto deveria pagar mais, pra valorizar essa política na Amazônia. “Quer ficar na Amazônia por cinco anos? Então você vai receber um pouco mais, vai ter um auxílio interiorização, e você vai sair daqui a cinco anos”. Porque acontece que muita gente vai na primeira oportunidade, porque não sabe quando terá outra pra sair. Então falta, sim, uma política de recursos humanos voltada para isso e não só no interior da Amazônia, mas na Caatinga e tantos outros lugares pelo Brasil. Muitas vezes estamos num lugar onde o único poder que chega é a gente. Aqui é um exemplo claro. O único governo que passa aqui é Funasa, Funai, Ibama ou Chico Mendes. Tem lugar que só a gente chega e não temos nenhuma gratificação a mais por conta disso, é pelo amor à causa mesmo. Se tivesse isso [gratificação], com certeza conseguiria atrair mais gente e segurar. Tem um pessoal mais antigo que se acostumou à região e continua, mas são poucos. O Ibama ficou muito tempo sem fazer concurso, o primeiro foi em 2002 e o outro em 2005. Dessa leva, principalmente 2002, pouquíssimos ficaram, a maioria já abandonou e a tendência é que aconteça a mesma coisa com a turma de 2005.
A divisão do Ibama ajudou ou atrapalhou?
ARD – Atrapalhou muito, porque foi uma quebra geral nos processos que estavam andando. As coisas estavam fluindo, daí veio essa separação totalmente inesperada, sem planejamento nenhum, e isso é nítido, porque até hoje o instituto está se estruturando, tentando descobrir o rumo. Já tem um ano e meio que estamos muito perdidos. Agora é que as coisas estão começando a encontrar um caminho. Você não sabe se responde ao superintendente, se responde à Brasília, ou de onde vai sair o recurso. Então foi um ano de quebra de gestão como um todo para as unidades. Agora, não dá pra negar que está aparecendo alguns pontos positivos. O acesso que a gente tem à diretoria e à presidência é muito maior do que quando era no Ibama, porque o foco do Ibama era outro, era a fiscalização. Como a máquina é menor, você consegue focar a atenção mais nas unidades, ter acesso muito maior de discussão com a diretoria para trabalhar. Acho que isso pode favorecer o Instituto daqui pra frente se ele conseguir se organizar, mas precisa se estruturar muito, porque da forma como está é realmente complicado.
Na próxima reportagem da série sobre o Parque Nacional dos Campos Amazônicos, que será publicada no dia 5 de janeiro, você confere o resultado final da expedição que dará origem ao Plano de Manejo da unidade.
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Viajo agora no final de julho para a região norte, e gostaria de informações a respeito da estrada que corta o parque, desde a transamazônica, no km 180, até o norte do MT, no posto 3 fronteiras. Desde já agradeço.