Reservar áreas para conservação é uma estratégia que data de séculos atrás. Nas últimas décadas, o número e a extensão de áreas separadas para a conservação da natureza (unidades de conservação ‒ UCs, como são chamadas no Brasil) aumentou bastante, cobrindo cerca de 15% da superfície terrestre. Em 2010, os países parte da Convenção sobre Diversidade Biológica da Organização das Nações Unidas comprometeram-se a proteger 17% das áreas terrestres e águas continentais e 10% das áreas marinhas e costeiras até 2020 (Meta 11 de Aichi).
Apesar desse aumento, pesquisadores e tomadores de decisão vêm argumentando que metas baseadas em quantidade de área protegida não são suficientes para garantir a conservação da biodiversidade porque elas mudam o foco dos países para o rápido acúmulo de extensão, negligenciando elementos importantes como representatividade e conectividade, conforme discutido aqui no ((o))eco. Como resultado, a proteção tende a ser residual.
O termo residual refere-se ao estabelecimento de UCs em paisagens com menor adequação para usos com fins socioeconômicos e, em muitos casos, que enfrentam menor ameaça à biodiversidade (o tema também já foi tratado aqui no ((o))eco). O Brasil é o maior país da América Latina e possui a maior rede de unidades de conservação do mundo, alcançando 18% de sua área continental e 25% de seu território marinho reservado para conservação da natureza. Mas qual seria o perfil dessa rede de conservação?
Em um artigo publicado recentemente na revista Biological Conservation, apresentamos um panorama da rede de unidades de conservação no Brasil. Examinamos a representação dos diferentes habitats dentro das UCs e os vieses de proteção em relação ao relevo e ao uso da terra. Além disso, determinamos se os vieses variam entre os seis biomas brasileiros.
Para isso, medimos o viés de proteção, contabilizando as diferenças entre o perfil das UCs e dos municípios em que elas foram estabelecidas na data de sua criação. Os nossos resultados indicam que, apesar da considerável expansão do sistema de unidades de conservação nas últimas décadas, a proteção em muitas partes tende a ser residual, isto é, as UCs foram criadas em áreas mais íngremes e, especialmente, com menor potencial de uso do solo, quando comparado ao que estava disponível ao seu redor.
Existe um padrão global direcionado à proteção residual que visa minimizar custos e conflitos com outros usos (por exemplo, agricultura), resultando nesses vieses de localização direcionado a áreas mais íngremes, áridas e remotas. Pelo que descobrimos, infelizmente, o Brasil não é exceção à regra. Esses vieses são marcantes para todos os biomas, com exceção da Amazônia. Aliás, o Brasil tem 18% de seu território terrestre sob proteção, mas 70% dessa área está na Amazônia. Os outros biomas do país mal atingem 10% de seus territórios protegidos por UCs e têm forte viés de proteção.
Considerando a representação dos diversos habitats brasileiros, as UCs são relativamente bem alocadas para proteger 51% deles. Isso parece conversa de copo meio cheio ou meio vazio: ter 51% de habitats bem representados também significa ter 49% de habitats sub-representado – e isso acontece devido a essa natureza residual das UCs brasileiras. Precisamos encher mais o nosso copo.
Outros estudos mostram que com a mesma área e o mesmo custo envolvido as UCs poderiam proteger ainda mais espécies do que protegem caso tivessem sido criadas, focando estrategicamente em espécies sub-representadas ao invés de favorecer áreas com menor preço.
É muito importante ressaltar que nossos resultados não significam que as UCs não cumprem seu papel, apenas que sua eficiência poderia ser ainda maior. Existem estudos na Amazônia e no Cerrado que demonstram que as UCs foram e continuam sendo fundamentais para evitar o desmatamento, além da manutenção vários outros serviços ambientais por elas fornecidos. O que os nossos resultados de vieses indicam é que o impacto das UCs em reduzir o desmatamento poderia ser maior na Amazônia e ainda maior nos outros biomas, por exemplo. Novamente, temos que encher o copo, não jogar a água fora!
Ainda assim, sugerimos fortemente que porcentagens de área sob proteção não devem ser a principal medida de sucesso em conservação, pois há o risco de concentrar ações de conservação para áreas de menor importância biológica e menor ameaça. Para promover ações efetivas de conservação, portanto, devemos utilizar estratégias baseadas em evidências, fundamentadas em critérios ecológicos apropriados e objetivos explícitos que nos permitem medir os prováveis impactos positivos da conservação e, assim, obter o melhor retorno para os investimentos feitos.
A política ambiental no Brasil é instável e temos observado cortes significativos no Ministério do Meio Ambiente e no Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações. Entretanto, para alcançar uma rede de UCs mais eficiente, o Brasil necessitará de quantidade suficiente de recursos humanos e financeiros para delinear ações de conservação explícitas e que garantam sua devida implementação e gestão. A implementação bem-sucedida de UCs e demais políticas ambientais também necessita de engajamento público. Assim, comunidades locais devem sempre ser incluídas tanto no delineamento quanto no planejamento de gestão de novas UCs. Só assim conseguiremos transbordar esse copo.
The residual nature of protected areas in Brazil.
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O Cerrado ilustra bem essa questão. Praticamente todas as UCs estão em serras, áreas alagadas, ou regiões áridas. No Cerrado de baixada mesmo, que é igualmente bom para a soja e para a biodiversidade, não tem quase nenhuma, tirando algumas RPPNs. Alias, acho que em área plana que não é tabuleiro em topo de serra não tem nenhuma.