Reportagens

O teto do Brasil está em festa

Parque Nacional do Caparaó comemora 50 anos com excelente relacionamento com as comunidades do entorno, um dos maiores volumes de pesquisas científicas e grande população de muriquis do país

Fernanda Couzemenco ·
24 de maio de 2011 · 13 anos atrás

O teto do Brasil está festa. Protegendo o Pico da Bandeira (2.891,9m de altitude), ponto culminante da Mata Atlântica e terceiro mais alto do país, o Parque Nacional do Caparaó comemora 50 anos neste dia 24 de maio com muitas boas histórias pra contar. 

A primeira é a de como foi construído o excelente relacionamento com as comunidades do seu entorno, um dos melhores do país, na percepção da bióloga Thais Farias Rodrigues, recém-empossada chefe do Parque. Isso não significa que neste aniversário se comemore também bodas de ouro com as comunidades, pois casamento feliz de hoje é fruto de um “namoro” iniciado há menos de vinte anos. 

No início, o Parque foi  mal compreendido e recebido, a exemplo do que acontece com a maioria das unidades de conservação de proteção integral no Brasil. Ainda há incêndios criminosos, caçadores de pássaros e cortadores de palmitos. O número de casos é bastante modesto, na avaliação de Thaís. A presença quase diária da fiscalização ajuda bastante. “É um dos poucos parques no país com fiscalização diária”, diz a chefe, que se sentiu muito acolhida no novo trabalho, também, devido à grande harmonia da equipe. “A situação de equipe é muito favorecida aqui. E tem as parcerias, com prefeituras, governos, ONGs, todo mundo quer colaborar”, comemora. 

Acontecimentos ocorridos ao redor da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92), em 1992, foram decisivos para essa mudança de percepção. A pedagoga e educadora ambiental Flávia Nascimento Ribeiro relata, em sua dissertação de mestrado, dois eventos na gênese dessa grande transformação: o 17º Encontro Nacional de Comunidades Alternativas (ENCA), que em 1991 aconteceu no distrito de Patrimônio da Penha, trazendo a primeira leva de hippies (como são chamados pelos nativos todo mundo que vem de fora) para a localidade; e as duas primeiras edições do Encontro de Ambientalistas da Região do Caparaó (EARC), que aconteceram a partir de 1993, ano em que foi criada a Associação Pró-Melhoramento Ambiental da Região do Caparaó (AMAR Caparaó), uma das principais organizações não governamentais locais, mais conhecida pela Brinquedoteca e o tradicional EcoBike.

Pessoas engajadas


“Após a realização desses eventos e com a parceria com a Secretaria de Estado para Assuntos do Meio Ambiente (SEAMA), foram acontecendo os fóruns itinerantes e o diagnóstico participativo com os atores locais, culminando com a criação do Consórcio do Caparaó”, observa Flávia. O Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Sustentável da Região do Caparaó que ela menciona se mantém como órgão de mobilização social e educação ambiental, fazendo eventos como a Mostra de Vídeo Ambiental do Caparaó (MoVA Caparaó). Nela,  estudantes de ensino médio realizam oficinas de roteiro, filmagem e direção e depois apresentam seus curtas na mostra competitiva.

icamiabas


Conta a lenda que em tempos remotos, vivia no alto da Serra da Caparaó uma comunidade de mulheres guerreiras chamadas de icamiabas. Uma vez por ano, elas permitiam a subida dos homens que viviam em um vilarejo aos pés da montanha, para acasalamento. Os filhos meninos ficavam com as mães até os sete anos de idade, quando desciam para a vila de homens. E as meninas continuam no alto da montanha, sendo educadas como guerreiras, mantendo a cultura icamiaba.

Continuando suas pesquisas acadêmicas na região, agora com o doutorado, Flávia defende a idéia de que o Caparaó é uma terra de “sujeitos engajados” e esse é o maior motivo do sucesso das ações de educação ambiental. “Esse sujeito, além de ter idéias de um mundo ‘ideal para se viver’, possui uma energia canalizada para a causa socioambiental em que é tocado. Tem o poder de se comunicar com o outro e de ‘tocar’ o outro com as ações realizadas”, analisa.

O engajamento dos sujeitos dá o tom até mesmo no setor produtivo. Um bom exemplo é o Circuito Caparaó Capixaba, um projeto de desenvolvimento do ecoturismo organizado pelos próprios empreendedores, com apoio de prefeituras, do SEBRAE e do Consórcio.

Cecília Nakao, da Pousada Villa Januária e produtora de café orgânico no distrito de Pedra Menina, conta que o circuito foi nascendo naturalmente, com cada empreendedor indicando outras localidades e outras pousadas para os visitantes conhecerem melhor o entorno do Parque. Boa parte dos empreendimentos funciona nos moldes do programa Cama & Café, implantado pioneiramente no Caparaó e depois exportado pelo Governo estadual para outras regiões. A essência do programa é profissionalizar os serviços de hospedagem e alimentação realizados em residências ou pequenas pousadas.

A ex-comissária de bordo paulista Cecília é reconhecidamente outra icamiaba caparaoense, referência em ecoturismo e agroecologia e cineclubismo. Para o aniversário do Parna, ajudou a coordenar o Abraço ao Parque, em que estudantes e moradores de pelo menos dez comunidades organizaram, simultaneamente, rodas, cânticos e outras manifestações de “agradecimento e respeito ao Parque”. A versão virtual do Abração aconteceu via twitter no mesmo horário, 10 da manhã.

O traçado do Abração segue o caminho da Estrada-Parque, ou “futura Estrada-Parque Modelo do Caparaó”, como o bom guru e profeta Constantino Korovaeff enxerga os cerca de 200 km de circundam o Parque Nacional do Caparaó. Jornalista, escritor, tradutor, diretor de uma editora local e fundador da AMAR Caparaó, o paulista Constante, como é chamado pelos amigos, é um dos idealizadores do projeto da Estrada Parque Modelo do Caparaó. “Estrada-Parque é a espinha dorsal de todo o turismo da Região do Caparaó, é corredor ecológico, é um modelo de conservação, proteção e principalmente recuperação da Mata Atlântica ao redor do Parque”, conclama.

Muriquis

No lado mineiro da Serra, o modelo de pavimentação nem de longe é prioridade na pauta de discussões e reivindicações das comunidades e empreendedores, que já lidam com o turismo organizado há bem mais tempo e contam com hotéis e restaurantes de maior porte e sofisticados. Um dos efeitos colaterais desse pioneirismo é visto a olho nu: a floresta praticamente deixou de existir na face oeste da montanha.

Como prêmio pela falta de pressa, o lado capixaba da Serra é morada privilegiada dos muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), provavelmente uma das três maiores populações em toda a Mata Atlântica, bioma do qual o primata, um dos mais ameaçados e fascinantes do mundo, é endêmico. A estimativa é do Projeto Muriqui – ES, realizado pelo Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica (IPEMA) com apoio da Fundação Biodiversitas. 

O bicho tem virado um ícone disputado. Prefeituras, jornais, artesãos, titiriteiros, documentaristas e quem mais que tome conhecimento da presença do simpático macaco, que é também um dos principais temas entre a profusão de pesquisas científicas realizadas no Parque. “O Caparaó é uma das unidades de conservação que mais tem pesquisas no Brasil”, contabiliza a chefe do Parna. E o número tem crescido: foram 30 em 2009, 50 em 2010 e, se 2011 continuar mantiver o ritmo, deve fechar com 60. O coordenador do Projeto Muriqui, biólogo Sérgio Lucena, foi o principal incentivador da criação Reserva Particular do Patrimônio Natural Cachoeira Alta, na zona de amortecimento do Parque, estratégia que considera ser vital para reduzir a caça e o desmatamento, principais ameaças ao mono-carvoeiro.  

A RPPN é administrada por Ângela Bernardeth Nunes Righetti e seu marido. Chegada há dez anos na região, Ângela toca ainda, junto com a filha Emanuelle, uma pousada e uma fábrica de papel reciclado, ou “recriado”, como gostam de chamar. A experiência foi apresentada na sétima edição do Viva a Mata, promovido pela SOS Mata Atlântica semana passada em São Paulo.

Teto e cumeeira

Mas por que afinal chamamos aqui de teto do Brasil uma montanha que é a terceira e não a primeira mais alta do país? Porque os picos da Neblina (3.014,1 m) e 31 de Março (2.992,4m) estão no extremo norte, na fronteira com a Venezuela, e são pouco acessíveis, sendo necessários vários dias de caminhada e barco para chegar à sua base. Enquanto o Pico da Bandeira pode ser alcançado com algumas horas de caminhada, absolutamente acessíveis para pessoas de diversas idades e condicionamento físico. Assim, para a caparaoense de coração que escreve esta matéria e outros apaixonados pela região, nativos ou não, a montanha sagrada é o teto do Brasil, sendo as duas amazônicas já citadas, a cumeeira deste telhado encantado.

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