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O poder dos locais

Só iniciativas locais firmes podem compensar a decisão frouxa sobre identificação e rotulagem de transgênicos na MOP 3. Se o Brasil cumprir a lei, vai ajudar.

20 de março de 2006 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Pior poderia ser: manter-se o impasse em torno da identificação dos transgênicos. Mas bom, não foi: um acordo frouxo demais, que jogou a decisão para 2012. O terceiro encontro das partes do Protocolo de Cartagena (MOP-3) acabou em acordo aguado sobre a identificação dos grãos geneticamente modificados: o termo “contém” será objeto de nova decisão em 2012. Até lá, fica tudo como estava. Os países usarão “pode conter” transgênicos. Pelo menos, reduziu-se a resistência apenas ao México e, se os governos começarem a implementar mais rapidamente a segregação, na prática a rotulagem pode se tornar um fato consumado.

Ahmed Djoghlaf, novo Secretário Geral para Diversidade Biológica da ONU, disse em Curitiba que biodiversidade e biossegurança são primordialmente um assunto local. Ele tem razão. E estou cada vez mais convencido de que as iniciativas locais são um componente fundamental para que se consiga desenvolver os mecanismos necessários de governança ecológica global. O exemplo desse final meio melancólico da MOP-3 é bastante eloqüente a esse respeito: um bom acordo é praticamente impossível, por causa da regra da unanimidade. Como a decisão não pode ser tomada enquanto houver um único voto contra, todos os membros têm igual poder de veto, não importa seu tamanho ou status (megadiverso, microdiverso, produtor de transgênicos, importador de grãos). Além disso, como os países não são iguais, nem têm os mesmos interesses, cria-se o incentivo aos “caronas”. Foi o que vimos acontecer entre uma e outra MOP.

No Canadá, Brasil e Nova Zelândia, dois países grandes e influentes, patrocinaram o veto a um acordo sobre rotulagem. Havia outros que também queriam vetar, mas pegaram carona na posição dos dois grandes e se calaram. Com isso, transferiram todo o ônus do bloqueio para Brasil e Nova Zelândia. Como os dois ficaram na berlinda, com alta visibilidade por causa da posição minoritária, viraram alvo de forte pressão local e internacional. Para se ter uma idéia, foi tal a pressão nos dias em que se realizou a MOP 3 sobre o governo neozelandês, especialmente depois que o Brasil anunciou a mudança de posição, que o ministro do Meio Ambiente, David Benson-Pope se viu forçado a explicar publicamente que seu país não manteria o veto e acompanharia a posição brasileira. Mas quando os dois mudaram de posição, apareceram os outros vetos, agora sob a liderança do México. Países menores, como o Paraguai, também saíram do armário, mas foram rapidamente neutralizados.

O México, contudo, assumiu o ônus do veto e impôs esse acordo bastante aguado. O Brasil já havia proposto um prazo de carência de quatro anos, para que a identificação precisa entrasse em vigor. A idéia, porém, é que a regra já ficasse firmada como uma determinação para que no transporte internacional de grãos os transgênicos fossem segregados e rotulados com a expressão “contém organismos vivos geneticamente modificados”. A ministra Marina Silva chegou a me dizer que “o pode conter está definitivamente superado”. Não estava. Para elidir o veto absoluto do México, os países tiveram que aceitar que se mantenha a expressão “pode conter”, os que quiserem podem adotar o novo e mais preciso “contém”, e daqui a seis anos se avaliará essa experiência, para definir se o “contém” passa mesmo a vigorar.

Portanto, a única esperança agora é a aceleração da adoção da segregação e identificação pelos países, individualmente, sem o incentivo e a limitação de uma regra de governança ecológica global. No Brasil, por exemplo, a lei já manda fazer assim: segregar e rotular com identificação precisa os transgênicos. O que precisamos é pressão local, para que seja obedecida e aplicada domesticamente e, também, nas cargas para fora de nossas fronteiras. É o mesmo processo que está elidindo, no EUA, a resistência do governo Bush em adotar legislação restritiva da emissão dos gases estufa. Cidades e estados a estão adotando por iniciativa própria e, muito provavelmente, tão logo o país se livre de Bush filho, legislação nesse sentido deve ser aprovada no plano federal.

Iniciativas locais podem acelerar a identificação e rotulagem dos grãos transgênicos, superando essa decisão frouxa da MOP 3 e impor, daqui a dois ou a quatro anos, um fato consumado em busca de uma regra formal de governança global que o ratifique.

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