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O Silêncio das Elites

Participação da comunidade nas questões ambientais não é fácil, mas pode ser a única salvação. O problema é o autoritarismo das burocracias, a alienação das elites e a não representatividade de muitas organizações.

26 de agosto de 2004 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A adesão da comunidades – das lideranças comunitárias – e essencial em situações que envolvam processos físicos, em território definido. Meio-ambiente, no que se refere à degradação de terras e águas e à destruição da flora e da fauna, é desses casos. Há inúmeros estudos, mostrando o efeito das atitudes das comunidades e dos governos locais, na política de disposição de lixo e de localização de atividades agressivas. Os parques nacionais e estaduais, especialmente aqueles que fazem limites com áreas urbanas, sofrem o assédio crescente da comunidade de seu entorno. Se essa comunidade não se torna aliada dos parques, provavelmente será uma fonte de invasões e agressões, cujo resultado mais provável é a redução repetida da área de preservação.

Solidão
O caso do secretário de Meio Ambiente da prefeitura de Formosa-GO, relatado por Carolina Mourão, para O Eco, ilustra as contingências do isolamento, numa comunidade que não está mobilizada para a causa ambiental.

Em visita recente ao parque estadual do Rio Doce, em Minas Gerais, vimos a luta do gerente do parque para, com seus pouquíssimos funcionários, controlar os caçadores. Deu para avaliar o tempo e os recursos que ele investe na educação e sensibilização das comunidades urbanas do entorno do parque, que ameaçam avançar sobre sua fronteira, ou degradar uma larga franja dela, com lixo e outros tipos de agressões cotidianas.

A fronteira é, em si mesma, um problema grave a ameaçar os parques: não há áreas de amortecimento, para transição nem entre as zonas de moradia, nem entre as áreas de cultivo e o perímetro de preservação dos parques. Eles vão sendo imprensados pelo avanço dos bairros da periferia urbana, de um lado, e pela expansão das plantações ou criações, por outro.

Passamos uma tarde e uma manhã no parque, que tem área total de 36.000 ha., sendo o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica em Minas Gerais, nesse período foram flagrados cinco caçadores. O parque é um precioso patrimônio natural: além da Mata, com suas espécies animais típicas, como os muriquis e as onças, ele abriga parte da maior província lacustre do estado, com cerca de 60 lagoas naturais, de um conjunto de mais 100.

Tem todos os atributos para ganhar a simpatia e a adesão da população local, desde que com educação e mobilização, adequadas – objetivo que conta com a iniciativa e operosidade do zeloso gerente – e com incentivos adequados. Os incentivos dependem da forma pela qual o parque é integrado à economia local. Se ele cria oportunidades de renda e de uso para a população, começa a ganhar aliados comunitários. Se for visto como um estorvo, a comunidade se tornará um grande fator de risco.

Nos parques em que os conselhos envolvem a comunidade, com participação efetiva nas deliberações, se vê mais progresso na conquista da população local para sua proteção ativa. Mas, muitos deles são capturados por políticos locais e militantes, sem grande penetração real nas comunidades, e se tornam parte do problema.

Não contem com as elites locais
As elites locais, governamentais e não-governamentais, são parte crítica no processo de envolvimento local na causa ambiental. Têm enorme poder de veto nas decisões e podem ser agentes poderosos de degradação. Na maioria dos casos são, hoje, no Brasil, o principal entrave a ações locais de preservação ambiental. Um antigo Globo Ecologia, sobre a Estação Ecológica de Caratinga, importante reserva, na Fazenda Montes Claros, onde se desenvolve o maior projeto de pesquisa com os muriquis, conduzido pela antropóloga da Universidade de Wisconsin, Karen Strier, registrou perfeita ilustração da mentalidade dos políticos locais, em relação ao meio ambiente.

A estação de Caratinga está em área doada pelo proprietário, Feliciano Abdalla, e é um exemplo de preservação e pesquisa não intervencionista: os animais, embora acostumados à presença humana, vivem em estado selvagem. Em um município próximo a Caratinga, na Mata do Sossego, vivem muriquis em estado selvagem. Alguns moradores criaram uma ONG para trabalhar pela sua preservação. Conseguiram que parte da terra fosse adquirida pela Biodiversitas. Foram ao prefeito, para ganhar seu apoio e ele declarou, diante das câmeras, para ninguém duvidar, que os macacos – então gravemente ameaçados de extinção – não eram sua prioridade, enquanto não conseguisse asfaltar a estrada entre Manhuaçu e Simonésia. Sem estrada, ninguém iria ver os macacos, concluía.

Não é um caso isolado. Pesquisa dos politógos Maria Hermínia Tavares de Araújo e Leandro Piquet Carneiro, do departamento de Ciência Política da USP, que radiografa as elites municipais brasileiras, revela, com toda nitidez, o seu descaso ambiental. Coisa grave, pois é impensável ação ambiental eficaz, sem a participação ativa das comunidades e de suas lideranças.

Primeiro, falta consciência da manifestação local do problema ambiental. “Os dados do survey indicam que os líderes locais consideram que os principais problemas ambientais, embora ocorram em diferentes partes do mundo e mesmo no Brasil, não afetam os municípios onde vivem, pelo menos não na mesma intensidade de outras partes”, informam os pesquisadores. A julgar pelo que dizem essas lideranças, parece que a maioria dos municípios brasileiros não fica no Brasil. Veja os números:

Problemas considerados muito sérios no Mundo, no Brasil e no Município
M. H. Tavares de Almeida e Leandro Piquet Carneiro
“Liderança Local, Democracia e Políticas Públicas”


 








O único problema que a maioria reconhece como presente, também, em seus municípios, é a destinação do lixo. Como deve ser um problema em mais de 80% deles, tem uma parte que não o vê, na porta de casa.

Não é que esses cidadãos de estirpe não reconheçam as responsabilidades locais na determinação dos problemas ambientais. Com relação ao aquecimento do planeta, 54,5% da elite governamental local e 61% da não-governamental, concordam que o município deva desenvolver ações. Que os municípios têm capacidade legal na área de meio ambiente, 46,7%, reconhecem e 45,53% admitem que é responsabilidade local. Mas apenas 22% consideram o problema ambiental importante.

Lidos de outra forma, a maioria das lideranças locais acha que meio ambiental não é responsabilidade local, os municípios não têm capacidade para atuar e esta não é uma questão relevante. Logo, pode pensar global, mas ação local, nem pensar.

Deliberação coletiva não é coisa fácil
O Brasil não tem cultura participativa. Dizer isto chega a ser constrangedor, dadas as evidências todas de centralização, burocratização e autoritarismo que caracterizam nossa história. Mas é que, desde a Constituinte 1988, estamos descentralizando aceleradamente. Nós não vemos a força extraordinária do interior do país, porque não olhamos para ele.

A mídia só olha para o interior aniversariamente, festa disso, festival daquilo, micareta, bumba-meu-boi. Ou quando acontece um grande desastre. O fato de que a maior parte do desenvolvimento do Brasil, nas últimas duas décadas, se deu fora do eixo Rio – São Paulo e fora das regiões metropolitanas, continua desapercebido para a maioria.

A questão é que as elites desprezam o povo e, este, desacredita delas. Se as comunidades não são consultadas, nem podem participar da escolha daquilo que será feito em seu município e sua região, acabam, também, se alienando dessas questões. Sobram os militantes e os oportunistas.

Um estudo recente de um sociólogo da universidade de São Francisco, Steven Zavestoski, um especialista em política ambiental, da universidade de Drake, Stuart Shulman e um politólogo, da universidade de Northern Arizona, David Schlosberg, sobre participação comunitária na política ambiental, nos Estados Unidos, mostra que não é simples criar processos participativos eficazes, mesmo em países com mais cultura associativa.

Eles estudaram dois casos de consulta pública muito interessantes. O primeiro, implementado pelo Departamento de Agricultura (USDA), para definir o Programa Nacional de Orgânicos, em 1997, criando normas para comercialização e certificação de produtos agrícolas orgânicos. O segundo, iniciativa do Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS), em 2000, para criação de uma norma de Conservação de Áreas sem Estrada, que estabelecia limites para a construção de novas estradas, em parques e áreas selvagens.

A consulta do USDA gerou 275 mil comentários do público, dos quais, 170 mil cartas-resposta, 85 mil cartas pessoais e faxes e 21 mil, submetidos pela web. A maioria contestando a inclusão de transgênicos, produtos irradiados e biosólidos na classificação.

O que houve de inovação nessa iniciativa é que o USDA permitiu que quem participasse tivesse acesso às outras opiniões e também as comentasse, não apenas a proposta do departamento. O resultado foi, segundo avaliação dos funcionários, confirmada pelos três analistas, positivo e resultou em mudança substancial da proposta, que terminou por proibir a inclusão desses três tipos de produto na categoria de alimento orgânico. A versão final da regra foi, novamente, submetida a debate e provocou 40 mil manifestações, a grande maioria favorável. Resultou na aplicação do princípio cautelar, com apoio social.

O processo conduzido pelo USFS apresentou números mais impressionantes, mas resultados mais modestos. Primeiro, como partiu de uma iniciativa autocrática do diretor do serviço, congelando a construção de rodovias, porque não conseguia manter as já existentes, acabou provocando demandas judiciais e a aplicação da regra foi interrompida por ação cautelar. Segundo, porque o processo foi mais convencional e não usou as possibilidades de interatividade da internet para transformar a consulta em debate ou deliberação pública.

Os números são, realmente, espetaculares. A decisão inicial, de congelamento, foi colocada em discussão e provocou 119 mil comentários. Posteriormente, o USFS colocou em pauta o projeto de um Relatório de Impacto Ambiental, com o objetivo de fixar uma regra mais permanente. Nessa segunda consulta, recebeu 1 milhão de cartões postais, 90 mil e-mails, 60 mil cartas pessoais e perto de 20 mil faxes. Mas não havia consenso e sem a troca de comentários, não foi possível levar a opinião pública a um ponto de encontro. Essa primeira avalanche de opiniões continha emoção e julgamento moral em excesso e pouca orientação prática para orientar as escolhas das autoridades. Provavelmente falha de processo.

Para evitar a tragédia dos comuns
Embora nenhum dos dois casos seja, realmente, local, a reação da maioria dos participantes era estimulada, segundo os analistas, por considerações de ordem local. Claro que os participantes terão visto mais problemas e ficado mais frustrados do que a análise dos pesquisadores revela. É natural. Mas, a avaliação objetiva mostra que é possível conciliar participação comunitária – e não apenas da militância mais ostensiva – padrões científicos e os interesses das agências regulatórias, em um processo de escolha que obtém maior adesão e maior obediência às regras.

Dependendo de sua condução e da sinceridade da consulta, o processo aumenta a credibilidade e legitimidade das agências regulatórias, incentiva a cooperação da sociedade e cria aliados à sua causa.

Há muitas barreiras à participação, em toda parte. No Brasil, nossa cultura autoritária e a atitude adversária, com que muitas organizações da sociedade civil se manifestam nessas questões, tornam tudo ainda mais difícil.
As distorções na comunicação, a cooptação de lideranças e cidadãos por parte de grupos mais poderosos de interesses e a baixa representatividade das organizações da sociedade civil são apontadas como as principais barreiras estruturais.

As maiores barreiras processuais são o controle autoritário do processo decisório pelas burocracias e a resistência ideológica ou moral dos ativistas em aceitar trocas razoáveis, para permitir avançar o processo decisório. Autoritarismo, ausência de pluralismo e intolerância para com a divergência sempre levam ao impasse, sobretudo quando aparecem juntas.

No Brasil todas essas barreiras aparecem com um expoente de alto grau, mas são passíveis de correção.

Difícil não é impossível. Se não aumentarem a propensão à cooperação público-privada no Brasil, a participação e o comprometimento das comunidades e se o processo regulatório não se democratizar e admitir a interatividade e o contraditório, marcharemos para uma verdadeira tragédia dos comuns. Enquanto defendemos nossas próprias posições irredutivelmente, veremos nosso meio ambiente comum ser devastado, sem que nada possamos fazer para salvá-lo.

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