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O Boqueirão da Onça

Foi aqui que fotografamos uma de nossas primeiras onças pintadas na região, por meio de armadilhas fotográficas. Tentamos capturá-la, no início de 2008, mas parece que ela não está muito interessada nos colares que temos para colocar Uma paisagem difícil de descrever de tão bonita. No meio da Caatinga, em conjunto com as comunidades, um novo parque nacional é planejado para abrigar as pintadas.

Ronaldo Gonçalves Morato ·
3 de março de 2010 · 15 anos atrás
A paisagem do futuro parque do Boqueirão da Onça. Foto: Claudia Bueno de Campos.

Ir de Sobradinho para Sento Sé, na Bahia, é uma tarefa difícil. A estrada, que um dia foi asfaltada, está em péssimas condições e uma viagem que duraria cerca de 1h pode levar um dia todo, dependendo das condições climáticas. Mas tudo tem suas compensações. No meio do caminho tem um povoado chamado Piçarrão, de gente muito acolhedora e amigável. Sem contar que no barzinho em frente ao posto de gasolina tem um pastelzinho que compensa todo o sofrimento da estrada. Sempre que aportamos por lá o pessoal já se ‘achega’ e pergunta: “- E as onças?”. Nossos trajes e o veículo identificado nos delatam, sem contar que a bióloga Cláudia Campos, coordenadora de campo do projeto, já é muito conhecida por lá e é quase uma “catingueira”.

O que fazemos aqui? Buscamos identificar o “habitat preferencial” da onça pintada nesta região, uma espécie apelidada também de “detetive da paisagem”. Estamos nas imediações do futuro Parque Nacional do Boqueirão da Onça, no coração do semi-árido do Brasil que é dominado por maciços e serras, no centro e norte e por planícies pluviais, ao sul. Desde o início deste século se estuda a criação de uma unidade de conservação na área, considerando-se a beleza cênica, importância de sítios arqueológicos e espeleológicos e, ainda, a exuberante biodiversidade.

Trata-se de uma área que deve ser a maior unidade de conservação fora do bioma Amazônico, com cerca de 800.000ha. Iniciamos nossos trabalhos visitando várias comunidades locais perguntando aos moradores sobre o tal “detetive”. As informações indicavam que a espécie foi muito caçada para o comércio de pele até meados da década de 70, além de ser ainda caçada por conta de conflitos com rebanhos domésticos.

“Mas o bicho ainda anda aqui.” Diz seu Joaquim. Um senhor com mais de 60 anos que a vida dura da Caatinga e a lida de campo no dia a dia não foram capazes de quebrar seu bom humor e a vontade de nos mostrar o que sabe sobre este ambiente árido. Muitas vezes nos alojamos em sua propriedade, que está nos limites do futuro Parque Nacional do Boqueirão da Onça, é uma área pé de serra que ao cair da noite traz um ar fresco que contrasta com o forte calor do dia.

Foi aqui que fotografamos uma de nossas primeiras onças pintadas na região, por meio de armadilhas fotográficas. Tentamos capturá-la, no início de 2008, mas parece que ela não está muito interessada nos colares que temos para colocar. Nada que nos faça desistir, apenas adiar. Retornando a estrada, rumo a Sento Sé, dirigimos sempre com uma serra escarpada a nossa esquerda, uma visão que poucos tiveram o privilégio de desfrutar e, que nos faz acreditar que muitos gostariam de um dia visitar esse lugar. Para muitos, viajar pelo semi-árido do Brasil, num passeio turístico, pode parecer estranho, pois a idéia que se tem da região é de pobreza, em todos os sentidos, incluindo de diversidade biológica. Não se pode negar que as dificuldades encontradas pelos moradores locais, principalmente pela escassez de água, sejam muitas, mas estamos diante de um povo forte e solidário, que não foge a luta e que nos recebe de braços abertos, uma lição de vida.

Seu Joaquim: “O bicho ainda anda aqui”. Foto: Claudia Bueno de Campos.

Voltando a nossa viagem, há um enorme engano quando nos referimos à Caatinga como um local pobre em biodiversidade. Uma simples caminhada pela manhã é regada de diferentes cantos de pássaros, são centenas de espécies. Isso sem contar a diversidade de répteis e anfíbios que podem ser encontrados. De mamíferos de médio e grande porte, nossa equipe identificou mais de 30 espécies, por meio das armadilhas fotográficas. Existem cerca de 12 fitofisionomias na Caatinga, ou seja, podemos nos deparar com diferentes paisagens num bioma que muitos acreditam não ter nada. E as pinturas rupestres então, estão em todo lugar. Desde o Parque Nacional da Serra da Capivara-PI, passando pelo Parque Nacional da Serra das Confusões-PI e chegando por aqui no futuro Parque Nacional do Boqueirão da Onça, um roteiro completo.

Quanto à beleza cênica, hum, essa é uma história a parte. Infelizmente não tenho a menor condição de descrever, para isso recomendo que cada um de vocês venha até esse lugar e depois tentem expressar em palavras o que viram.

No começo de nossas andanças por esta região, em 2005, quando iniciamos o projeto Onças da Caatinga, os moradores faziam “vista grossa” e logo perguntavam sobre o Parque do Boqueirão. O maior problema é que todos achavam que suas propriedades estavam inseridas na área do futuro parque. Muitas conversas regadas a café e bolo foram necessárias para mostrar em detalhes como era o formato do parque. Além disso, mostrar vantagens e debater possíveis desvantagens de se ter uma unidade de conservação na região.

Onça fêmea fotografada em 2009 . Foto: Claudia Bueno de Campos.

Adicionalmente, alertávamos os moradores que nada seria feito sem que os mesmos fossem consultados, ou seja, todos os trâmites legais seriam seguidos e, somente após estas etapas é que poderia ser definido o formato do futuro Parque Nacional. Após as audiências públicas, uma equipe formada por técnicos do Ministério do Meio Ambiente e Instituto Chico Mendes voltou à região para estudar novamente o formato do Parque, buscando atender as demandas das comunidades locais, sejam elas culturais, sociais, econômicas ou combinações delas. Isso certamente irá preservar a integridade de todos os povoados da região. Obviamente, esses fatores serão analisados em conjunto com as áreas de importância biológica assim como de áreas relevantes para a preservação de nosso patrimônio arqueológico e espeleológico (cavernas).

Este formato não foi definido ainda, mas deve reduzir o tamanho da área inicialmente proposta ou até mesmo modificar o sistema de unidades de conservação a serem implantadas na região. Ruim!?! Acreditamos que não, afinal um dos princípios que devemos prezar é o da melhor convivência da população local com a Unidade de Conservação e, abrir mão de um pouco de área pode refletir bem futuramente. Adicionalmente, nossos estudos com a onça pintada podem indicar as melhores áreas para conservação na região, lembrando que a espécie está sendo utilizada como um “detetive da paisagem”.

Constituir uma unidade de conservação não é tarefa fácil e tampouco deve ser. Aspectos sociais e econômicos devem ser sempre levados em consideração. Aspectos biológicos, históricos e de beleza cênica são instrumentos de motivação para a criação de uma UC, mas o conhecimento adquirido sobre estes devem compor as bases técnicas que auxiliem no processo de criação.

 

 

  • Ronaldo Gonçalves Morato

    Chefe do Centro Nacional de Pesquisas e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.

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