Seguindo para cima havia dois caminhos e nós optamos pelo mais radical, devido ao tempo que ganharíamos para chegar até o fogo. Tempo é fundamental, as vezes é a diferença entre salvar milhares de hectares ou ver tudo queimar como um inferno. A parte mais radical do caminho era um paredão que tínhamos que escalar com abafador e bomba costal (cheia com 20 litros de água… é peso!). Cansados, porém com muita garra e determinação de proteger a natureza, superando as dificuldades, conseguimos chegar ao topo e combater o fogo até debelá-lo. Por fim, derrotamos o fogo em um lugar que, você que está lendo, talvez nunca tenha visto igual ou tão lindo. Estávamos a quase 1.700m de altitude, de frente para um visual exuberante e, ao mesmo tempo, diante de uma grande área de degradação da natureza, causada pelo fogo.* |
Quem vive na região da baiana Chapada Diamantina não deve esquecer dos meses de outubro e novembro 2008, quando poderosos incêndios devoraram 55 mil hectares de campos rupestres e de florestas nativas de Mata Atlântica e Cerrado. E tudo isso apenas dentro do parque nacional. Ou seja, um terço da emblemática unidade de conservação foi torrado em menos de dois meses. O saldo da tragédia só não foi pior pela ajuda de São Pedro e de brigadistas voluntários que somaram esforços com o time contratado pelo governo.
“Naqueles dias havia umas 200 pessoas no combate ao fogo, espalhadas pelas serras e campos, dia e noite. Dessas, cerca de 150 eram brigadistas voluntários. Mas quem apagou o fogo realmente foi a chuva. Aviões, helicópteros, nada funcionou”, conta Augusto Gallinares, atual presidente e membro há uma década da Brigada de Resgate Ambiental de Lençóis – Bral.
Se o episódio serviu para lembrar às populações sobre as incontroláveis “forças da natureza”, também deixou claro o potencial do trabalho voluntário como aliado na conservação de áreas protegidas. Coisa que ainda engatinha no Brasil, mesmo com os bons exemplos que se tem.
Abismado com os incêncios que lambem há décadas a Chapada Diamantina, um pequeno grupo uniu forças em 1996 para formar o que se tornaria uma das mais aguerridas brigadas voluntárias de combate ao fogo. De início, a Bral recebeu equipamentos e aprendeu as primeiras técnicas com os bombeiros. Perambulou de casa em casa por anos com os materias de trabalho. Hoje, exibe CNPJ, estatuto e ocupa desde o início do ano uma sede na rua das Pedras, ponto nobre do município de Lençóis. Metade do aluguel é pago pela prefeitura, além de receber contribuições mensais de restaurantes, empresas de turismo e afins. “Muitas pessoas ainda acham que ganhamos dinheiro para o trabalho, mas ele é voluntário, gratuito”, emenda Gallinares.
A brigada tem 18 brigadistas cadastrados. Quando não estão embrenhados na região lutando contra as labaredas, guiam turistas, atendem ou dirigem restaurantes, emprestam as mãos a tarefas de pedreiro. “O resto é comprometimento, amor à natureza. Eles realmente gostam de apagar incêndios florestais. Muita gente que ganha dinheiro fixo não atua com tanto empenho”, comenta o presidente da entidade. Membros mais antigos do time têm mais de 350 combates no currículo, sem contar o profundo conhecimento sobre a região e de técnicas de luta contra o fogo. O trabalho pode ter ares de romantismo, mas é preciso pegada forte para engrossar os quadros da brigada. A maioria dos embates contra o fogo acontece à noite, quando aumentam a umidade e a resistência humana ao calor. Também são necessários companheirismo, determinação, ser um bom cidadão e ótimo em trabalhos de grupo onde as armas de combate são abafadores, bombas costais, facões e foices. Antes do sinal verde dos brigadistas mais antigos, são necessários dois anos de provação para os candidatos, conta Gallinares. “É muita responsabilidade. De dez, quinze candidatos, às vezes um se adapta ao trabalho, um dos mais intensos que existem. Nunca registramos nenhuma morte de brigadista voluntário, só picadas de cobra, escorpião, vespas”.
Os equipamentos usados pela Bral vêm de doações dos governos federal, estadual e Defesa Civil. A brigada está tratando de uma parceria com a empresa Stihl. A idéia é conseguir roçadeiras de grande porte e motosserras de pequeno porte para abrir aceiros, acelerando e melhorando as batalhas contra as chamas. “Com isso, mudaremos a forma de combate ao fogo no Brasil”, diz Gallinares.
Parque e entorno
Aquela era a hora de terminar com o fogo, mas não tínhamos forças, estávamos extenuados, só controlamos as beiradas e cochilamos ao lado do bravo. Sabíamos que se tivéssemos uma bomba costal cheia, acabávamos com ele. Já era uma da manhã e, pra quem tinha subido a serra as três da tarde com 35º na cabeça, e não bebia água a mais de seis horas, não tivemos outra alternativa, que procurar água para beber e alguma coisa de comer. Tivemos que subir a rampa, pois o resto do grupo com o pão, o queijo e a mortadela estavam lá em cima. A subida foi terrível. Três da manhã quando achamos os demais. Ao parar, o frio nos atacou com força. Fizemos uma fogueira, tiramos as roupas e pusemos pra secar no fogo. Saímos de 500° pra tremer de frio. * |
O trabalho histórico da Bral nos seis municípios no entorno do parque nacional da Chapada Diamantina – Lençóis, Andaraí, Itaetê, Mucugê, Ibicoara e Palmeiras -, e também dentro da unidade de conservação, já lhe rendeu renome nacional e internacional. Sua experiência tem sido aproveitada nas demais regiões da Bahia, como no parque nacional do Descobrimento, e outros estados, como Goiás. Imagens poderosas dos voluntários frente às labaredas já chegaram à Europa.
Criado em 1984 sobre uma região culturalmente atrelada ao uso do fogo, o parque nacional e a região da Chapada Diamantina são conhecidos pela grande e frequente incidência de incêndios. Conforme a Bral, são em média 45 focos por ano. Em 2004, chegaram a 65. A entidade está preparando sua página na internet http://www.bral.org.br/ para apresentar um mapa atualizado dos incêndios regionais. “Sem os voluntários, nenhum governo daria conta do trabalho”, ressalta Gallinares.
Ele avalia que praticamente todos os incêndios na região dependem da mão humana. Na Diamantina, agropecuaristas, garimpeiros e muitos outros ainda vêem na cultura ultrapassada do fogo um meio barato para limpar o verde que cobre as chapadas.
Pela falta de regularização fundiária, no interior dos 152 mil hectares do parque nacional ainda figuram mais de cem famílias. Sem contar habitantes dos municípios em seu entorno, que acabam adentrando os limites da área protegida para turismo irregular, caça, coleta de plantas para comércio e criação de animais. “Assim prejudicam tudo, a conservação da chapada e o turismo”, ressalta o presidente da Bral.
Modelo replicável
O dia já raiava quando eu e Fábio decidimos retornar a Lençóis em busca de comida e reforço, pois o fogo ainda estava fora de controle. Com a claridade chegando, olhamos em volta, procurando a trilha, e vimos que tínhamos descido uma pirambeira com vários buracos de 50 a 100 metros. Olhei pro Fábio e disse: “Rapaz!!! gente é muito louco mesmo!” Se o fogo fosse de dia, teríamos pensado duas vezes antes de descer aquela encosta, se é que descíamos. Subir foi outra história. Bem mais fácil.* |
Argentino de Buenos Aires, Augusto Gallinares lembra que em seu país o corpo de bombeiros é totalmente voluntário e recebe dinheiro do governo federal e de organismos estrangeiros. Chile, Estados Unidos e países europeus têm modelos semelhantes. No Brasil, os bombeiros estão vinculados à Polícia Militar.
A direção do parque nacional da Chapada Diamantina reconhece 14 grupos de voluntários brigadistas na região, muitos nascidos a partir das contratações feitas desde 2001 pelo governo. A Bral não firma contrato com organismos públicos ou privados.
“O Instituto Chico Mendes contrata cerca de 40 brigadistas por seis meses a cada ano, no período mais crítico dos incêndios, a partir de agosto ou setembro. E conta com a parceria contínua das brigadas voluntárias. Ela é de grande importância porque eles conhecem muito bem as serras e formam um grande contingente no combate ao fogo”, conta Bruno Lintomen, gerente de fogo do parque nacional.
O analista levanta a carência de trabalhos preventivos e de campanhas contra o uso do fogo na região. Segundo ele, as conversas entre governo federal e Comitê Estadual de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais na Bahia têm avançado, mas é preciso mais. “Todo o trabalho contra o fogo precisa ser reforçado, inclusive com atuação junto a produtores de gado”, comentou. “Também é fundamental uma política que incentive o serviço voluntário no Brasil. Aqui na chapada muitas pessoas têm essa gana pelo combate aos incêndios. Isso poderia ser estimulado e aproveitado, por exemplo, oferecendo auxílio médico e de saúde aos brigadistas”, sugeriu.
Este ano, a Bral também planeja montar uma biblioteca e acervo com imagens e vídeos dos combates. Mais facetas para o trabalho de um incansável grupo, que também se dedica a campanhas de caridade para doação de alimentos e roupas, a limpar trilhas, resgatar pessoas e corpos e permanecer sempre alerta para fiscalizar e denunciar ilegalidades ambientais.
* trechos de depoimentos de voluntários à página da Bral sobre combates ao fogo na Chapada Diamantina
** fotos: Arquivo Bral
Saiba mais:
2009: um ano de fogo
Olho no passado para prevenir o futuro
Brincando de deus na Chapada Diamantina
Proteção para a Chapada Diamantina
Saldo final da tragédia na Bahia
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