O ar é irrespirável. O lixo se acumula, não se degrada. Animais estão à beira da extinção, como a jaguatirica, o lobo-guará, a onça-pintada, o mico-leão-dourado. No mar, manchas de óleo espalham-se pela costa. Nos rios do interior, a esquisita visão polar não resiste a uma análise mais de perto: não é neve, é espuma, é sabão! E isso tudo é Brasil, infelizmente.
Tem muita gente correndo. Desde profissionais especializados, que trabalham para organismos governamentais, até ONGs e associações internacionais; muitos estão incansavelmente trabalhando para brecar e até reverter – onde possível – o descaso com que o ser humano trata seu ambiente. Acontece que tais ações não têm tido resultados definitivos o bastante e nem na velocidade necessária – a predação, por parte do homem, continua.
Pensando com cuidado, talvez seja necessária também outra forma de olhar a questão. Ações não apenas para preservar, mas também uma atenção e atuação diretas sobre o predador, sobre o ser humano. E isso lá no começo, buscando “torcer o pepino” desde cedo.
Não se trata de educação ambiental para crianças. A atuação é ainda anterior: a proposta é o nascimento ecológico. E a idéia não é uma grande novidade, embora sua aplicação seja uma luta tão renhida quanto a despoluição de nossos rios. O assunto aqui é o parto, o nascimento, respeitado em sua forma mais natural possível.
A proposta não é desprezar a utilização da tecnologia e dos avanços da medicina. Mas essa tecnologia toda precisa ser utilizada de forma sensata: somente quando necessária. A tecnologia usada abusivamente presta desserviço ao homem, gasta recursos e causa impacto ambiental desnecessário.
A Organização Mundial de Saúde considera aceitável que de 10% a 15% dos partos sejam cesáreas, em razão das eventuais complicações que podem surgir durante a gravidez.1 O Brasil tem a taxa escandalosa de 80%!
Esse índice tão alto não diz respeito às mulheres e a sua capacidade de parir. Afinal, os quadris das mulheres encolheram? As cabeças dos bebês cresceram assustadoramente? O que aconteceu com a capacidade da fêmea de colocar seu filho no mundo? Há quem ameace a mulher que deseja um parto vaginal com a “explosão” de seus genitais, como se o bebê fosse um terrorista homem-bomba, como se parir pela via natural fosse condenar-se à mutilação e ao fim de uma vida sexual normal… Não é nada disso.
As razões desse excessivo uso da cirurgia de cesariana têm a ver com o pouco aprofundamento a respeito do parto. Da mesma maneira que se joga um saco plástico na rua, sem se procurar saber das consequências desse ato para a cidade e para o ambiente em sentido amplo, a gestante pode optar por uma cesárea porque “não sentirá dor” (só antes do parto, porque a recuperação é bem dolorosa), porque “é mais prático” ou até porque “o bebê passou do tempo” (uma das muitas indicações discutíveis para a cesariana). A gestante não sabe qual parto seria o verdadeiramente indicado para seu caso. A gestante nem sabe que poderia informar-se melhor a respeito.
O excesso de cesáreas também está relacionado à tendência intervencionista, que permeia o preparo técnico dos médicos obstetras na atualidade. É a ânsia pelo “fazer”, não se aguenta esperar o curso da natureza. A mesma pressa que pode levar uma mulher a marcar sua cesárea já contaminou a classe médica, que pouca disponibilidade tem para esperar a evolução satisfatória de um trabalho de parto para um parto natural. Além disso, a melhor remuneração da cesariana, que acontecia até algum tempo atrás, também contribuiu para a preferência dos obstetras pelo procedimento.
A percepção já é antiga: em 14 de outubro de 1989, José Aristodemo Pinotti publicou artigo, no jornal O Estado de São Paulo, com o título “Abuso Criminoso da Cesariana”, onde argumentava que “(…) criou-se um certo viés cultural no qual a “moda” era parir pela barriga (e também não dar de mamar no seio). Esse modismo teve várias causas, entre as quais a “conveniência” da paciente (e particularmente do médico) de parto com hora marcada. Caso contrário, o atendimento médico se faz necessário no momento em que o parto começa (e nunca se sabe quando), e dura de seis a dez horas. A cesariana por outro lado, pode ser programada, feita em uma hora, e tem rendimento econômico freqüentemente maior para o hospital e o médico. (…)” (fonte)
Cesarianas realizadas sem indicação correta são a transformação de um evento natural em ato cirúrgico. Além de não trazerem benefícios, nem para o recém-nascido nem para a mãe, envolvem riscos adicionais significativos para ambos. A maioria das mulheres tem condições físicas e emocionais para um parto natural, sem intervenções. Nascer é um ato fisiológico e ecológico, não precisa estar necessariamente marcado pela medicalização e utilização de aparelhos de ultrassom e cardiotocografia, pela anestesia, uso de indução química de contrações uterinas, nada disso.
O bebê que é acolhido no nascimento com respeito por seu ritmo biológico, recebe, desde cedo, a noção ecológica do respeito à natureza. Uma hipótese bastante considerada é que é o hipotálamo do bebê, quando este está pronto para nascer, que libera substâncias no organismo da mãe, dando início ao trabalho de parto. O ser humano, como a natureza toda, tem seu momento, tem seu tempo e isso é ecologia.
O obstetra francês, Michel Odent, figura fundamental na defesa do parto humanizado, refere-se ao “homem ecológico”, como criatura advinda do profundo respeito à natureza como um todo. No livro “Gênese do Homem Ecológico – Mudar a vida, mudar o nascimento, o instinto reencontrado” (Tao Editora, São Paulo, 1992), ele diz:
“Os dados da ciência são suficientes para afirmar que nosso mundo está acabado, que os recursos terrestres são findáveis, que a poluição do ar, da água e da terra não deverão ultrapassar certos limites e que um crescimento demográfico excepcional está proibido.” (p.43)
Ele fala da “revolução ecológica” e diz que surgirá uma “solidariedade entre as espécies vivas” (p. 44) e que o “homem ecológico” precisa surgir de uma nova forma de nascer, mais ligada ao nosso aspecto natural. Essa nova forma de nascer, quando possível e em uma mulher saudável, estará desvinculada do modelo intervencionista, que é o que vigora no Brasil. O parto natural, humanizado, enraizado no poder do corpo feminino de dar à luz, é ecologia e se coaduna com os objetivos de quem defende a preservação da natureza.
Diante das evidências científicas de que a mulher, em geral, está pronta e apta a dar à luz de forma natural, sem necessidade de intervenções e sequer de internação hospitalar2, algumas iniciativas isoladas surgiram nos últimos anos, como o Projeto de Lei nº 2.354, de 2003, da deputada Janete Capiberibe, que reconhece e regulariza a profissão de parteira tradicional. A idéia é contemplar as mulheres que atuam em locais distantes dos grandes centros e de difícil acesso, permitindo até que essas parteiras recebessem pagamento pelo SUS, por seu trabalho.
O interessante é que as parteiras tradicionais costumam ter quase que somente histórias de sucesso para contar:
“A presidente da Associação das Parteiras de Jaboatão dos Guararapes, Maria dos Prazeres, receberá o prêmio, Diploma Mulher Cidadã Bertha Lutz, do Senado, pelo trabalho realizado à frente da entidade e pela atuação como parteira. São mais de 50.000 partos sem nenhum óbito (grifo nosso)”. (Fontel)
“Estimam-se 60.000 parteiras em atividade no país. Elas são responsáveis por 20% dos partos na periferia dos centros urbanos, 40% no interior e 70% nas regiões Norte e Nordeste.” (Fonte)
“No Amapá, pontinha do Brasil, mulheres sem diploma, nem alfabetização, têm garantido a queda no número de cesarianas e nas taxas de mortalidade materna e infantil. São as parteiras, que ajudam mulheres que vivem à beira dos rios e nas florestas, a dar à luz a brasileiros e brasileiras sem plano de saúde ou INSS. (…) As parteiras existem desde sempre, mas só há sete anos são reconhecidas.” (fonte)
‘ “O índice de mortalidade materno-infantil onde atuam é baixíssimo”, diz Suely Carvalho, uma das coordenadoras da ONG [C.A.I.S. do Parto]. Neste ano, o Estado do Amapá foi escolhido para o encontro justamente por seus índices surpreendentes. Desde 1996, o governo investe em cursos de capacitação e na distribuição de bolsas-parteiras – um kit com material de cuidados básicos. A revalorização do parto natural no Hospital da Mulher Mãe Luzia, em Macapá, resultou num índice médio anual de 12,48% de cesarianas, abaixo dos 15% indicados como aceitável pela Organização Mundial de Saúde.‘ (fonte)
Entretanto, o projeto de lei pioneiro foi arquivado a pedido da autora, tendo recebido voto contrário (do deputado Jorge Alberto, ora inativo), que afirmava que a atenção ao parto deve acontecer por médico, para buscar a redução da mortalidade neonatal…
Existe, desde 2000, o programa “Trabalhando com Parteiras Tradicionais”, em que o Ministério da Saúde capacita as parteiras “leigas” para o trabalho onde falta atendimento hospitalar. Entretanto, a tendência dominante é o entendimento de que o parto tem de ser medicalizado, hospitalar e tecnológico, sem levar em conta o impacto ambiental desnecessário desse atendimento – por exemplo, em locais como o Pantanal Matogrossense3 – e o custo da paciente (e do bebê) ao erário público, que também poderia ser economizado.
A “revolução ecológica”, como propõe o próprio Odent, não significa o combate frontal àqueles e àquilo que destrói o meio-ambiente. A revolução ecológica é a proposta de mudar a vida, mudar o ser humano, através da mudança do nascimento. Do nascimento ecológico, surge o homem ecológico, que vê o mundo como um ambiente a preservar e busca reduzir o impacto de sua existência, porque respeita a natureza e a vida.
1 – Antonio Horacio Toro Ocampo, representante no Brasil da Opas (Organização Panamericana de Saúde), escritório regional da OMS (Organização Mundial da Saúde), (fonte)
2 – Marie Hatem, Jane Sandall, Declan Devane, Hora Soltani, Simon Gates “ Midwife-led versus other models of care for childbearing women”, in The Cochrane Library, http://www.mrw.interscience.wiley.com/cochrane/clsysrev/articles/CD004667/frame.html)
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