Análises

O efeito do equinócio sobre o canto dos sabiás

A data do ano em que dia e noite tem a mesma duração também aciona uma cadeia de acontecimentos que culmina com a reprodução do sabiá

Marcos Rodrigues ·
1 de outubro de 2013 · 10 anos atrás
Sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris). Foto: CG Machado.

Equinócio é o nome dado à data do ano quando o dia e a noite têm o mesmo número de horas. Tecnicamente, o equinócio é mais do que isso. O equinócio é o momento em que o movimento de revolução da Terra em torno do Sol faz com que este último se encontre no zênite do equador. Assim os raios solares atingem perpendicularmente o eixo de rotação da Terra. O equinócio ocorre duas vezes durante o ano e, nesse momento, o período de exposição à luz do sol (fotoperíodo) é exatamente igual ao período da noite.

Há duas datas de equinócio ao ano; a primeira por volta do dia 20 de março, que dá início ao outono no hemisfério sul e a primavera no hemisfério norte; a segunda por volta do dia 21 de setembro, que dá início à primavera no hemisfério sul e ao outono no hemisfério norte.

 

Equinócio. Fonte: imagem retirada da
Equinócio. Fonte: imagem retirada da

 

Faz alguns dias que entramos na primavera. A partir desta data, todos os dias terão um minuto a mais de sol do que o dia anterior, e o mesmo minuto a menos de noite. Mais luz significa que as plantas terão mais tempo para tragá-la e traduzi-la em “verde novo, em folha, em graça, em vida, em força, em luz”. Com isso essas plantas crescem, nascem folhas novas. Isso significa comida pra os animais herbívoros, aqueles que comem plantas, sendo as folhas verdes e suculentas as preferidas. Dentre estes animais destacam-se os insetos, que a partir do equinócio saem de suas vidas letárgicas com o único propósito de comer e se reproduzir. São milhões, bilhões, trilhões, sabe-se lá quantos insetos herbívoros brotam neste momento. Mal sabemos ainda o número de espécies de insetos no mundo, quiçá o número de indivíduos de cada espécie!

Esses insetos, geralmente em formas larvais, as quais algumas chamamos de ‘lagartas’ ou ‘taturanas’, ou mesmo nas suas formas adultas, são devoradores de folhas, e engordam a uma velocidade estonteante, tornando-os pratos cheios e nutritivos aos animais insetívoros. Dentre eles, destacam-se as aves, que até então, antes do equinócio, vinham economizando o máximo de energia devido à escassez destes insetos. Assim, essas aves voavam menos, interagiam menos e cantavam menos.

 

Ipês amarelos anunciam a chegada do equinócio. Foto: A. Catani
Ipês amarelos anunciam a chegada do equinócio. Foto: A. Catani

 

O aumento da luminosidade depois do equinócio começa pouco a pouco a penetrar pelo crânio e pelos olhos das aves, atingindo células especiais do hipotálamo que desencadeiam a síntese de hormônios. Hormônios são substâncias químicas liberadas por uma célula, que afetam células em outras partes do organismo. Tais hormônios atuam na produção de óvulos dentro do ovário das fêmeas e no crescimento e produção de espermatozoides nos testículos dos machos. Especificamente nos machos, o hormônio principal que desencadeia tudo isso é a testosterona.

O equinócio e a testosterona

 

Sabiá do barranco ([i]Turdus leucomelas[/i]). Foto: CG Machado
Sabiá do barranco ([i]Turdus leucomelas[/i]). Foto: CG Machado

 

 

“O canto do sabiá, e de tantas outras aves, é apenas o efeito indireto da quantidade de luz no ambiente, consequência da posição do planeta em relação ao astro rei, o Sol.”

Mas a testosterona faz muito mais do que isso. É um hormônio que, de alguma maneira, altera drasticamente o comportamento do indivíduo. Aquele que era um sujeito pacato e solitário, cujo único objetivo em vida era se alimentar e fugir de predadores começa a ter o desejo de encontrar parceiros sexuais. Se você já passou por isso sabe do que estou falando: desejo, necessidade, vontade. Esse indivíduo pacato passa a ser um falador incessante. Repare como, a partir deste equinócio, os sabiás do seu jardim de repente começaram a emitir o melodioso e até melancólico canto desde o alvorecer até o anoitecer. Antes do equinócio, nada disso acontecia. As aves cantam veementemente durante o período da manhã porque é quando as fêmeas estão férteis. A fertilização do ovo deve ser alcançada nas primeiras horas da manhã para que o ovo, que leva 24 horas para ser formado, apresente seu maior peso e, portanto desconforto para fêmea, durante a madrugada, quando ela está repousando e escondida de eventuais predadores. As fêmeas então botam seus ovos no primeiro lume da manhã. A cantoria dos machos atinge então seu pico neste horário. Outro pico de cantoria acontece no anoitecer, quando os machos estão defendendo suas posições para a manhã seguinte.

O canto das aves tem duas funções inequívocas e suplementares: atrair parceiros sexuais e repelir competidores potenciais. Assim, quando o sabiá e a maioria das aves cantam, transmitem a mensagem de que estão disponíveis: sexualmente ativos. O sabiá também está dizendo que aquele território, cheio de recursos alimentares e locais para se construir um ninho é seu, e de mais ninguém. O problema é que os outros sabiás, outrora sujeitos tão pacatos como o primeiro, também estão sob o domínio da testosterona. Esse hormônio tem ainda o efeito de deixar o indivíduo violento. Embates aéreos entre vizinhos tornam-se comuns, e não é raro que ocorram mortes durante as disputas territoriais. Já presenciei casos de óbito entre sabiás e entre sanhaços que visitam meu jardim regularmente. Uma violência, diria o leigo. A natureza, diria o biólogo.

Já está demonstrado que estes embates ocorrem porque é da fêmea a palavra final. Ela é quem escolhe seu parceiro sexual. A escolha é feita levando-se em conta uma série de quesitos, como tamanho do repertório vocal do macho e até as condições da plumagem do macho.

O canto do sabiá, e de tantas outras aves, é apenas o efeito indireto da quantidade de luz no ambiente, consequência da posição do planeta em relação ao astro rei, o Sol. O equinócio da primavera é retratado classicamente, por exemplo, no filme ‘Bambi’ de Walt Disney, como o alvorecer do amor, das flores coloridas, das folhas verdes que brotam dos bordos desfolhados pelo longo, tenebroso e cruel inverno. Mas o equinócio da primavera pode ser visto como o cavaleiro que traz a testosterona, que gera a violência, e a necessidade do indivíduo de permanecer eternamente neste mundo através da reprodução, custe o que custar.

 

Sabiá-poca ([i]Turdus amaurochalinus[/i]). Foto: CG Machado
Sabiá-poca ([i]Turdus amaurochalinus[/i]). Foto: CG Machado

 

 

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  • Marcos Rodrigues

    Doutor em zoologia pela Universidade de Oxford (UK). Hoje, é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.

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