Reportagens

MMA omitiu impedimento de Rondônia para receber dinheiro do Fundo Clima

Pasta também não informou comitê gestor do fundo sobre prisão de presidente do consórcio intermunicipal que substituirá estado como executor do Lixão Zero

José Alberto Gonçalves Pereira ·
21 de dezembro de 2020 · 4 anos atrás
O ministro Ricardo Salles em visita a Espírito Santo do Pinhal (SP) para inaugurar duas unidades de triagem e reciclagem. Lixo é prioridade da gestão de Ricardo Salles no MMA. Foto: Ascom/MMA

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) omitiu do comitê gestor do Fundo Clima a informação sobre o impedimento fiscal do governo de Rondônia para receber recursos não reembolsáveis para o projeto Lixão Zero, que visa eliminar 11 lixões no estado. O custo total do projeto, R$ 12 milhões, será dividido meio a meio entre o Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e o Fundo Clima.

Sem a informação sobre as pendências fiscais do governo de Rondônia com a União, os representantes das quatro confederações empresariais no colegiado do Fundo Clima juntaram-se aos membros do governo, aprovando por dez votos a um a liberação de R$ 6,2 milhões (orçamento total do fundo em 2020) para o projeto. Apenas um integrante votou contra a proposta – a representante titular do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC) no colegiado, a advogada Flávia Frangetto, consultora em direito ambiental e clima.

No dia 15 de dezembro, o MMA aceitou o Consórcio Intermunicipal da Região Centro Leste do Estado de Rondônia (Cimcero) como substituto do governo estadual na execução do projeto Lixão Zero, que pretende beneficiar 15 cidades rondonienses.

Para ratificar a escolha, o MMA convocou reunião virtual extraordinária do comitê gestor do Fundo Clima para esta terça-feira, 22 de dezembro, às 10h30. O encontro terá duração de meia hora e apenas um ponto de pauta: aprovar a sugestão do governo de Rondônia para ser substituído como executor da proposta pelo Cimcero, formado por 44 cidades, incluindo quatro que tiveram seus prefeitos presos na operação Reciclagem, deflagrada em 25 de setembro passado. Um deles é a prefeita de São Francisco do Guaporé, Gislaine Clemente (MDB), conhecida como Lebrinha, que estava no segundo mandato como presidente do Cimcero quando foi presa.

O MMA também omitiu a informação sobre a presidente do Cimcero dos membros do colegiado do Fundo Clima. A operação Reciclagem foi realizada conjuntamente entre Ministério Público do estado (MP-RO) e a Polícia Federal (PF). Durante dez meses, foi investigado um esquema em que os prefeitos de Ji-Paraná, Rolim de Moura, Cacoal e São Francisco do Guaporé foram filmados recebendo grande volume de dinheiro ilícito de um dos principais empresários do setor de resíduos sólidos no estado. Um dos quatro prefeitos presos, Luiz Ademir Schock (PSDB), prefeito de Rolim de Moura, foi o segundo vice-presidente na diretoria do Cimcero no mandato 2017-2018, também liderado por Lebrinha.

As gravações foram previamente combinadas entre a PF e o empresário, que se tornou delator do esquema. Segundo o MP-RO, os prefeitos cobravam do empresário o pagamento de propina para liberar o acerto de dívidas referentes ao serviço de coleta e destinação do lixo. Com a prisão de Lebrinha, Luiz Brito (MDB), prefeito de Parecis, foi escolhido como presidente do consórcio. A sentença judicial que autorizou as prisões foi obtida pelo jornal em tempo real Rondônia Agora e pode ser consultada aqui. O desembargador Roosevelt Queiroz Costa, do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO), concedeu em 25 de novembro prisão domiciliar aos quatro prefeitos.

Revelações

Em reunião virtual promovida na última sexta-feira pelo Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC), Rafael Torino, diretor do departamento de fundos de meio ambiente (DFMA/MMA), revelou detalhes sobre a troca do executor do projeto que eram desconhecidos pelo FBMC e os representantes no colegiado das Confederações Nacionais do Comércio (CNC) e do Transporte (CNT). O esclarecimento literal de Torino foi o seguinte:

“Queria só fazer um adendo para não parecer que a gente se aventurou em algo que não foi pensado. Nós já sabíamos que o estado de Rondônia estava com problema no CAUC. Já havíamos enviado para eles um ofício em setembro informando que essa situação seria um impeditivo. Porém, o estado já obteve uma liminar no Supremo Tribunal Federal no ano retrasado, se não estou enganado, que lhe permitiu assinar convênios com a União. Eles insistiram que poderiam repetir essa fórmula, que iriam entrar de novo com essa ação e que o projeto não seria comprometido. Então, demos a eles uma oportunidade de poder seguir esse prazo até concluirmos que isso não seria possível. Mas, em tempo hábil, estamos trazendo uma alternativa.”

Os membros do MMA no colegiado do Fundo Clima não informaram os demais integrantes do comitê sobre a situação impeditiva de Rondônia para receber os recursos do mecanismo. Pelo menos não há nenhuma menção a esta situação na ata da reunião de 22 de outubro. Também não houve análise das pendências fiscais do estado com a União antes da reunião do conselho deliberativo do FNMA ocorrida em 15 de julho passado, quando foi aprovada a liberação da primeira metade do valor total do projeto,  R$ 6,2 milhões.

Aliás, o plano original de alocação de recursos para o projeto de Rondônia não previa o repasse de dinheiro do Fundo Clima, conforme atesta a ata do encontro, obtida pelo ((o))eco por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Veja relato sobre essa reunião no box.

Outro procedimento suspeito foi a substituição do proponente do projeto sem que tivesse havido análise da capacidade técnica e econômica do Cimcero para executá-lo, nem anuência dos colegiados do FNMC e do Fundo Clima. Nem foi incluída na Plataforma +Brasil uma nota de esclarecimento sobre a relação entre o Cimcero e a operação Reciclagem do MP-RO e da PF. Para tentar tranquilizar os participantes da reunião do FBMC, Torino contou que o consórcio não possui débitos inscritos na dívida ativa da União nem no Cadin (cadastro de débitos não quitados com a administração pública federal).

Como ocorreu a troca do proponente?

A operação de substituição do proponente do projeto começou na noite de 9 de dezembro passado, pouco mais de duas horas após a publicação de reportagem por ((o))eco a respeito do uso do orçamento integral do Fundo Clima em 2020 em um único projeto – o Lixão Zero do governo de Rondônia.

Uma carta assinada pelo secretário estadual do Desenvolvimento Ambiental, Marcílio Leite Lopes, foi protocolada na Plataforma +Brasil às 22h02 de 9 de dezembro sugerindo a André França, secretário de Qualidade Ambiental do MMA, trocar o governo rondoniense pelo Cimcero como proponente do Lixão Zero. Ele alega na carta que as pendências fiscais de Rondônia no Cauc haviam dificultado o atendimento dos requisitos exigidos pela Caixa para iniciar os repasses dos recursos do FNMA e do Fundo Clima.

Novamente sem aval do colegiado do Fundo Clima, o MMA emitiu duas notas de empenho em 15 de dezembro já em nome do Cimcero, somando quase R$ 9 milhões, ou 70% do valor total do projeto. Mas apenas o primeiro desembolso, de R$ 400 mil, ocorrerá ainda este ano. Noventa e sete por cento dos desembolsos serão efetuados somente em 2021 e 2022.

No empenho, os recursos são separados no orçamento para pagar as despesas do projeto. Ao manter o orçamento integral do Fundo Clima em 2020 empenhado desde meados de agosto, inicialmente para o governo rondoniense e agora para o Cimcero, o MMA impediu que o dinheiro fosse aplicado em pelo menos sete projetos, conforme indicado na Lei Orçamentária Anual de 2020. Veja box com uma atualização sobre os procedimentos suspeitos do MMA no processo de análise e aprovação dos recursos do FNMA e do Fundo Clima para o projeto Lixão Zero de Rondônia.

Não se sabe se o conselho deliberativo do FNMA também foi convocado para uma reunião extraordinária para aprovar o Cimcero como novo proponente do projeto. O MMA não tem divulgado pauta e ata das reuniões do FNMA, mas a necessidade dessa deliberação é prevista no parecer do MMA que aprovou a substituição.

Mais enroscos na aprovação do projeto de Rondônia

A reportagem inicial sobre a aprovação do projeto Lixão Zero, de Rondônia, pelo comitê gestor do Fundo Clima havia identificado ao menos oito procedimentos suspeitos no processo de análise e aprovação da proposta pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Mais cinco procedimentos nebulosos foram descobertos por ((o))eco.

    • O plano original de alocação de recursos para o projeto de Rondônia não previa o repasse de dinheiro do Fundo Clima, conforme atesta a ata da reunião do FNMA realizada em 15 de julho, obtida por ((o))eco por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
    • O MMA tinha conhecimento das pendências fiscais de Rondônia que impediam o estado de receber recursos federais por meio de convênios, mas a informação foi omitida dos integrantes do comitê gestor do Fundo Clima na reunião de 22 de outubro, que aprovou a aplicação no projeto do orçamento total da linha não reembolsável do instrumento em 2020.
    • Duas notas de empenho foram emitidas em 15 de dezembro pelo MMA, assegurando a destinação de 70% do valor total do projeto para o consórcio Cimcero, sem autorização dos colegiados do FNMA e do comitê gestor do Fundo Clima. Como o plano de trabalho do projeto permanece quase o mesmo, 97% dos desembolsos serão efetuados somente em 2021 e 2022. O orçamento integral do Fundo Clima para 2020 foi incluído em uma das notas de empenho emitidas. Ou seja, o orçamento ficou reservado para o Cimcero, não podendo ser utilizado em outros projetos.
    • O proponente do projeto foi substituído pelo Cimcero sem que houvesse análise de sua capacidade técnica e econômica para executá-lo e anuência dos colegiados do FNMA e do Fundo Clima.
    • Parecer do MMA favorável à troca do proponente comunica que os colegiados do FNMC e do Fundo Clima deveriam ratificar a substituição. A reportagem ficou sabendo por vias informais da reunião do comitê gestor do Fundo Clima, agendada para esta terça-feira, 22 de dezembro, às 10h30. Não há, contudo, informação no portal do MMA sobre a provável reunião extraordinária do conselho deliberativo do FNMA.

Malabarismos legais

Para Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima (OC), a escolha do projeto Lixão Zero do governo de Rondônia é, no mínimo, bastante confusa e pouco transparente, com evidências claras de que a decisão política está prevalecendo sobre a técnica. “Não houve edital para a seleção de projetos, nem ficam expressas as contribuições do projeto para mitigação de emissões de gases de efeito estufa”, assinala Suely.

Ela também critica a maneira como o governo de Rondônia foi substituído pelo consórcio de municípios como executor da proposta. “A troca ocorreu de última hora e já estão sendo tomadas providências para essa contratação, antes mesmo da reunião do comitê que ocorrerá nesta terça-feira, que, em tese, poderia rejeitar a mudança de proponente.”

A especialista do OC também questiona a ausência de referência ao FNMA, que também está aplicando dinheiro no projeto, na documentação do Fundo Clima. “Os órgãos de controle e o Ministério Público necessitam analisar com detalhes esses processos”, recomenda Suely, que responsabiliza o ministro Ricardo Salles pela série de procedimentos suspeitos na aprovação do projeto de Rondônia.

“O ministro do Meio Ambiente primeiro se desinteressou do Fundo Clima, aí descobriu que poderia usá-lo para seus interesses políticos, atropelando considerações técnicas e usando sua maioria num colegiado que ele controla. Agora realiza malabarismos legais para poder fazer mau uso de um recurso que deveria ser aplicado no combate à mudança do clima.”

Segundo o OC, Rondônia representa 0,8% das emissões de um setor que representa menos de 3% das emissões do país, o de resíduos sólidos. “Se quisesse de fato ajudar Rondônia a lutar contra a mudança do clima, o ministro investiria em programas de combate ao desmatamento, já que só por corte de árvores Rondônia emite 30% mais que todo o setor de resíduos sólidos no Brasil inteiro”, conclui a ex-presidente do Ibama.

Rafael Lopes, advogado da Rede, diz que os procedimentos suspeitos na aprovação do projeto de Rondônia evidenciam mais uma vez como o Fundo Clima tem sido tratado com descaso pelo MMA. “É um movimento que nos causa estranheza, tendo em vista que o MMA já sabia previamente do impedimento do estado de Rondônia. Mesmo assim, submeteu o projeto à aprovação pelo comitê gestor e, agora, em cima da hora, faz essa substituição por uma entidade que teve a presidente recentemente envolvida em uma grave denúncia.”

Lopes é um dos advogados que assinam a Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 708, ajuizada no início de junho no STF. A ação pede ao STF que obrigue o MMA a tomar providências para uma retomada efetiva do Fundo Clima, alinhada com a legislação climática.

Posicionamentos

A reportagem procurou ao longo da semana passada o governo de Rondônia, o Cimcero, o MMA e demais entidades integrantes do comitê gestor do Fundo Clima para que manifestassem posicionamento sobre os procedimentos suspeitos identificados no processo de análise e aprovação do projeto Lixão Zero, de Rondônia. No caso do Cimcero, a reportagem também o procurou para solicitar esclarecimentos a respeito da situação da prefeita que o presidia e da operação Reciclagem.

Houve retornos somente do FBMC e das Confederações Nacionais do Transporte (CNT) e do Comércio (CNC). Por meio de sua assessoria de imprensa, a CNC informou que “os fatos relatados não são de conhecimento dos integrantes do comitê [gestor do Fundo Clima], que se limitam a analisar projetos encaminhados”.

A CNT comunicou que sua área técnica está analisando os fatos relatados pela reportagem para emitir um posicionamento sobre o assunto em breve. O FBMC informou que ainda estava avaliando o posicionamento a ser levado para a reunião do comitê do Fundo Clima nesta terça-feira.

Plano original não previa uso do Fundo Clima

O uso do Fundo Clima para viabilizar o projeto Lixão Zero do governo de Rondônia não estava previsto no plano original do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Em reunião realizada no dia 15 de julho, o conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) aprovou o projeto, destinando-lhe R$ 9 milhões. Viriam do orçamento de 2020 do FNMA R$ 6,2 milhões e do orçamento de 2021, R$ 3 milhões.

Portanto, o conselho do FNMA aprovou um arranjo financeiro que cobriria  75% do valor total do projeto de Rondônia, sem qualquer alusão ao Fundo Clima. Estas informações constam na ata da reunião do FNMA, obtida por ((o))eco por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

A discussão do projeto foi rápida, tendo consumido provavelmente menos de meia hora, uma vez que o encontro durou somente uma hora para discutir todos os assuntos da pauta. Salles e demais membros do conselho do FNMA, alterado pelo ministro para conter apenas pessoas com cargos de confiança do Poder Executivo, pareciam mais preocupados com a montagem da operação financeira que viabilizaria o projeto de um aliado político do presidente Jair Bolsonaro, Marcos Rocha (PSL), coronel da PM e governador de Rondônia. A viabilidade ambiental, técnica e econômica do projeto não foi objeto da reunião, tampouco o foi a contribuição do projeto para o combate às mudanças climáticas.

O plano do ministro Salles esbarrou, porém, nas pendências fiscais  do governo de Rondônia com a União. A Caixa não repassa dinheiro a estados e municípios acima de 50 mil habitantes com débitos inscritos na dívida ativa da União e no Cadin.

 

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  • José Alberto Gonçalves Pereira

    Jornalista especializado em mudanças climáticas e economia verde. Voltou a escrever para ((o))eco em 2020, investigando o Fundo Clima.

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