O oeste de Uganda é parte do Rift Albertino, região de florestas muito úmidas que crescem nas encostas de montanhas com nomes míticos como Virunga e Rwenzori. É um dos hotspots de diversidade da África, com muitas espécies não encontradas em nenhuma outra parte do mundo.
Ali está a floresta de Bwindi, onde há 120 espécies de mamíferos (10 de primatas), 348 de aves (incluindo os míticos African Green Broadbill e Grauer’s Rush Warbler) e uma das floras mais diversas da África Oriental.
Em 1932, dois blocos da floresta de Bwindi, junto a Buhoma e Ruhija, foram designados “Reservas Florestais da Coroa” pelas autoridades coloniais britânicas. Em 1942, as reservas foram unificadas e aumentadas para 298 km², sob administração conjunta dos departamentos de caça e florestas.
Em 1952 a administração colonial estabeleceu o National Parks Act of Uganda, transformando várias reservas florestais e de caça – como os hoje famosos Murchison Falls e Queen Elizabeth – em parques. Mas Bwindi ficou de fora.
Em 1962 Uganda se tornou independente e dois anos depois Bwindi se tornou um “santuário animal” e renomeada Impenetrable Central Forest Reserve. Nos anos seguintes foi ampliada para 321 km², mas continuou a permitir a caça, pesca e extrativismo (incluindo madeira) pelos locais, com pouco controle pelas autoridades. Isto estava degradando seriamente a área.
Medicina moderna e cultura fazem de Uganda um dos países com maior crescimento populacional. Bwindi está em uma região de terras férteis e a densidade populacional no seu entorno passa de 300 pessoas/km², com uma parcela importante na pobreza, vivendo da agricultura de subsistência. E querendo terra.
Algo precisava ser feito. No Brasil, os apelos dos cientistas para salvar Bwindi teriam sido ignorados. Ou a área acabaria nas mãos dos ruralistas ou viraria uma reserva extrativista, zona histórico-cultural ou maquiagem do tipo para que a detonação continuasse.
Felizmente o governo de Uganda adotou uma das ideias mais revolucionárias já desenvolvidas: criou, em 1991, o Parque Nacional Bwindi Impenetrable. Em 1994, a UNESCO o reconheceu como patrimônio da Humanidade.
Parques nacionais “modelo Yellowstone” são revolucionários por perverter a mentalidade padrão do patrimonialismo e privatismo. Ao invés de um território ser propriedade de um indivíduo ou grupo, passa a ser da totalidade da sociedade e manejado pensando em quem virá depois e nas outras espécies que têm o infortúnio de compartilhar o planeta conosco.
Com o parque cessaram todas as atividades insustentáveis. Os Batwa, caçadores-coletores, foram realocados do parque e estão fazendo a transição para a vida moderna – incluindo turismo baseado em suas tradições. Uma estrada que conectava Buhoma com outras áreas foi fechada por causar impactos excessivos.
Sucesso em Bwindi
Com suporte científico, Uganda transformou Bwindi em uma das maiores atrações turísticas da África, respondendo por mais da metade da renda oriunda do turismo em um país onde os parques e sua fauna são o grande atrativo turístico.
Entre as muitas espécies que teriam desaparecido sem a proteção de parques como Bwindi estão os Gorilas-da-montanha Gorilla beringei beringei. Primeiro estudados por George Schaller (já entrevistado pelo ((o))eco) e depois por Dian Fossey, trabalho exibido em diversas revistas, livros e no filme Gorillas in the Mist.
Descobertos em 1902, estes gorilas ocorrem em duas áreas disjuntas. Uma é Bwindi, e foi a presença dos gorilas que estimulou Uganda a adotar medidas reais de conservação.
A segunda é o complexo do Virunga National Park (República Democrática do Congo), Parc National des Volcans (Rwanda) e Mgahinga National Park (Uganda), região com longa história de conflitos e desmandos. Na década de 1960, o Parc National perdeu metade de sua área para plantações de piretro. Ruralistas…
Além de viverem em uma região pequena sob pressão de populações humanas que crescem explosivamente e periodicamente tentam se matar, os gorilas estão ameaçados por serem carne para a panela das populações locais. Além dos gorilas, chimpanzés e toda a fauna das florestas da África estão sendo comidos até a extinção.
Se você tiver estômago, pode apreciar e aprender mais sobre a relação gastronômica tradicional entre povos nativos e gorilas aqui.
Trabalho recente mostra que a população planetária de Gorilas-de-grauer Gorilla beringei graueri declinou de 16.900 indivíduos para 3.800. Foram para a panela durante a guerra civil na República Democrática do Congo.
Em 1990-94, durante a guerra civil de Rwanda (soma de superpopulação com populismo étnico), refugiados mataram e comeram pelo menos quatro silverbacks líderes de grupos habituados a receberem pesquisadores e visitantes. Outros 11 gorilas também foram mortos.
Hoje a situação é bem mais tranquila e os gorilas são considerados tesouros nacionais em Uganda e Rwanda, enquanto no conturbado Congo esforços internacionais têm trazido mais proteção ao complicado Virunga.
Em 1989, sabia-se que a população planetária de gorilas-da-montanha era de 620 indivíduos. Com a proteção efetiva dos parques nacionais dos três países a população está crescendo e o último censo, em 2012, contou 880 gorilas, com 417 em Bwindi. Os resultados do censo de 2016 devem sair neste ano.
In loco
Visitei Bwindi em janeiro e vi em primeira mão como o parque funciona. Buhoma e Ruhija, antes exclusivamente agrícolas, são centros onde lojas e serviços, incluindo turismo cultural, florescem graças ao parque nacional.
Como todas as áreas protegidas do país, Bwindi é administrada pela Uganda Wildlife Authority, uma entidade paraestatal sob a autoridade do Ministério do Turismo, Vida Selvagem e Antiquidades. O governo de Uganda considera suas unidades de conservação como negócios e ativos econômicos.
Se você visitar a página da UWA ou, melhor ainda, visitar Uganda, irá descobrir que o país está anos-luz à frente do Brasil em manejo e no uso de parcerias público-privadas e concessões para fazer os parques rodarem.
A situação fundiária está resolvida e áreas adjacentes foram compradas de particulares. Os rangers recebem treinamento intenso e são tanto capazes de recitar a lista de aves do lugar (encontrei colegas bird-watchers) como usar um AK-47, equipamento padrão contra caçadores ilegais, elefantes com muita testosterona (tiros para cima bastam) e turistas teimosos.
Há muitas opções de hospedagem, da básica à chic, várias coladas no limite do parque. Este valorizou muito as propriedades limítrofes, preferidas para construir pousadas e onde os gorilas às vezes passeiam.
Meu grupo ficou hospedado na Buhoma Community Haven Lodge, empreendimento de turismo de base comunitária que oferece serviço de excelente qualidade e acomodação top. Todos os comunitários que trabalham ali já trabalham em outros lodges e somam grande experiência. Bem diferente das miçangas e improviso que alguns associam à modalidade.
Além das aves, o objetivo da visita era fazer um gorilla tracking e conhecer uma das 7 famílias habituadas para receber turistas. A UWA cobra US$ 600 por visita, além da entrada do parque.
Parte da arrecadação vai para um trust fund que financia projetos comunitários e para pagar por danos causados por animais. Isso, os empregos diretos e indiretos e as cadeias produtivas geradas ajudaram muito a reduzir as tensões causadas pela criação do parque.
É evidente que em um lugar entupido de gente as oportunidades criadas por um parque nunca darão para todos e sempre há descontentes que podem ser recrutados pelos privatistas. O importante é que os benefícios sejam suficientes para neutralizar os depredadores.
Apenas 8 pessoas por vez podem visitar cada família de gorilas. Na alta estação há até 72 pessoas/dia fazendo o tracking, ou US$ 43.200/dia só de taxa de gorilla tracking. Isso explica porque a UWA dá uma banana às demandas de políticos para que estradas em Bwindi sejam abertas (aconteceu na última eleição).
Após uma preleção, os grupos de turistas são alocados a uma das famílias conforme suas condições físicas enquanto os times de trackers (3-4 pessoas em cada) já estão na floresta localizando os gorilas. No meu caso, fomos alocados para conhecer a família Rushegura, hoje com 16 membros.
Game of Gorillas
Gorilas vivem em famílias com um macho dominante – o silverback, um harém de várias fêmeas e seus bebês e adolescentes. Os machos jovens – blackbacks – e a maioria das fêmeas deixam o grupo natal quando atingem a maturidade sexual e se integram a outro grupo ou formam um novo. Isso pode se dar via combates e manobras políticas no melhor estilo Game of Thrones.
Esta organização social estilo harém pode ter sido a mesma de ancestrais humanos mais antigos, como a famosa Lucy.
Na entrada da trilha, numa comunidade rural cercada por bananais, quem precisou contratou um carregador para levar sua mochila. Muitos porters são estudantes que usam o dinheiro (US$ 20 é o piso) para pagar seus estudos. A escola em Uganda, mesmo a pública, tem custos e 6 dias carregando a mochila de turistas bancam um semestre. Os porters também apreciam muito a oportunidade de conversar com pessoas de diferentes culturas e muitos são excelentes guias turísticos.
Liderados pelo ótimo Benjamin (que faz isso desde 1992) e com a escolta de 2 rangers da UWA, após 1:20 h de tranquila caminhada pirambeira acima para encontrar os outros 4 trackers. E os gorilas.
Primeiro conhecemos o silverback Kabukojo (“O Que Tem Muitas Cicatrizes”), um tranquilo senhor de 17 anos, pouco mais baixo que eu mas com o triplo da largura. Silverbacks com 220 kg e 1,9 m já foram mortos (é..) nas Virunga. Após as apresentações passamos por cada um dos membros do grupo, dos black-backs até as senhoras e seus bebês.
Todos já haviam comido a refeição da manhã (adultos podem comer 20 kg de salada por dia) e as mães dormitavam enquanto os bebês brincavam ao lado, ignorando os turistas. Elas têm seu primeiro parto com 10 anos de idade, o que se repete a cada 3-4 anos. Leva uns seis anos para que os jovens desgrudem da mãe, um período difícil no qual os silverbacks são figuras importantes, até para evitar o bullying pelos mais velhos.
O melhor momento foi quando encontramos dois jovens, bolas de pelo negro e luzidio com longos braços e pernas curtas, em um jogo de luta (sumô?). Que culminou com o menor subindo em uma árvore, enquanto o maior parava junto ao tronco.
Me ajoelhei para fotografar o guri e ele olhou para mim. Ainda de joelhos, olhando pelo visor da câmera, vi o pirralho se aproximar. Quando noto, está na minha frente, com a cara primata universal de “vamos brincar”, e gentilmente coloca a mão sobre o meu braço.
Eu digo “hello” e penso como proceder. Um dos trackers, materializado ao meu lado, diz “step back“. Quem faz isso é a criança, não eu. Ele sobe na árvore e faz uma cara amuada.
Aquele era Kamara, nascido em 23 de novembro de 2008, filho de Kanunguyi, uma honorável senhora nascida em 1982. Seu companheiro de brincadeira era o meio-irmão Kabunga. Todos os Rushegura começam com Ka….
Na volta, já chegando nos carros, passamos por um grupo de umas 40 crianças que vendiam desenhos feitos no papel que têm disponível. Pura arte naïf, na maioria retratam gorilas. Compramos dois. Um deles mostra, no verso: “Arte por Ishameal. Eu estou na quarta série. Eu sou uma órfã”.
Uganda tem 2,5 milhões de órfãos, resultado de altas taxas de fertilidade, da epidemia de AIDs (originária do consumo de chimpanzés e outros primatas), da pobreza e da cultura do crescei e multiplicai-vos.
Enquanto humanos pululam, a população de gorilas de Bwindi cresce a uns 1% ao ano. Os grupos habituados mostram uma taxa maior, possivelmente por receberem mais proteção e cuidados veterinários. Como os que o próprio Kabukojo precisou.
Doenças transmitidas de humanos e seus pets – especialmente respiratórias – são uma preocupação real e há programas específicos para isso. Uma ONG que trabalha a questão expandiu suas atividades para incluir a saúde de populações humanas e produtos como café gorila-friendly. Uma abordagem muito interessante.
Versão brasileira
Uganda poderia ensinar o Brasil como tornar seus parques efetivos mesmo com graves problemas sociais. Preferimos o coitadismo socioambiental que privatiza parques.
Enquanto Uganda tem gorilas, o Brasil tem os famosos Muriquis, os macacos paz e amor tema de Faces na Floresta, um livro delicioso escrito por Karen Strier.
Os Muriquis-do-norte Brachyteles hypoxanthus estudados por Strier – habituados a humanos – podem ser visitados na sua área de pesquisa, a excelente RPPN Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga (MG).
Como os gorilas, os 900 Muriquis nortenhos que restam – restritos a MG, BA e ES – são ameaçados pelo desmatamento, pela fragmentação de seu habitat, pela incivilização da bancada ruralista e sua oposição à restauração de APPs e reservas legais.
E por haver quem os coma. Mesmo destino de outras espécies ameaçadas, os últimos muriquis no Parque Nacional do Monte Pascoal foram mortos pelos índios Pataxó, que também arrasaram boa parte da Mata Atlântica do parque. É um dos melhores exemplos da privatização (no sentido verdadeiro) de uma UC no Brasil, mas não o único.
Os Muriquis-do-sul Brachyteles arachnoides, com talvez mil indivíduos, ocorrem principalmente em SP e RJ. Nesta região ainda há centenas de milhares de hectares de habitat, a maior parte vazia de muriquis porquê índios, caipiras, quilombolas e caiçaras os extinguiram mesmo dentro de UCs.
Sob o olhar bovino das “autoridades” e palmas de antropólogos que acham linda esta “afirmação da cultura”.
Realmente poderíamos aprender muito com Uganda.
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Excelente relato, Fabio, e com grandes lições para aprendermos! Siga nos trazendo informações assim. Suas aventuras turísticas (algumas que eu mesmo repeti) são sempre carregadas de lições para interessados na conservação e bons entendedores. Quem sabe, um dia mudamos a triste realidade brasileira para no campo conservacionista para algo descente.
Ótimo artigo, Fábio. Foi uma das experiências mais marcantes que já tive na natureza. E também saí de Uganda com a impressão de que temos muito a aprender com eles.
Maravilha !!!
Em 1986 tive o privilégio de visitar gorilas da montanha no Parque Kahuzi-Biega, na República Democrática do Congo na época Zaire).
Um experiência inesquecível.javascript:%20postComment(0);