Quando se chega à península Itálica no final da primavera, início de verão, o que se percebe de imediato, além das cores pastéis levemente rosadas e do cheiro de ervas, as mais diversas, é a intensa movimentação dos andorinhões. Aqui essas aves são chamadas de rondone, e as andorinhas, rondine. Mesmo o leigo parece perceber a diferença destes dois tipos de aves, tão parecidas e tão diferentes. As andorinhas são Passeriformes aparentados às aves que chamamos de pássaros enquanto os andorinhões são Apodiformes, aparentados, por incrível que possa parecer aos nossos beija-flores. Digo ´nossos´ porque os beija-flores são exclusividade do continente americano.
Por essas terras itálicas, os andorinhões mais comuns são Apus apus. Aparecem em grande número no início da primavera, permanecendo até o início do tórrido verão. Apus apus é uma das espécies mais bem estudadas do ponto de vista reprodutivo. Tudo isso graças a um projeto de longa duração realizado em Oxford, coordenado hoje pelo professor Chris Perrins. Na ‘cidade dos pináculos de sonho’, torres de igrejas e de alguns colleges rasgam o céu cinzento da cidade, e soberanas fitam e controlam a vida que segue aos seus pés. Muitas dessas torres oferecem uma vista espetacular da cidade, e a moradia ideal para andorinhões. Alguns indivíduos de Apus apus nidificam na torre de estilo neogótico do museu de história natural, e todo o seu ciclo é acompanhado por inúmeros pesquisadores e uma parafernália tecnológica dentro de cada ninho.
Andorinhões “piemonteses”
Na Itália, observei-os em 2010 no norte do país, na região de Piemonte, próximo a Milão. Fiquei uma semana na casa do meu cunhado, que vive num pequeno vilarejo nas montanhas do pré-alpes. O vilarejo é cercado por florestas de árvores altas e sempre verdes e não abriga mais que duas mil pessoas. É a região das colinas do pré-alpes, que atingem até 700 metros acima do nível do mar, onde as florestas tomam o espaço das onipresentes pradarias e plantações nas planícies formadas pelo Rio Pó, que corta o norte da Itália de oeste a leste, desaguando no mar Adriático.
A floresta que cerca o vilarejo é onde crescem várias espécies de carvalhos (Quercus), castanheiras (Castanea sativa), tílias (Tilia) e o sub-bosque apinhado de grande variedade de Sorbus, rosáceas que produzem pequenos frutos vermelhos e cerejas selvagens (Prunus). Pega-se uma pequena estrada tortuosa em meio à floresta e eventuais casas e casarões isolados e após dois quilômetros chega-se a outro vilarejo, onde se concentram outras mil almas. E assim se vai. A região montanhosa dos pré-alpes é apinhada destes vilarejos, com ruelas estreitas e íngremes e casarões de janelas fechadas e fachadas neoclássicas com vasos cheios de flores de gerânios vermelhos e pequenos quintais com macieiras. Ao fundo de toda a paisagem veem-se os verdadeiros Alpes.
Na casa do meu cunhado, no andar superior de um antigo sobrado, onde se tem uma bela vista de toda a região, os andorinhões nidificam bem sobre os caibros que sustentam o telhado. Um filhote ainda muito jovem, sem penas e cego caíra no chão da varanda. Pude observá-lo de perto, aquele ser de forma um tanto quanto bizarra gritar desesperadamente por ajuda, mas nada pudemos fazer. Era a sua sentença de morte.
Quando filhotes são encontrados caídos dos seus ninhos é geralmente não uma fatalidade gravitacional, mas um desconforto parental, que podem tê-lo ejetado pelas mais diversas, misteriosas e muitas vezes ‘humanas’ razões. Por isso, não há como recolocá-los ao ninho. Serão ejetados ou abandonados novamente.
Grupos de 10 a 20 andorinhões passavam dando rasantes sobre os telhados, em velocidade altíssima e gritando. Passavam, voltavam para o alto e retornavam aterrorizando-nos mais uma vez. Toda manhã, bem cedo, entre 6 e 7 horas da manhã, lá estavam estes grupos, ora coesos, ora mais espaçados, dando seus rasantes e vocalizando um grito que se parece um apito de guarda mais fino, aquele de chefe de bateria de escola de samba. Depois das 8 horas, quase desaparecem e voltam logo antes do crepúsculo, sempre nos seus vários bandos de 10 a 20 indivíduos, talvez 30, dando rasantes sobre os telhados povoados de chaminés. Por estas bandas, a primavera ainda é fria, e algumas chaminés ainda fumegam.
Toscana e Sardenha
Logo depois, me desloquei à famosa região da Toscana, berço do renascimento e tudo aquilo que aprendemos na escola. Fiquei mais dez dias lá, numa pequena cidade de cerca de 20 mil habitantes, chamada San Giovanni Valdarno. Como o nome diz, o lugar é à beira do rio Arno, o mesmo que banha Florença e Pisa. Fiz viagens periódicas de trem, ora infectos e obsoletos, ora modernos e luxuosos, a Pisa, onde me encontrava com minha amiga Anna, pesquisadora da Universidade.
Em San Giovanni, mais uma vez tive a oportunidade de observar os intrépidos andorinhões e seus rasantes em altíssima velocidade. O que estariam fazendo?
Este ano vim direto para a Sardenha, esta grande ilha no meio do mediterrâneo, na casa de minha sogra, logo no início do verão. Mais precisamente alguns dias após o solstício. Dias muito longos e esperadamente quentes. Logo pela manhã pude observar mais andorinhões e seus mesmos voos rasantes e gritos histéricos em bandos de 10, 20, às vezes 30 ou mais indivíduos. Percebi que ao longo destes rasantes, três indivíduos aterrissaram numa parede sem reboco no quintal da casa. Entraram rapidamente em buracos existentes entre um bloco e outro de tijolos e de lá escutei os gritos de filhotes em ninhos. Três ninhos numa parede de aproximadamente 40 metros quadrados. No chão, na altura de cada cavidade a prova cabal da atividade reprodutiva: guano de andorinhão seco, preto, manchado pelo ácido úrico, típico das aves.
Mais uma vez tive a sorte de poder observar toda movimentação diária dos andorinhões da varanda da casa, que tem uma bela vista para todo o vilarejo de Arbus, que não possui mais do que 10 mil humanos residentes. O quintal da casa oferece vista para três vales diferentes e de lá pude estimar o número aproximado de andorinhões naquela pequena cidade. Também vi que os rasantes se concentram em torno de igrejas suas torres e seus pináculos, como havia percebido um ano antes em San Giovanni.
Comida que não se vê
São centenas, talvez até milhares em uma pequena cidade como Arbus, dando seus rasantes, nidificando e vivendo. O que eles comem? Como sobrevivem num ambiente tão árido quanto a Sardenha nestes verões onde os dias atingem temperaturas de 40 graus e parecem jamais terminar? E isso se repete em toda a península, pois aqui, o que não faltam são torres de igrejas e paredes antigas sem reboco e cheias de fendas. Mas há tanto inseto assim para todos estes indivíduos? Pensando nestas questões, cheguei a uma pergunta: quantos andorinhões existem na Itália?
Faço uso de um pequeno exercício matemático para responder a esta questão aparentemente insólita. Se uma pequena cidade de 10 mil habitantes pode abrigar cerca de 1000 andorinhões (estou sendo conservador aqui), pode-se chegar a sete milhões de andorinhões apenas na península itálica! Pode ser? Digamos que chutei um número muito grande para cada 10 mil habitantes. Dividimo-lo pela metade. Seriam então 3,5 milhões de andorinhões!! Número aparentemente absurdo para uma pergunta posterior: quantos insetos por dia come um andorinhão? Se considerarmos que uma ave precisa comer metade do seu peso por dia, e se um andorinhão pesa em média 45 gramas, cada indivíduo precisaria comer 22 gramas de insetos por dia. Pois bem, quanto pesa uma borboleta, ou um besouro, ou uma libélula e assim por diante? Alguém sabe? Minha conclusão é que existem milhões, talvez trilhões, destes insetos voando por todo o céu da península. Mas, pelo menos aos meus olhos, são invisíveis. Os insetos que vejo aqui em grande abundância são formigas. Há formigas por toda a parte. Desde as pedras nas montanhas secas até as dunas das praias bordadas pelo mar azul turquesa do mediterrâneo. É tudo que vejo. Certamente os insetos não são invisíveis aos olhos dos andorinhões.
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