Análises

Suçuaranas latinas invadem a terra de tio Sam

A estrutura genética das populações norte-americanas é consistente com elas sendo descendentes de pumas colonizadores vindos da América do Sul.

Fabio Olmos ·
23 de abril de 2014 · 11 anos atrás

Puma, fotografado no Zoológico de Belgrado. Foto:
Puma, fotografado no Zoológico de Belgrado. Foto:

A onça-parda, suçuarana, leão-baio, onça-vermelha ou puma Puma concolor (alguns entre muitos nomes) é o grande predador mais bem sucedido das Américas, encontrada desde a Patagônia austral (mas não em Tierra del Fuego) até o Yukon, no Canadá.

Em São Paulo existem pumas na Serra da Cantareira e na Serra do Mar, dentro do município de São Paulo, e no interior do estado são cada vez mais comuns os casos de gatos desta espécie que acabam no quintal de alguém, são atropelados ou triturados por uma colheitadeira de cana. Pumas são adaptáveis e parecem estar se mantendo em mosaicos de plantações, reflorestamentos e fragmentos de matas nativas, mas pagam o preço da convivência próxima com as pessoas.

Seria melhor, para eles e todos os outros bichos, se as rodovias brasileiras tivessem passagens para fauna decentemente projetadas ao invés das gambiarras que os engenheiros empurram e o DNIT e similares estaduais aceitam. Isso sem falar na recuperação das matas ciliares e em encostas e áreas de mananciais que aumentaria o habitat disponível. Isso ajudaria não só a fauna, mas também a termos mais água nas represas.

Ainda sabemos pouco da ecologia dessas onças roceiras e peri-urbanas. É de imaginar que presas nativas como capivaras, comuns onde quer que haja algum brejo, sejam uma das bases da dieta dos gatos, mas a importância de animais exóticos, como a cada vez mais comum lebre-européia e de cães e gatos domésticos ainda precisa ser estudada.

Pumas com um gosto por carne canina ou por carpaccio de gato são uma boa notícia para seus ecossistemas. Cães e gatos ferais, asselvajados, de rua ou alongados são um desastre ambiental que ninguém quer encarar por medo dos pseudo ecologistas que acham lindo que os totós e bichanos que eles não querem colocar no próprio quintal massacrem a fauna nativa (veja aqui, aqui, aqui e aqui) e ameaçam processar quem toma alguma providência.

Imigrantes

“Pumas são, hoje, encontrados exclusivamente no continente americano […]. É estranho que esses gatos apareçam do nada, sem ancestrais óbvios no registro fóssil local.”

Pumas são, hoje, encontrados exclusivamente no continente americano e ali os fósseis mais antigos datam de 400 a 300.000 anos atrás. É estranho que esses gatos apareçam do nada, sem ancestrais óbvios no registro fóssil local.

A possibilidade dos pumas serem imigrantes de outra região é fortalecida por estudos moleculares que indicam que pumas e guepardos (ou cheetahs) Acionyx jubatus, um gênero com um longo registro fóssil na Eurásia e África, compartilham um ancestral comum que viveu a mais de 8 milhões de anos. Os mesmos estudos mostram que o jaguarundi ou gato-mourisco ou gato-vermelho é um parente muito próximo do puma, daí seu nome científico Puma yagouaroundi.

Fósseis sugerem que pumas podem ter surgido na África, mas isso ainda precisa ser comprovado. Pisando em terreno mais firme, restos encontrados desde a Espanha e Inglaterra até a Mongólia mostraram que um autêntico Puma viveu nesta vasta região entre 2,4 e 0,8 milhões de anos atrás.

Puma pardoides era similar às suçuaranas atuais, especialmente na morfologia do crânio e porte (40-45 kg) e parece ter sido muito bem sucedido, vivendo em vários habitats. Sua aparente extinção na Europa, na transição entre o Pleistoceno Inicial e Médio ocorre ao mesmo tempo em que leopardos colonizam aquele continente (sim, existiram leopardos na Europa, da Espanha à Alemanha, Grécia e Ucrânia, mas isso é outra história), o que pode ser coincidência ou não.

Parece razoável supor que, junto com leões, mamutes, renas, humanos e tantos outros mamíferos, um puma ancestral estava entre os imigrantes que cruzaram da Ásia para a América e Ásia. A ponte sobre o atual Estreito de Bering (“Beringia“) foi exposta várias vezes quando o nível do mar baixou durante as glaciações dos últimos milhões de anos.

Os detalhes ainda precisam ser descobertos e mais fósseis ajudariam. É bem possível que a evolução de pumas, guepardos, jaguarundis e seus primos extintos, os “guepardos americanos” (pumas adaptados para a corrida) tenha ocorrido na Ásia, a colonização da América vindo depois e em diferentes momentos. De qualquer forma, os fósseis que temos e o DNA (incluindo o extraído de fósseis) dão boas pistas nessa história de detetive.

Diversidade latino-americana

“Os genes dos pumas atuais mostram que, ao contrário do esperado, existe maior diversidade genética na América do Sul e Central do que na América do Norte.”

Que não acaba aí. Os genes dos pumas atuais mostram que, ao contrário do esperado, existe maior diversidade genética na América do Sul e Central (onde 5 linhagens ou “subespécies” podem ser caracterizadas) do que na América do Norte, onde há uma única linhagem evolutiva.

Esse é o oposto do que seria de se esperar caso os pumas tivessem colonizado primeiro a América do Norte e dali se espalhado rumo ao sul acumulando mutações e diversidade genética ao longo do caminho.

É muito pouco provável que os pumas tenham colonizado a América do Sul antes da América do Norte, o que exigiria eventos incomuns como abduções alienígenas, portais espaço-temporais ou entrega especial por um bote saído da arca de Noé.

Na verdade, a entrega por um bote vindo da arca é mais fácil de descartar que a abdução alienígena, já que os criacionistas literais dizem que a Terra foi criada no ano 4004 AC e o dilúvio bíblico aconteceu em 2400 AC. Essas datas são recentes demais e não batem com o registro geológico, fóssil ou molecular (entre outras coisas), enquanto a possibilidade de intervenção de algum alien bagunçando a biogeografia terráquea não pode ser falseada (neste caso).

Como tio Ockham ensinou, invocar alienígenas é desnecessário, pois existe outra explicação mais simples e consistente com os dados.

Durante a transição entre o Pleistoceno (a “era do gelo”) e o Holoceno (o período geológico em que vivemos), há c. 11.700 anos, ocorreu uma extinção em massa ao longo de poucos milhares de anos e eliminou a maior parte dos grandes mamíferos do continente americano.

Essa extinção coincidiu com uma rápida mudança climática igual a tantas que aconteceram antes sem grandes consequências. O que havia de diferente dessa vez foi a presença de populações humanas fazendo o que fazemos melhor: explorar outras espécies até a extinção e alterar habitats (não vou me alongar aqui sobre esse assunto, já tratado antes, mas este ensaio vai no ponto).

Junto com mamutes, mastodontes, leões, tigres-dentes-de-sabre, dire wolves (aqueles de Game of Thrones), preguiças-gigantes, guepardos americanos, cavalos, saigas, ursos, etc, etc a combinação entre humanos e clima volátil também vitimou os pumas norte-americanos, que sofreram uma tremenda redução populacional e consequente perda de variabilidade genética. Ou mesmo extinção.

De fato, a estrutura genética das populações norte-americanas atuais é consistente com elas sendo descendentes de um pequeno número de colonizadores vindos da América Central e, na origem, da América do Sul.

É interessante pensar nos pumas estadunidenses como legítimos descendentes de pumas latinos que foram fazer a América.

Serra da Capivara

Puma na Serra da Capivara. Foto: Fábio Olmos
Puma na Serra da Capivara. Foto: Fábio Olmos
“Como todas as UCs federais, a Serra da Capivara sofre com o cíclico e irresponsável “contingenciamento de verba” que faz cessarem atividades fundamentais de manejo e proteção, mas curiosamente não afetam contratos de publicidade e outros agrados a amigos.”

Fiz esta foto no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, onde uma unidade de conservação modelo e nada menos que espetacular foi implantada contra toda a probabilidade graças à visão e generosa teimosia de minha amiga Niéde Guidon, que este mês completou 81 anos.

Vi a Serra da Capivara de antes, um parque brasileiro padrão, abandonado aos caçadores, posseiros, incêndios e, o pior, aos políticos. Apesar dessas pragas ainda existirem, o parque recebeu ótima estrutura de visitação, proteção e manejo. Que não só possibilitam apreciar o patrimônio arqueológico ímpar como também permitiram a recuperação de uma fauna quase extinta, incluindo as onças.
Não só isso, o parque mudou a realidade local, tornando um canto irrelevante e esquecido do Brasil em um pólo de turismo, ensino e pesquisa.

Infelizmente o Brasil tem um governo disfuncional que prima por torrar dinheiro do contribuinte e dá muito pouco em troca. Como todas as UCs federais, a Serra da Capivara sofre com o cíclico e irresponsável “contingenciamento de verba” que faz cessarem atividades fundamentais de manejo e proteção, mas curiosamente não afetam contratos de publicidade e outros agrados a amigos.

Como a megafauna extinta e pinturas rupestres destruídas ensinam, há estragos que não podem ser reparados e, da pré-história até hoje, já deu tempo para aprendermos a sermos menos irresponsáveis. Ainda bem que existem pessoas como Niéde Guidon para mostrar que podemos fazer escolhas melhores.

Obrigado, Niéde.

 

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  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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