Reportagens

A luta do maior primata das Américas contra a fragmentação da Mata Atlântica

Com muitas populações isoladas em fragmentos, o criticamente ameaçado muriqui-do-norte ganhou o apoio de uma iniciativa pioneira de ressocialização e manejo no interior de Minas Gerais

Duda Menegassi · Bernardo Araujo ·
1 de fevereiro de 2022 · 2 anos atrás

Sozinha na mata por mais de cinco anos, Esmeralda envolvia o próprio corpo com seus longos braços numa tentativa de não esquecer a sensação de um abraço. Trezentos quilômetros ao sul, os irmãos Bertolino e Luna tinham apenas um ao outro para trocar afetos e tentar lembrá-los do que significava ser um muriqui-do-norte, ainda que a ausência de uma fêmea parecesse sinalizar o fim daquela pequena e ilhada população no sul de Minas Gerais. O maior primata das Américas nada pode contra a fragmentação de habitat que estrangula suas chances de sobrevivência.

O ano era 2017 e os pesquisadores do Muriqui Instituto de Biodiversidade (MIB) faziam uma primeira e urgente tentativa de reunir os muriquis isolados. Esmeralda viveu por cinco anos sozinha num fragmento de Mata Atlântica, no distrito mineiro de Esmeraldas de Ferro, até ser translocada para o fragmento florestal conhecido como Mata do Luna, no município de Santa Rita do Ibitipoca, onde estavam os dois machos. A esperança era que os três pudessem interagir e talvez até começar a reproduzir, porém os anos de solidão tiveram um impacto profundo demais na fêmea.

“Como ela havia ficado cinco anos sozinha, ela tinha muitas questões sociais já prejudicadas”, lembra Priscila Pereira, pesquisadora do MIB. “Por exemplo, o comportamento que os muriquis fazem sexualmente, ela fazia para cavalos, porque de onde ela veio só tinha cavalo”. Parte dos sons produzidos pelos muriquis soam como um relincho, e talvez essa similaridade tenha contribuído para a confusão de Esmeralda, o que para os pesquisadores serviu como um cruel sinal do quão profundamente ela havia se desconectado de sua própria natureza. 

Alheia a seus pares, Esmeralda fugiu duas vezes da região da Mata do Luna. Na última delas, desapareceu e não foi mais encontrada pelos pesquisadores. Em pleno surto de febre amarela, seu destino provavelmente foi a morte. Um desfecho triste, mas que impulsionou uma iniciativa pioneira e a construção da “Muriqui House”, ou simplesmente, Casa dos Muriquis, em 2018, com o objetivo de ressocializar os muriquis isolados para que possam ser reintegrados com sucesso à natureza. O recinto hoje abriga cinco muriquis-do-norte adultos e dois filhotes.

A história que levou à concretização desse promissor lar de muriquis começa muito antes, na década de 80, com dois eventos a princípio desconexos: a compra de uma fazenda por dois primos que queriam “deixar a natureza se regenerar” e que deu origem ao projeto Comuna do Ibitipoca; e a chegada de uma pesquisadora americana ao interior de Minas Gerais, que queria observar de perto a vida desses grandes primatas do Novo Mundo.

A pesquisa

Como a maioria dos primatas, muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus) são animais que dependem de profundas relações sociais para sua existência, que vivem em grupos de até 60 indivíduos. Como tantos outros primatas, eles também são habitantes do dossel florestal da Mata Atlântica, ágeis em sua locomoção de galho em galho, e se alimentam basicamente de frutos, flores e muitas folhas. Todos esses traços tão característicos de macacos, no entanto, escondem uma ecologia comportamental muito particular.

“Os muriquis são completamente tranquilos; eles não têm hierarquia”, conta a pesquisadora americana Karen Strier, que lembra como o comportamento extremamente pacífico dos muriquis chamou sua atenção desde o começo. 

Strier é hoje professora da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e diretora de pesquisa do Instituto Preserve Muriqui, que faz a gestão da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga, Minas Gerais. Em junho de 1982, com apenas 23 anos, ela pisava pela primeira vez em solo brasileiro, e se colocava frente a frente com o maior macaco americano.

“Meu interesse era testar as teorias da evolução social numa espécie [de primata] que ainda não tinha sido estudada com muita precisão”, conta Strier com seu português de sotaque carregado, mas afiado. Até a década de 80, com a exceção de bugios, apenas o comportamento social de primatas do Velho Mundo havia sido estudado detalhadamente. 

Strier iniciou o primeiro estudo aprofundado de uma população de muriquis, que nos permite hoje conhecer com algum detalhe as particularidades do maior macaco das Américas. Na maioria das espécies de primatas, os machos tendem a ser maiores que as fêmeas, tanto em termos de tamanho geral do corpo quanto de dentes caninos (uma de suas principais armas). Provavelmente por conta dessa vantagem, machos do mundo primata geralmente exibem comportamentos dominantes sobre fêmeas. Em muriquis-do-norte, no entanto, ambos os sexos têm o mesmo tamanho, o que impede que fêmeas sejam facilmente coagidas e controladas.

Uma das primeiras coisas que Strier percebeu – e aquilo que ela considera sua maior descoberta – é que no mundo dos muriquis não existe hierarquia e agressividade entre sexos. Não existe sequer agressividade dentro do mesmo sexo. Apesar de pequenas brigas acontecerem, muriquis-do-norte são criaturas surpreendentemente pacíficas e afetuosas. É comum, por exemplo, que eles se toquem e se abracem por longos períodos de tempo apenas para demonstrar afeto. 

Strier também observou que as fêmeas de muriqui são responsáveis pela diversidade genética da espécie. São elas que, ao se aproximarem de idade reprodutiva, entre 5 e 7 anos de idade, deixam seu grupo nativo em busca de uma nova família e, consequentemente, em busca de parceiros não tão proximamente aparentados, o que garante genes variados para as novas gerações. Apesar de positivo do ponto de vista genético, este movimento feito pelas fêmeas traz implicações sérias para a conservação de muriquis: para grupos desses primatas, o isolamento geográfico é uma sentença de extinção.



Até o início dos anos 2000 os muriquis eram considerados uma única espécie. Hoje, a ciência reconhece duas: os do norte e os do sul (Brachyteles arachnoides). Em termos físicos, as diferenças são sutis.


A mais explícita delas é a despigmentação da face, que se desenvolve nos muriquis-do-norte a partir da idade adulta e vira um tipo de impressão digital de cada indivíduo. Além disso, os muriquis-do-norte possuem um polegar vestigial que não existe entre os parentes do sul.


Em termos geográficos, os muriquis-do-sul distribuem-se entre a porção nordeste do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, enquanto os do norte ocorrem em Minas Gerais, Espírito Santo e no sul da Bahia.


Ambos são exclusivos da Mata Atlântica e sofrem com a degradação do seu habitat natural, motivo que os leva ao patamar de espécie ameaçada de extinção. A situação do muriqui-do-sul, entretanto, é “menos pior”, avaliada pelo ICMBio como “Em Perigo”, enquanto o do-norte é considerado “Criticamente Ameaçado”.

O destino dos muriquis-do-norte está intrinsecamente ligado ao da Mata Atlântica, pois a espécie é endêmica do bioma, ou seja, ocorre apenas ali. Essa relação fez dos muriquis mais uma entre tantas vítimas dos séculos de destruição de florestas na costa brasileira. A espécie hoje conta com cerca de mil indivíduos na natureza, distribuídos em doze localidades, dentre as quais apenas 5 possuem populações com uma quantidade suficiente de indivíduos para que ela tenha boas chances de sobreviver no longo prazo. Dentro deste cenário, a saída de fêmeas de grupos isolados de muriqui – um aspecto tão natural e necessário para sua ecologia em condições saudáveis – se torna um problema. Elas abandonam seu grupo natal antes de deixar qualquer descendente e vão em busca de outros grupos, mas a fragmentação do habitat e a grande distância entre as populações podem condenar as fêmeas a uma vida errante e solitária. Foi o que aconteceu com Esmeralda. 

O destino trágico dessas fêmeas é também um mau presságio para seu grupo natal, que, por conta da mesma distância e fragmentação da paisagem, não é alcançado por fêmeas de outros grupos e aos poucos entra em declínio. 

Ao mesmo tempo em que Strier realizava seu estudo pioneiro na RPPN Feliciano Miguel Abdala, o pequeno e desconhecido grupo de muriquis-do-norte que habitava a Mata do Luna contemplava este exato destino.

Por algum acaso, a Mata do Luna sobreviveu intacta aos ciclos econômicos do café e da pecuária da Zona da Mata mineira e preservou um pequeno fragmento de mata primária. Apesar de estar a menos de três quilômetros ao norte da fronteira do Parque Estadual do Ibitipoca, a Mata do Luna estava completamente isolada, rodeada por pastagens, e se tornou uma prisão a céu aberto para os muriquis, que se viram sem ter para onde ir.

Em 2000, relatos de moradores levaram os pesquisadores do MIB ao fragmento, onde confirmaram a presença de 10 muriquis-do-norte. Sete anos depois, restavam apenas dois, os irmãos Bertolino e Luna. Este último, não chegou nem mesmo a conviver com fêmeas depois de atingir a maturidade sexual e por isso, nunca aprendeu a copular – mais uma sequela social do isolamento. 

Quando soube da presença dos muriquis-do-norte na Mata do Luna, em 2000, o empresário Renato Machado resolveu agir. Primeiro comprou a área de floresta onde estavam os animais, depois as propriedades do entorno. Renato é o idealizador de um crescente empreendimento hoteleiro de alto padrão chamado Comuna do Ibitipoca, que investe também na regeneração de áreas naturais da região. O negócio teve início em 1984, com a compra da Fazenda do Engenho, e hoje soma quase 6 mil hectares de áreas, quatro vezes o tamanho do seu vizinho, o Parque Estadual do Ibitipoca, com cerca de 1.500 hectares. 

A missão da Comuna, explica Renato, é destinar 98% das áreas compradas para recuperação, e ocupar apenas 2% com estruturas do negócio hoteleiro. Nessa porção “intocada” da Comuna, o objetivo é ter outro tipo de hóspede: a fauna nativa. 

Uma das antigas fazendas compradas pela Comuna do Ibitipoca, que hoje funciona como hotel. Foto: Vitor Marigo

A Mata do Luna é um bom exemplo. Depois de comprá-la na virada do milênio, quando era um fragmento isolado de menos de 35 hectares, a Comuna investiu na compra dos pastos vizinhos que cercavam a floresta. Vinte anos depois, a área do Luna já possui cerca de 200 hectares em processo de regeneração.

“A gente compra, tira o gado e protege do fogo”, resume Renato. A partir daí, a natureza mesmo faz o trabalho de, aos poucos, retomar com vegetação a área. Em locais onde a degradação foi mais grave, entretanto, o empresário admite a necessidade de uma intervenção humana, com plantio, em prol da restauração. “É um projeto de longo prazo”, acrescenta.

Apesar da Mata do Luna estar no caminho da restauração, tempo era um luxo que Luna e Bertolino não possuíam. Em 2017, os irmãos eram os últimos sobreviventes no fragmento e após a tentativa mal-sucedida de integrar Esmeralda, tornou-se evidente tanto para os biólogos quanto para os membros da Comuna que era necessária uma intervenção mais profunda de manejo para dar uma chance de futuro para população de muriquis da região do Ibitipoca. Nascia assim o projeto da Muriqui House.

Um lar para ressocializar o maior primata das Américas

A área onde foi construída a Muriqui House fica na Vila do Mogol, no distrito de Conceição de Ibitipoca, e em nada se assemelha a um cativeiro comum. O perímetro da área de 6 hectares de extensão é protegido por uma cerca elétrica de baixa intensidade, que previne que os muriquis tentem escapar. Lá dentro, uma floresta de 2 hectares de extensão concentra as árvores das quais se alimenta o primata – cerca de 3 mil delas foram plantadas pela equipe do projeto.

Além da pequena floresta, que conta com plataformas de alimentação e trilhas de serviço, a área possui ainda um ‘gaiolão’, onde é feita a quarentena e aclimatação dos animais e uma pequena casinha utilizada como quartel-general dos pesquisadores do MIB. Um calendário na parede sinaliza ciclos importantes que são monitorados, como o período de cio das fêmeas e a atividade reprodutiva entre os muriquis.

O Muriqui Instituto de Biodiversidade (MIB) foi criado em 2015, com o objetivo de apoiar e desenvolver ações para conservação dos ecossistemas e da biodiversidade, em especial o muriqui e seu habitat. Em 2016, a organização não governamental começou a parceria com a Comuna do Ibitipoca, a princípio com o objetivo de monitorar os muriquis da região da Mata do Luna. Com a evolução do trabalho e a necessidade de investir na ressocialização dos primatas para garantir sua sobrevivência, a Comuna comprou a ideia da Muriqui House e investiu cerca de R$1 milhão para construção do recinto.

Em 2019, vieram os primeiros muriquis-do-norte. Duas fêmeas, Ecológica e Socorro, vieram da RPPN Mata do Sossego, um fragmento de Mata Atlântica a cerca de 400 quilômetros ao norte de Minas. As duas foram escolhidas porque estavam na idade de migrar e não tinham para onde ir. Além delas, foram trazidos os dois irmãos, Bertolino e Luna. 

Em novembro de 2020, mais uma fêmea, batizada de Nena, foi inserida no grupo. E no mesmo mês, o grupo cresceu com a chegada de Elliot, fruto da união entre Ecológica e Bertolino, e o primeiro muriqui-do-norte nascido em cativeiro.

No final de 2021, outro filhote veio para o grupo da Muriqui House. Com apenas três anos, o muriqui – batizado de Odin – foi encontrado no município de Caratinga, sozinho e debilitado. Após cerca de um mês de reabilitação no Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) de Belo Horizonte, os especialistas do Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação dos Primatas da Mata Atlântica e da Preguiça-de-Coleira (PANPPMA) decidiram que a melhor opção era enviá-lo para o recinto na Comuna do Ibitipoca.

“Se a gente quer proteger o muriqui, a gente tem que fazer o manejo”, afirma Fabiano Melo, primatólogo e professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), mais conhecido localmente como Bião, e um dos pesquisadores do MIB.

Com sete habitantes, a Muriqui House é hoje o único cativeiro que faz o manejo com indivíduos de muriqui-do-norte e o mais próximo de condições naturais que o primata poderia encontrar. Por melhor que seja, a Muriqui House não pretende ser uma residência permanente: ela é um passo vital para que todos os seus inquilinos possam retornar à natureza numa condição sustentável, ou seja, em uma situação onde seus grupos possam prosperar e crescer. E “grupos”, no plural, são justamente o que é necessário.

Para que os muriquis-do-norte possam mais uma vez ter um futuro na região do Ibitipoca é necessário que dois grupos diferentes de indivíduos coexistam a uma distância próxima e conectada. Dessa forma, as fêmeas poderão migrar para outro grupo e, com isso, garantir a persistência da população local de muriquis como um todo. Foi em uma condição similar que os muriquis-do-norte de Feliciano Miguel Abdala estudados por Strier foram capazes de sobreviver. No início da década de 80, a RPPN suportava dois grupos, nas áreas de mata conhecidas como Matão e Jaó, que trocavam fêmeas a cada geração. Hoje, cinco grupos de muriquis habitam a região.

Os pesquisadores do MIB planejam reunir indivíduos suficientes na Muriqui House para a soltura de pelo menos dois grupos de 10-12 indivíduos na Mata do Luna. E tudo indica que este objetivo pode estar no horizonte. Na região de Peçanha, também em Minas Gerais, existe um grupo de muriquis em situação semelhante à que os indivíduos da Mata do Luna se encontravam há algumas décadas. 

“Peçanha pra mim hoje é o cenário mais crítico”, aponta Fabiano. “É um grupinho de 15 animais totalmente isolado numa mata de 500 hectares”. Deixado à sua própria sorte, este grupo também estaria destinado a um lento declínio. Dessa forma, o plano do MIB é aos poucos capturar os indivíduos de Peçanha, integrá-los ao grupo da Muriqui House, e formar o contingente necessário para tornar a região do Ibitipoca um lar para muriquis-do-norte mais uma vez.

“O sonho do Renato é termos aqui 500 muriquis em 50 anos”, conta Fabiano, relembrando uma conversa que teve com o fundador da Comuna anos atrás. “Nós começamos bem. Daqui a 40 anos eu acho que a gente não vai ter ainda 500, mas a gente pode ter 100 muriquis aqui tranquilamente”.

A conservação dos muriquis-do-norte

Com uma população estimada em menos de 1 mil indivíduos, o muriqui-do-norte é considerado Criticamente Ameaçado de Extinção e a principal ameaça ao primata é justamente a fragmentação e perda do habitat. Atualmente, as populações conhecidas da espécie estão distribuídas em 12 localidades, que começam na divisa entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, no Parque Nacional do Itatiaia, multiplicam-se pelo território mineiro, e se estendem até o Espírito Santo e o sul da Bahia, no complexo do Alto Cariri.

Dessas 12, cinco são listadas como áreas prioritárias para a conservação da espécie de acordo com avaliação do PAN para Conservação dos Muriquis (ou PAN Muriquis, encerrado em 2015), por possuírem as maiores populações conhecidas de muriqui-do-norte, com mais de uma centena de indivíduos. Essas áreas são a RPPN Feliciano Miguel Abdala, o Parque Estadual do Rio Doce e o Parque Estadual da Serra do Brigadeiro, todas no estado de Minas Gerais; uma série de fragmentos de diferentes tamanhos na região de Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo; e o Parque Nacional do Caparaó, na divisa entre os dois estados. Atualmente desconectados, esses blocos de floresta estão a uma distância de 70 a 120 quilômetros de seu vizinho mais próximo, separados, na maior parte, por uma colcha de retalhos de fragmentos florestais e propriedades rurais. 

Do outro lado dessa moeda, as regiões com as populações mais ameaçadas são justamente Ibitipoca (que graças à Muriqui House hoje está mais segura) e Peçanha (que sequer consta originalmente no PAN, pois foi confirmada apenas em 2020), que estão na lista de prioridades de manejo da equipe do MIB.

O 1º ciclo do PAN Muriquis foi elaborado entre 2010 e 2015, fruto do trabalho do primeiro comitê internacional organizado para a conservação e manejo da espécie, e prorrogado por mais 2 anos. O objetivo geral deste plano de ação era reduzir pelo menos em um nível o grau de ameaça dos muriquis segundo os critérios da International Union for the Conservation of Nature (IUCN): de “Criticamente em Perigo” para simplesmente “Em Perigo”. Para isso, o plano estabeleceu 10 objetivos específicos e 58 ações para atingir sua meta final. Concluído oficialmente em 2017, este PAN observou a implementação na íntegra de 46% das ações que propôs, enquanto as demais 54% observaram alguma forma de progresso.

Em 2018, o PAN Muriquis foi substituído pelo já citado PAN dos Primatas da Mata Atlântica e da Preguiça-de-Coleira (PPMA), previsto para se encerrar em 2023. Esses planos foram essenciais para a aproximação de diversos agentes interessados na conservação do muriqui, e possibilitaram a organização de workshops e reuniões vitais. Uma delas aconteceu em 2020 na própria Comuna, e reuniu pesquisadores (como Fabiano, que faz parte do Grupo de Assessoramento Técnico do PAN), gestores e agentes de órgãos como o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB) – um dos braços do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).    

“Nós trouxemos os membros do CPB, o órgão brasileiro responsável por essas questões de fauna [de primatas], e através de uma discussão a gente consolidou uma estratégia de manejo formal, protocolada, que diz o que a gente deve fazer quando encontra uma fêmea isolada, um macho isolado, um grupo de machos ou fêmeas isolado ou um grupo misto isolado. Então hoje a gente sabe exatamente o que a gente tem que fazer”, reforça Fabiano Melo, em referência ao documento “Protocolos para Pesquisa e Manejo de Muriquis”, escrito por 31 especialistas e publicado em outubro de 2021.

O protocolo detalha todas as ferramentas necessárias para a conservação dos muriquis, que vão desde o manejo dos animais em si, até medidas para avaliação da qualidade do habitat, uma ferramenta essencial para o estabelecimento de futuros corredores.

“Nós temos um projeto grandioso de estabelecimento de corredores entre o Brigadeiro, Caparaó, Sossego e Caratinga”, conta o primatólogo. “Estamos procurando financiadores nacionais e internacionais para isso. A gente quer começar ligando Caratinga e Sossego, que seria um corredor de 45 km de extensão e já está parcialmente estabelecido por conta das áreas de mata de Reserva Legal e APPs (Áreas de Preservação Permanente)”. O dinheiro seria utilizado para incentivar proprietários rurais a reflorestar as áreas necessárias para unir as reservas.

“Já existe até um decreto estadual (NE nº 397/2014) que estabelece o corredor ecológico Caratinga-Sossego”, continua Fabiano. “O próprio estado assumiu a responsabilidade de auxiliar as instituições de pesquisa e os proprietários da região a implementar um corredor, beneficiando essas duas populações de muriquis. Ainda vai demorar algumas décadas para a gente ver muriqui passando de um lado pro outro nesses corredores, mas a gente tá no caminho”. O corredor que interliga as reservas particulares abrange um total de 66,4 mil hectares e passa por sete municípios mineiros.

Esses corredores entre populações de muriquis não são os únicos planejados para a região. “Nós queremos unir o Mogol com a Serra Negra”, conta Beto Nardelli, diretor de biodiversidade e cultura da Comuna. O projeto visa estabelecer um corredor ecológico de 25 quilômetros de extensão entre os parques estaduais do Ibitipoca e da Serra Negra, e cruza a Vila do Mogol, onde está uma das sedes da Comuna do Ibitipoca. O maior desafio, explica Beto, é justamente a conexão entre a Serra Negra e o Mogol, pois a própria área da Comuna já forma um corredor com o Parque Estadual do Ibitipoca.

A Vila do Mogol, sede da Comuna do Ibitipoca, em Minas Gerais. Iniciativa de corredor pretende conectá-la à Serra Negra. Foto: Vitor Marigo

No caminho entre os dois maciços florestais estão muitos pastos e alguns fragmentos remanescentes, que podem servir de base para a construção do corredor. “E vamos ter que restaurar também, claro”, avalia Beto, que planeja aproveitar o passivo de Reserva Legal das propriedades para facilitar o plano de restauração.

Beto acredita que o corredor deve promover não apenas a revitalização ambiental, mas também econômica da região. “Precisamos pensar no corredor de forma mais ampla, dentro de um contexto socioeconômico em que a população possa usufruir de uma nova economia, porque se for bom só para natureza e não for bom para as pessoas, vai ser mais difícil da iniciativa dar certo”, explica o diretor da Comuna.

Apesar de não existir nenhuma população conhecida de muriquis no parque, os pesquisadores têm uma ponta de esperança de que possa haver um grupo ainda anônimo na área, que tem mais de 13 mil hectares e locais de difícil acesso. “A gente tem relatos de muriquis lá, já teve sobrevoo de helicóptero, incursão por terra, uso de playback, mas até hoje não conseguiram comprovar essa população. Uma primatóloga ouviu relincho de muriqui lá em 2016. Então pode ter uma populaçãozinha relictual ainda, mas é agulha no palheiro”, descreve Fabiano.

Para conseguir escrutinar por completo o dossel da Serra Negra, os pesquisadores planejam algumas excursões ao parque com uma ajuda especial. O ‘dronequi’ – apelido que ganhou pela sua principal função: achar muriquis – nasceu em 2017 de uma fortuita mistura entre criatividade, necessidade e tecnologia, quando Fabiano decidiu criar um híbrido de câmera fotográfica e termal, equipada em um drone.  

A ferramenta é uma das armas secretas da equipe do MIB para mapear áreas de floresta de difícil acesso e identificar a presença de muriquis. “A área da Serra Negra é grande, vamos ter que ficar ciscando e voando com o drone, mas se tiver muriqui lá a gente acha”, aposta.

O sonho de ‘rewilding’ da Comuna

Além do projeto com os muriquis-do-norte, a Comuna do Ibitipoca também investe no manejo e recuperação de outras espécies da fauna nativa. Atualmente, o grupo já tem três antas (Tapirus terrestris) autorizadas pelo Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG), que serão as primeiras a recolonizar a região, onde a espécie foi localmente extinta. O mesmo destino já está em curso com um grupo de 25 jacutingas (Aburria jacutinga), já soltas e atualmente monitoradas. 

Além disso, em parceria com o IEF-MG, a Comuna também promove a soltura de papagaios-de-peito-roxo (Amazona vinacea), numa ação de reforço populacional da espécie na região. Araras-vermelhas (Ara chloropterus), e macucos (Tinamus solitarius) também estão nos planos, cada espécie em diferentes estágios no processo de autorização junto ao órgão ambiental. 

Num horizonte mais distante, o sonho pessoal de Renato é poder trazer a maior ave de rapina brasileira, a harpia, de volta aos céus de Ibitipoca. Para isso, ele prevê que os cerca de 6 mil hectares atuais da Comuna precisarão se multiplicar. “20 mil hectares?”, pergunta a reportagem. “O ideal era um pouco mais, né? Uns 30 mil hectares”, responde em tom confiante que vem acompanhado de um sorriso.

O papel das áreas particulares

Seja na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, onde Karen Strier iniciou a empreitada de pesquisa e conservação dos muriquis-do-norte, ou na Comuna do Ibitipoca, as propriedades particulares possuem hoje um papel-chave para a proteção do maior primata do Novo Mundo. A história não se limita ao muriqui e repete-se Mata Atlântica afora. A SOS Mata Atlântica estima que 80% da área remanescente do bioma está dentro de áreas privadas.

As RPPNs, a única categoria de unidade de conservação de gestão particular, são uma grande aposta para garantir a proteção do que sobrou de floresta. Além disso, o título da terra convertida em RPPN é perene, ou seja, pode ser vendida, trocar de dono, mas permanece uma área protegida para sempre.

Arte: Julia Lima

Apenas na Mata Atlântica, de acordo com dados do painel da Confederação Nacional de RPPNs (CNRPPN), existem 1.268 reservas particulares que cobrem mais de 230 mil hectares de remanescentes do bioma. Dessas, 245 estão justamente em Minas Gerais, e equivalem a cerca de 40 mil hectares de Mata Atlântica protegida em terra particular. 

O governo mineiro, entretanto, não possui nenhum programa ou política pública específica de fomento à criação das reservas. O único incentivo formal é a isenção do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, o ITR (que varia de acordo com o tamanho e uso da terra), da área convertida em reserva.

“A maioria das RPPNs da Mata Atlântica são de pessoa física e a maioria é bem pequena, mas em Minas Gerais tem bastante RPPN corporativa, que são mantidas por empresas”, contextualiza Maria Cristina Weyland Vieira, presidente da Associação de RPPNs e Outras Reservas Privadas de Minas Gerais (ARPEMG). “Mas a grande maioria das RPPNs do Brasil não têm uma sustentabilidade [financeira] própria, elas dependem da manutenção pelo proprietário, seja pessoa física ou jurídica”, acrescenta.

Os gastos de um proprietário de RPPN, ou ‘rppnista’, podem ir desde o cercamento da área, para impedir que o gado do vizinho entre e pisoteie uma área em regeneração, aos custos de manutenção de uma brigada de incêndio e de uma guarda florestal. “É inviável que os proprietários consigam ter isso”, pondera Maria Cristina. “Na maior parte das RPPNs pequenas, os proprietários não têm esse recurso. O que existem são parcerias. É importante firmar parcerias ou conseguir patrocínios”.

De acordo com Maria Cristina, um recurso que poderia ser utilizado pelos governos municipais para fomentar a criação de RPPNs e apoiar os proprietários é o repasse de parte do ICMS Ecológico para os ‘rppnistas’, uma vez que o valor recebido pelos municípios é calculado com base em uma série de critérios, entre eles a presença de áreas protegidas.

Apesar de se tratar de uma área particular majoritariamente destinada à recuperação e conservação da natureza, a Comuna do Ibitipoca não é uma RPPN. Renato é enfático ao explicar o motivo: “engessa demais”. O idealizador da Comuna acredita que para garantir os investimentos em conservação é preciso, em primeiro lugar, um negócio economicamente viável, algo muito mais difícil de conseguir por trás do emaranhado burocrático de uma RPPN.

A própria observação de muriquis, por exemplo, é uma das futuras apostas de Renato, que lembra que o turismo de observação de fauna já movimenta mercados milionários para aves e onças. Atualmente, os hóspedes da Comuna que desejam, já podem visitar a Muriqui House, acompanhados da equipe do MIB. Ao final do passeio, são convidados a doar para o projeto. “Todo mundo fica tão encantado com o muriqui, que sempre doam”, comenta Fabiano.

O que resta hoje da Mata Atlântica não depende apenas de agentes públicos para sua conservação – as pessoas que dividem a propriedade dos 80% do bioma que se encontram em terras privadas têm poder de decisão sobre o seu futuro. Muitos desses agentes, como aqueles que se encontram à frente da Comuna do Ibitipoca e da RPPN Feliciano Miguel Abdala, têm feito mais do que sua parte em defesa dos muriquis-do-norte, e por consequência, da mata que habitam. A história de destruição da Mata Atlântica fez do maior primata das Américas um refém de pequenos fragmentos e da ausência de uma floresta grande e coesa, mas o próprio muriqui pode ser uma bandeira para a restauração do seu lar. No fim, defender os muriquis é proteger a Mata Atlântica, e vice-versa.

O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

  • Bernardo Araujo

    Bernardo Araujo é ecólogo, conservacionista e comunicador científico.

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