Campanhas eleitorais são momentos em que há sempre o risco de que os candidatos descambem para a demagogia e manipulação da informação na busca do voto. A qualidade das democracias depende de vários fatores, um deles é a qualidade das campanhas eleitorais. Essa campanha chegou aos limites mais baixos de qualidade. Estava prestes a escrever “mais baixos de qualidade toleráveis no quadro democrático”, mas imediatamente pensei que não é possível afirmar isso categoricamente. Não sabemos, ainda, as seqüelas, para o processo democrático decorrentes dessa campanha. A agenda dos problemas e desafios nacionais foi desprezada pelos candidatos, com exceção da pregação, necessária, pela educação, de Cristovam Buarque, no primeiro turno. No segundo turno, o que se viu foi um debate vazio, de um lado um candidato que não sabia exatamente porque desejou tanto disputar a Presidência e, de outro, um presidente-candidato alienado, estropiando a história pátria e falseando o diagnóstico da conjuntura que vivemos.
O meio ambiente esteve ausente da discussão, até que o governo teve que se defender por ter acusado o adversário de privatismo, quando havia patrocinado uma solução privatista para a Amazônia. Acusado de privatizar a floresta, Lula se apressou em celebrar estimativas de queda do desmatamento, usando número muito baixo de imagens de satélite, o que pode por em dúvida a qualidade da estimativa. Arrisca ser um mínimo, nem média, nem máximo. Os comentaristas habituais da cena amazônica mais envolvidos com o governo, deram explicações constrangidas e, desta vez, se eximiram de muita celebração. Fico com a forte suspeita de que o número saiu, tão apressadamente, economizando metodologia e sem os detalhamentos sub-regionais, para Lula ter o que dizer no debate na TV Globo, desta sexta-feira, 29, se for perguntado sobre a privatização da Amazônia. Mas, se Amazônia for tema do debate, só pode ter um resultado, os dois merecem nota zero nesse quesito.
Não é usando os números do desmatamento em palanque que se deve discutir o mérito da proposta de concessões privadas para cortar a floresta que o governo aprovou com o argumento de ser a única saída viável para a Amazônia. É respondendo às dúvidas sérias a respeito da propriedade, conveniência, fundamentos técnicos e científicos da proposta de exploração por concessão privada de madeira nativa em terras públicas da Amazônia.
Sempre fui contra a política florestal do governo, embora houvesse reconhecido aqui, o seu direito de propô-la e trabalhar por sua aprovação no Congresso. Sou contra a exploração comercial de madeira nativa na Amazônia, sob qualquer regime e a qualquer título. Não encontrei uma só demonstração convincente, com base técnica e científica, da possibilidade de manejo florestal privado ou público bem sucedido em florestas tropicais. Na minha opinião essa parte da Amazônia que está sendo entregue ao setor privado para exploração, num quadro de crise estrutural do estado, financeira e gerencial, de desordem regulatória evidente – da aviação civil, à energia, às telecomunicações, ao meio ambiente – condena essa faixa da Amazônia à destruição acelerada.
Foi sem surpresa, mas com indignação, que vi o palanque eleitoral montado para que o presidente-candidato desrespeitasse, mais uma vez, os limites do decoro presidencial em campanha para a reeleição, para fazer um anúncio eleitoreiro dos números do desmatamento da Amazônia. Qualquer queda no desmatamento é boa notícia. Mas qualquer número de desmatamento não apenas é inaceitável, como é demonstração flagrante de incapacidade regulatória do governo e de falta de uma política efetiva para a Amazônia. Qualquer número de desmatamento deveria ser tratado com sobriedade e recato, porque contraria os alertas científicos de que a floresta está chegando próximo ao limite de irreversível desequilíbrio ecológico, o que terá conseqüências graves para o clima no Brasil e no Hemisfério Sul.
Sobriedade e recato foi, obviamente, o que não se viu. O presidente-candidato mais uma vez resolveu dar lição de como se deve fazer as coisas, falseando a situação real. Disse que o número prova que se pode fazer o desenvolvimento ordenado da Amazônia. Prova, ao contrário, a desordem que reina na Amazônia. É um número alto demais. A ministra Marina Silva, que antes falava do êxito de medidas estruturantes, resolveu informar que as medidas estruturantes virão no segundo mandato. Agora ficamos sabendo que estávamos na fase de comando e controle. Comando e controle é o que tem faltado sistematicamente na Amazônia. Se houvesse comando e controle, o governo não teria que esconder sob a taxa apressadamente estimada de queda do desmatamento, a absurda marca de quase 85 mil km2 de floresta destruídos. Uma média anualizada de 21.118 km2, superior às médias dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, com quem o presidente Lula se compara o tempo todo.
Não é vantagem de ninguém. Os dois merecem reprovação no capítulo da Amazônia. O Brasil nunca teve uma política amazônica decente, na medida da importância e dos riscos da região para o país e o planeta. Com relação à Amazônia, não há mérito em governo algum. Há um passivo enorme de descuido, desordem e irresponsabilidade. Por isso já foram destruídos o equivalente a três vezes o território do estado de São Paulo. A floresta está chegando a seus limites de resistência.
O aumento da fiscalização, que teve papel coadjuvante na produção do número desse ano, não é vantagem. É obrigação mínima. Mas deveria ser permanente e não por operações espasmódicas. O contingente do Ibama na Amazônia é ridículo. O Brasil não tem uma guarda florestal do porte, qualidade e com os poderes proporcionais à importância da Amazônia. O Serviço Florestal Brasileiro deveria ser a sede de uma guarda florestal efetiva e não um gerenciador de contratos de concessão de corte de madeira.
Quem defende a privatização de parte das terras públicas para corte comercial, deveria confrontá-la aos estudos que mostram que o valor econômico da floresta em pé, com capacidade de prestar seus serviços ecológicos, pode ser 20 vezes superior ao da madeira cortada. Mesmo quando se analisa o valor comercial da terra usada para pecuária e soja, somada ao valor da madeira, a floresta em pé, como usina de biodiversidade e central de serviços ecológicos, vale mais.
A Amazônia não está precisando de soluções de compromisso, nem resistirá por muito tempo a essa complacência geral. A Amazônia não pode se dar mais a esse luxo. Está precisando de ousadia, inovação e de coragem governamental para enfrentar os interesses econômicos privados que destroem a floresta, adotando medidas radicais, como a meta de desmatamento zero. A inegável capacidade técnica que temos na área – pública e privada – deveria ser usada para ajudar qualquer governo em um grande esforço cooperativo para viabilizar formas criativas e funcionais de obter receita dos serviços ecológicos, que retirem as populações pobres da região do jugo quase escravocrata dos grileiros, desmatadores, carvoeiros, sojeiros e pecuaristas inescrupulosos. Para que o valor ecológico da floresta se transforme em valor econômico, é preciso que a floresta fique em pé e em um estágio de preservação no qual ainda preste serviços, seqüestrando carbono, como reservatório de água e como usina de biodiversidade. Nenhuma operação econômico-industrial hoje na Amazônia tem o potencial de renda e emprego que uma bioindústria acoplada à usina de biodiversidade teria. A associação entre serviços ecológicos e bioindustrialização constitui, esta sim, a única saída inteligente, racional e responsável para a Amazônia.
O governo deve explicações melhores sobre o desmatamento que permitiu que acontecesse nesses quatro anos de refundação da história do Brasil. Sobre o desmatamento que não houve, teve algum mérito, mas minoritário. A causa dominante da queda do desmatamento foi o recuo da economia sojeira, a retração da indústria madeireira – aí, a repressão e as dificuldades gerenciais que reduziram o licenciamento, tiveram papel na redução da destruição – e os problemas da grande pecuária.
Qualquer aluno de introdução à estatística, ao examinar o gráfico do desmatamento de 1988 a 2006, percebe que existe um ciclo e recomendaria que se tentasse examinar as causas desse ciclo. Entre 1988 e 1989, o desmatamento caiu 27% – em números redondos, saiu de 24 mil km2, para perto de 18 mil – de 89 para 90, caiu de novo, 22,5% e, novamente, de 90 para 91, 20%, chegando a 11.130 km2. Em 92, subiu 24%, subiu mais um pouquinho em 93, 8%, e estacionou em 94, para dar um salto gigantesco com o forte aquecimento da economia, após o Plano Real: 95%. Saiu de quase 15 mil km2, para mais de 29 mil. Em 1996 e 1997, caiu: 37,5% e 27,2%, respectivamente. Problemas no câmbio fizeram a economia andar em ritmos desiguais, com perdas para os setores exportadores e ganhos para os importadores.
Em 98, o desmatamento voltou a subir, 31,4% e ficou girando em torno dos 17-18 mil km2 até 2001. Em 99, oscilou negativamente 0,7%, cresceu quase 6%, em 2000, oscilou negativamente 0,3%em 2001. Em 2002, saltou 28%. Ano eleitoral, economia aquecida, o câmbio subindo junto com a percepção de risco político, o desmatamento foi para a casa dos 23 mil km2. Em 2003, primeiro ano Lula, cresceu 5%, indo para a casa dos 24 mil km2. Em 2004, atingiu sua segunda maior marca, crescendo 11% e ultrapassando os 27 mil km2. Voltou a cair em 2005, 30,5%, para a casa dos 19 mil km2, e agora o governo diz que caiu outros 30,7%, para a casa dos 13 mil. A marca retificada de 2005, foi obtida com uma amostra de 77 cenas de satélite. A de agora, com 34 cenas, menos da metade. Seria importante que o INPE divulgasse uma nota técnica sobre a comparabilidade dos dois dados.
O que está claro é que o governo não consegue fazer uma ação integrada para proteger a Amazônia. Nenhum outro teve. Mas isso só prova que a omissão de responsabilidade é geral e sistemática. Condena a todos e não absolve qualquer um. A explicação para o que se continuou a desmatar pode ser encontrada na economia, da mesma forma que a explicação de porque caiu o desmatamento. Ao que tudo indica, na região de Carajás, o desmatamento foi selvagem – há, que injustiça!, selvagem não, arrasador – porque a siderurgia está crescendo e os carvoeiros em plena atividade. Tudo ilegal. O governo deveria reprimir os carvoeiros, mas, sobretudo, as empresas da cadeia de produção que usa o ferro gusa e convocar as grandes siderúrgicas, CVRD à frente, para que liderem uma ação de bloqueio a todo ferro gusa suspeito de usar carvão ilegal. É preciso mobilizar as empresas legais do Brasil para o combate irrestrito às empresas ilegais. O restante do desmatamento se deveu à grilagem e à pecuária. Mesmo remédio: bloqueio das compras privadas e repressão estatal.
Foi muito mal. O governo fez um papelão. Tenho certeza que as pessoas sérias – não são poucas – que participaram desse ato de campanha inaceitável, estão coradas de vergonha até agora, na intimidade, ainda que vejam justificativa política no que fizeram. O povo brasileiro merece mais. A Amazônia não suportará muitos anos mais de demagogia.
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