Eu era diretora da Divisão de Parques Nacionais e Reservas Equivalentes do então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que antecedeu o IBAMA, quando Gary Wetterberg chegou ao Brasil em 1974, através de um projeto da FAO, para trabalhar conosco no planejamento de um sistema de unidades de conservação, em especial na Amazônia.
Gary era engenheiro florestal e havia se especializado em parques nacionais e outras áreas protegidas. Falava um excelente espanhol e já tentava um português de gringos. Era fluente em espanhol porque, entre suas inúmeras especializações, antes de concluir seu PhD na Universidade de Washington, trabalhara para o Peace Corp no Chile e percorrera grande parte da América Latina. O porquê ele escolhera vir para esse trabalho no Brasil não restava dúvidas: era vidrado na Amazônia.
À época eu já tinha sérias restrições a estrangeiros na nossa Amazônia. Mas o aceitamos de bom grado, pois suas qualificações eram excepcionais e porque realmente necessitávamos de apoio para o imenso trabalho de propor áreas preservadas ou unidades de conservação para a região. Por que? Porque no IBDF não havia quase ninguém para gerenciar, dirigir, ou planejar áreas naturais protegidas.
Que sorte a nossa!!!! Nós nada sabíamos dele a não ser o que estava escrito no seu extenso curriculum vitae proporcionado pela FAO. Mas o Gary era muito mais que um curriculum vitae. Era um homem honrado, religioso, grande técnico e cientista, bom amigo e grande companheiro. Enfim, um ser muito especial. Logo soube que ele foi indicado a FAO para essa sua missão no Brasil por outro grande amigo pessoal e do Brasil: Kenton Miller.
Nosso primeiro encontro teve um incidente embaraçoso. Estando ele na minha frente fui alcançar o telefone e ele, na ânsia de me ajudar, sem querer e afoito colocou sua mão onde estava a minha. Não gostei e fiquei um tanto preocupada. Mas não levou muito tempo para descobrir que isso foi apenas um acidente e sermos amigos do fundo da alma, até eu chegar a amadrinhar sua filha que, ademais, carrega meu nome: Tammy Tayrona Tereza. Tayrona é o nome de um parque nacional colombiano. Todos os filhos de Gary têm nome de um parque nacional. A irmã de Tammy se chama Cristi-Cara, em homenagem à Reserva Biológica Caracara, do Pantanal. Ele era obcecado pelas áreas naturais protegidas, às quais dedicou toda a sua vida.
Todo o esforço dele no Brasil foi concentrado no estabelecimento dos parques nacionais da Amazônia. Isso justamente quando eram construídas as principais vias de acesso, as grandes estradas e toda uma infraestrutura para se propiciar o desenvolvimento da região. Sorte também foi a nossa, pois já no nosso caso éramos os responsáveis legais para implementar o sistema brasileiro de unidades de conservação. Na ocasião o Brasil possuía apenas um Parque Nacional na Amazônia às margens do rio Tapajós, o Parque Nacional da Amazônia, que fora criado em 1974.
Como propor outros na imensa Amazônia? Gary deu as respostas consultando os trabalhos de grandes cientistas. Em folhas transparentes ele nos mostrou o óbvio: que as áreas indicadas por Keith Brown, Paulo Vanzolini, Jürgen Haffer e Ghillean Prance como refúgios do Pleistoceno ou centros endêmicos respetivamente para insetos, répteis e aves ou plantas, eram coincidentes em parte de suas áreas. Além do mais, já havia também indicações do Projeto Rondon para parques nacionais ou reservas que era necessário definir melhor. O documento das indicações sugeridas por Wetterberg foi publicado sob o nome de “Uma análise de prioridades de unidades de conservação para a Amazônia” e tem quatro autores: Jose Manoel Carvalho de Vasconcelos, Gary Wetterberg, Celso Soares de Castro e eu mesma.
Penso eu que para mim e para outros técnicos foi como se descobrir a pólvora e para estas regiões indicadas no documento acima mencionado, foi que se planejou a visita de equipes multidisciplinares para que fizessem as delimitações em campo.
Então já as autoridades constituídas nos permitiram, através de um acordo com a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN) contratar uma excelente equipe de técnicos, graças ao apoio de Paulo Berutti e Celso Soares de Castro, presidente e diretor do IBDF, respectivamente. Muitos parques nacionais e reservas biológicas foram então propostos e estabelecidos como o caso dos parques nacionais Pico da Neblina, Cabo Orange, Jaú, Monte Roraima, Pacaás Novos, Serra do Divisor e as reservas biológicas do Rio Trombetas e do Lago Piratuba.
Esse pulo foi gigantesco. Se logrou em grande medida graças ao modesto e renitente Gary Wetterberg. Gary também teve muito que ver com a implantação do Parque Nacional do Araguaia e com a elaboração dos primeiros planos de manejo de várias unidades de conservação e da preparação de seus orçamentos e programas enquanto esteve no Brasil.
Me lembro bem que sua primeira pergunta para mim quando nos conhecemos foi: Posso ver o planejamento do Departamento para os próximos quatro anos? Eu não podia acreditar. Nós, como bons brasileiros, não tínhamos nem o planejamento para um ano, que dirá para quatro. Depois que ele começou a trabalhar conosco nos convertemos em craques em planejamento futuro na área de conservação da natureza.
Por que estou escrevendo esta coluna? Porque o icônico Gary morreu dia 2 de dezembro de 2020 e porque quero registrar, como brasileira, o meu muito obrigada por tudo que ele fez para o Brasil e para a Amazônia Brasileira.
Creio que outras pessoas também vão publicar sobre Gary e seu legado com maior rigor e justiça. O que agora faço é só para registrar a perda de um grande amigo, que tanto fez para nosso país e para uma equipe que conseguiu que o país chegasse a estabelecer, durante sua administração, mais de oito milhões de hectares de áreas protegidas na Amazônia, bem como as primeiras áreas protegidas marinhas do Brasil.
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Fui procurando artigo sobre Peter Crawshaw e encontrei seu tributo lindo a Gary. Foi por causa de uma visita de James Dietz com ele para identificar lugar para PARNA Pantanal que James e eu acabamos tendo apoio do IBDF ( e conhecendo você) para pesquisar o Lobo Guara no PARNA Serra da Canastra em 1978! Muito obrigada a Gary e você pelo apoio que iniciou nosso trabalho de conservação no Brasil que continua até hoje!
Oi Silvana querida apareça aqui em casa
Maria Tereza
Bela homenagem. Essas pessoas precisam ser lembradas. Bj
Conheci o Gary de publicações, notadamente o “plano do sistema de unidades de conservação do Brasil”, I e Ii etapas (1979 e 1982), assim como foi com a própria Maria Tereza. Essas publicações se transformaram na minha base inicial para entender conservação da natureza e áreas protegidas. Depois, por intermédio de Maria Tereza, tive a oportunidade de trazê-lo como palestrante do I Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, e posteriormente tive o prazer de encontrá-lo em Washington DC, quando me recebeu muito bem. Uma grande figura humana e um grande profissional que deixou um legado para a conservação da Amazônia brasileira. Bela e merecida homenagem Maria Tereza.
Um amigo da nossa natureza! Que descanse em paz. Obrigada pela história.
Obrigada Malu. Seu elogio ao Gary vale muito.
Que Linda história! Registro importante e merecido! Obrigada Gary, por seu amor pelo Brasil!
Bela homenagem.
Emocionante, de fato. Que sorte a do Brasil ter pessoas como você e Gary, que lutaram para conservar nossas imensas maravilhas. Imensa gratidão a ele!
Muito bom. Deixou seu legado .