Chamar de falso esse uiraçu é uma injustiça com a segunda maior águia brasileira. O Morphnus guianensis é na verdade uma bela e majestosa ave de rapina, encontrada na Mata Atlântica e na Amazônia. Porém, por ser parecida com a harpia acabou carregando no nome um certo menosprezo. Mas uma ave com quase 90 centímetros de comprimento e que pode chegar a quase um 1,60 metro de envergadura merece respeito. Estranho é que, com todo esse porte, o morphnus ainda seja tão desconhecido.
Existem poucas informações e muitas dúvidas sobre a espécie. Há questionamentos inclusive sobre se ele e a harpia pertencem mesmo a gêneros diferentes. Para conhecer melhor essa ave, o biólogo Felipe Bittioli Gomes estudou durante quatro anos textos, registros e fotografias. E mais do que isso, enfrentou longas noites e caminhadas na floresta amazônica para acompanhar ninhos e aves no ambiente natural.
Entre noites na floresta e o encontro com uma onça (Felipe diz ter ficado a menos de 4 metros de uma), o biólogo pode registrar um comportamento admirável da ave: os pais incentivando o primeiro vôo dos filhotes. Eles demoram cerca de 90 dias após o nascimento para conseguir bater as asas e mais algumas semanas para sair do ninho. Felipe Gomes registrou os pais atraírem o filho de um galho a outro com a presa até que o pequeno morphnus voasse até o ninho e recebesse a recompensa.
Durante a pesquisa, Felipe acompanhou ninhos na terra firme em uma reserva do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, e também em áreas alagáveis, em Manacapuru. “Na terra firme, eram 50 quilômetros de estrada, 14 de ramal e mais dois quilômetros de caminhada”, lembra. “Em Manacapuru, antes era a balsa (agora existe uma ponte atravessando o Rio Negro), depois pegava um taxi, viajava mais uma hora de barco até um local, onde pegava uma canoa com a comunidade. Depois, tinha mais uma hora de caminhada dentro da mata”. Difícil, mas veio a recompensa acadêmica.
Ele já defendeu o doutorado e já tem dois artigos encaminhados sobre a ave. E foram muitas descobertas. Entre elas, a possibilidade de as populações de morphnus amazônicas e atlânticas se unirem através de corredores que atravessam o interior brasileiro. Foram feitos registros da ave no Cerrado de Minas Gerais e também na Serra da Bodoquena, no Mato Grosso do Sul. Esse contato entre duas populações da mesma espécie de dois biomas diferentes já existe entre as harpias.
Discretas e raras
Um dos motivos que levaram ao estudo do morphnus é justamente a falta de informações sobre a espécie. Acredita-se que ela seja bem mais rara do que a harpia. A experiência de dez anos do Projeto Gavião-Real contribui para esta hipótese. Dos 100 ninhos monitorados pelo programa, apenas 10 são de morphnus. Mas a dificuldade em encontrar ninhos talvez esteja relacionada também a discrição da espécie. “Já fiquei o dia inteiro olhando o ninho e não vi a ave. Ao contrário da harpia, que faz barulho quando voa, o morphnus é silencioso”, conta Felipe.
Este voo silencioso é justamente resultado de diferenças evolutivas que separaram as duas espécies. O uiraçu-falso é mais adaptado a voos dentro da mata, tem uma asa mais larga, uma cauda mais comprida. E é bem mais leve, chega a 3 quilos, enquanto o gavião-real atinge até 9 quilos. Outra diferença é a garra da harpia, do tamanho de uma mão humana, que não se pode comparar com a do primo menor.
Visualmente, é difícil diferenciar. A mais característica está na coroa. Enquanto a crista da harpia tem duas penas, a do morphnus tem apenas uma. Mas este detalhe nem sempre é fácil de ser observado. Mais marcante é a ausência do “colar” escuro no uiraçu-falso adulto. As diferenças são ainda mais difíceis de serem percebidas quando as aves são filhotes. E há diferenças também nas escolhas para construção de ninhos e de presas: o morphnus também usa as forquilhas principais das árvores, mas sempre na altura das copas. Já a harpia prefere árvores emergentes, para ficar acima da copa das árvores.
Enquanto o gavião-real prefere atacar preguiças, mais da metade de sua alimentação, o morphnus parece mais especializado em locais onde caça. Mais de 70% da alimentação são pequenos e médios mamíferos, predominantemente arbícolas e crepusculares ou noturnos. Felipe acredita que o predador ataca essas vítimas durante o dia, nos refúgios que eles utilizam.
Esta semana, Felipe apresentou os resultados do estudo em uma palestra do Museu da Amazônia. Uma hora de conversa foi pouco para apresentar essa majestosa ave de rapina, que nas florestas brasileiras só perde em porte para o gavião-real. Mas os quatro anos de estudo já ajudaram a revelar um pouco mais sobre ela e a mostrar que ainda existem muitos nobres a serem reconhecidos na nossa biodiversidade.
Leia Também
Gaviões-reais são seguidos por satélites na Amazônia
Águias pescadores iniciam trajeto rumo ao sul
Uma arara voa na Serra de Bodoquena
Leia também
Entrando no Clima#41 – COP29: O jogo só acaba quando termina
A 29ª Conferência do Clima chegou ao seu último dia, sem vislumbres de que ela vai, de fato, acabar. →
Supremo garante a proteção de manguezais no país todo
Decisão do STF proíbe criação de camarão em manguezais, ecossistemas de rica biodiversidade, berçários de variadas espécies e que estocam grandes quantidades de carbono →
A Floresta vista da favela
Turismo de base comunitária nas favelas do Guararapes e Cerro-Corá, no Rio de Janeiro, mostra a relação direta dos moradores com a Floresta da Tijuca →
Muito lindo, descobrir maiz uma CRIAÇÃO do nosso Deus.
Creio q na foto seja uma harpia e não um morphnus….