Desculpem-me se insisto no tema, mas o comentário de um leitor à última postagem no blogue Palmilhando ficou na minha cabeça, intrigando-me durante dias. A princípio não quiz repondê-lo, mas o comentário não me largou, ficou ali me questionando, intrigando, fazendo-me perguntar seguidamente a mim mesmo: como é possível? Então finalmente aqui estou eu, novamente sentado a escrever sobre a forma equivocada em que o Brasil insiste em manejar seus parques nacionais.
A parte do comentário que me deixou intrigado, na verdade, é pequena. É só um verbo. O problema é, que ao ser conjugado na primeira pessoa por muitos de nossos tomadores de decisão na área da conservação da natureza, esse verbo tem se traduzido em um manejo feito à revelia do que diz o contrato social expresso tacitamente na Lei do SNUC.
A palavrinha, ou melhor, o verbo, é “acho”. O comentário inteiro é “Acho que a realização destes eventos dentro de Unidades de Conservação de proteção integral tem mesmo que ser vetada. Existem outras categorias que permitem a realização destas atividades (APAs por exemplo)”.
A lei manda
“Parques Nacionais não são propriedades privadas cuja função e uso podem ser decididos ao bel prazer de seus donos.”
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Como assim acho? Não há o que achar. Há o que cumprir. Parques Nacionais não são propriedades privadas cuja função e uso podem ser decididos ao bel prazer de seus donos. Parques Nacionais são terras públicas cuja gestão tem que ser feita de acordo com a legislação vigente que, afinal, em uma democracia, é o que expressa a vontade dos cidadãos.
E a legislação, diferente do que o leitor sugere em seu comentário, não estabelece apenas duas categorias de Unidades de Conservação, sendo uma delas de uso integral e outra de uso sustentável. A Lei do SNUC é mais complexa: divide o Sistema em 12 categorias. DOZE CATEGORIAS.
E como foi mesmo que surgiu o SNUC? Seus primórdios podem ser encontrados na Eco-92, no Rio de Janeiro. Naquele evento, o Governo brasileiro assinou a Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (CDB). Ao aderir a esse tratado Multi-lateral como Parte Contratante, o Brasil comprometeu-se a cumprir a diretriz internacional, emanada do Artigo 8 da Convenção sobre a Diversidade Biológica, de estabelecer um sistema nacional de áreas naturais protegidas, que aqui acabou denominado de “Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC)”.
Assim, tão logo terminou a ECO-92, todos os países signatários da Convenção sobre a Diversidade Biológica começaram as discussões que levaram ao estabelecimento dos seus respectivos SNUCs. Um SNUC, como o próprio nome diz, é um sistema que articula diversas categorias de Unidades de Conservação com objetivos de manejo diferentes entre si, de modo a que possam se complementar em torno da meta maior comum da conservação da natureza.
Embora a própria Convenção sobre a Diversidade Biológica, em seu Artigo 2, disponha que o termo “área protegida” é “uma área geograficamente definida, designada ou regulamentada e manejada para alcançar determinados objetivos de conservação“, ao redor do mundo os nomes e definições das diversas categorias de manejo variam de lugar para lugar. Nos 196 países signatários da Convenção existem muitas categorias de unidades de conservação cujos nomes desconhecemos no Brasil. Por exemplo, há os Parques Naturais em Portugal, as Reservas Arqueológicas em Belize, as Conservações no Quênia, as Preserves nos Estados Unidos, os Parques Recreativos no Zimbábue e os Biótopos na Guatemala, entre outros.
Essa grande salada de categorias acabou por dificultar diretrizes de manejo que pudessem ser aplicadas de forma uniforme ao redor do planeta. Para resolver o problema, a Convenção sobre a Diversidade Biológica, em sua 7ª Conferência das Partes (COP), realizada em Kuala Lumpur, na Malásia, em 2004, decidiu:
“reconhecer o valor de um único sistema internacional de classificação para áreas protegidas e o benefício de que (os países) provejam informação comparável entre os países e regiões. Assim, a CDB, avaliza os esforços em curso da Comissão Mundial de Áreas Protegidas da UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza) para refinar o sistema de categorias da própria UICN e encoraja os Estados Partes, outros Governos e organizações relevantes a designar categorias de manejo para suas áreas protegidas e, ao fazer relatórios, prover informações em que essas categorias sejam compatíveis com as categorias da UICN” |
Critérios internacionais e equivalências brasileiras
“Com efeito, para que um país participe do Programa Mundial de Áreas Protegidas é exigido que as suas se encaixem na definição de Unidades de Conservação adotada pela UICN”
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O conceito de categorias começou a ser usado internacionalmente em 1962, quando as Nações Unidas estabeleceram a primeira lista mundial de Parques Nacionais e Reservas equivalentes. Em 1975, por delegação da ONU, com o objetivo de catalogar todas as Unidades de Conservação do planeta em uma Base de Dados Mundial de Áreas Protegidas, inaugurada em 1981, e que hoje já conta com mais de duzentas mil Unidades de Conservação em seu banco de informações, a UICN começou a elaborar um sistema de categorias. Esse sistema ficou pronto em 1994 e foi revisado em 2004, resultando em seis categorias:
- Ia. Reserva Natural estritamente protegida / Ib. Área selvagem
- Parque Nacional
- Monumento Natural
- Área de manejo de espécies/habitat
- Paisagem protegida
- Área protegida com uso sustentável de recursos naturais.
Hoje, esse sistema de categorias desenvolvido pela UICN é usado pelas Nações Unidas e pela CDB, inclusive pelo Programa Mundial de Áreas Protegidas, de que o Brasil é Parte. Com efeito, para que um país participe do Programa Mundial de Áreas Protegidas é exigido que as suas se encaixem na definição de Unidades de Conservação adotada pela UICN. Além disso, em cumprimento à decisão tomada na 7ª COP da DCB, o Programa Mundial de Áreas Protegidas usa as categorias de manejo da UICN como padrão, de maneira a permitir fazer comparações entre países e assim poder tabular todas as unidades de conservação do mundo de acordo com seus objetivos de manejo.
Com esse espírito, em 2004, o IBAMA, então responsável pelas UCs federais, publicou o “Atlas de Conservação da Natureza Brasileira” (Ibama 2004; Cadastro Nacional de Unidades de Conservação/ MMA, março 2007; CNRPPN). No livro foi feita a equivalência entre as categorias de manejo do SNUC e aquelas estabelecidas pela UICN. Posteriormente, em 2007, o próprio Ministério do Meio Ambiente, através do seu Departamento de Áreas Protegidas, respaldou essa correspondência de categorias no Informe Nacional sobre Áreas protegidas no Brasil. Assim é que as informações passadas pelo Brasil ao Programa Mundial de Áreas Protegidas da ONU respeita a equivalência tal como publicada nesses dois compêndios.
Nesse sentido, vejamos o que as publicações dizem a respeito da categoria II da UICN e sua equivalência no SNUC:
Categoria II da UICN
Parque Nacional: área protegida manejada principalmente para proteção dos ecossistemas e recreação. Área natural, terrestre ou marinha, designada para (a) proteção da integridade ecológica de um ou mais ecossistemas para a geração presente ou futura; (b) eliminar a exploração ou ocupação em desacordo com os objetivos da área; (c) fornecer fundamento espiritual, científico, educacional e recreativo com oportunidades de visitação que devem ser ambiental e culturalmente compatíveis.
Equivalência segundo a lei do SNUC:
“Parque Nacional“
Estabelecida a equivalência, tal como definida pelo próprio Governo Brasileiro, vamos ver o que diz a UICN sobre o manejo da Categoria II, nas suas Guidelines for Applying Protected Area Management Categories, que também são utilizadas como referência pelo Programa Mundial de Áreas Protegidas da ONU.
Objetivo primário:
Proteger a biodiversidade natural junto com sua estrutura ecológica e processos ambientais, e promover educação e recreação (grifo meu).
Entre os seus outros seis objetivos que não têm prioridade uns sobre os outros, dois se referem ao uso público:
– Manejar a visitação para propósitos inspiracionais, educacionais, culturais e recreativos em um nível que não causará degradação biológica ou ecológica significativa nos recursos naturais;
– Contribuir para as economias locais por meio do turismo.
Ainda segundo a UICN, três características tornam a Categoria II (Parque Nacional), única e diferente das demais. Uma delas é:
A área deverá conter exemplos representativos de grandes regiões naturais e características ambientais e biológicas ou paisagísticas, onde espécies nativas de plantas, habitats e geodiversidade tenham significância espiritual, científica, educacional, recreacional ou turística.
A seguir a UICN, sem ordem de prioridade, lista sete funções que são exigidas da categoria II (Parque Nacional). Vejamos duas delas:
– Informar e excitar (emocionalmente) os visitantes sobre a necessidade e o potencial dos programas de conservação;
– Apoiar o desenvolvimento econômico compatível, sobretudo por meio da recreação e do turismo, que podem contribuir para a economia local e nacional e, em particular, para as comunidades locais.
Mas o que, em termos de visitação, torna a Categoria II única e diferente das outras?
– A Categoria II geralmente não será tão estritamente conservada quanto a Categoria I e pode incluir infraestrutura para turismo e visitação. Áreas Protegidas da Categoria II, entretanto, terão frequentemente, zonas núcleo onde a quantidade de visitantes é estritamente monitorada (mas a visitação é raramente proibida) e que lembrarão a categoria I (grifo meu).
– A Visitação na Categoria II provavelmente será diferente daquela verificada em áreas primitivas (wilderness areas), com mais infraestrutura de atendimento ao público, trilhas, estradas, lodges etc) e, provavelmente terá um número maior de visitantes.
Voltando à própria Lei do SNUC, são doze as categorias de unidade de conservação no Brasil. Uma delas é a categoria Parque Nacional, que segundo o Artigo 11 da referida norma legal:
“Tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.”
Ou seja, está claro na Lei que “a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico” têm que ser possibilitados pela categoria Parque Nacional.
Nesse sentido, volto ao comentário do leitor: “acho o quê”? Não tem o que achar. Parques Nacionais são Unidades de Conservação de uma categoria que deve ser manejada levando sempre o turismo e a visitação em consideração como parte do objetivo primário dessa categoria. Manter parcelas enormes de nossos Parques Nacionais fechadas à visitação, como é o caso emblemático do Parque Nacional de Brasília, é descumprir a Lei e subtrair ao cidadão o direito básico e atávico de se reconectar com a natureza!
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É isso aí! Leis e normas são criadas com embasamento científico e discussões de longo prazo, inclusive com escala internacional. O "achismo" abre espaço pra interesses privados e ignora todo e qualquer planejamento de longo prazo.
concordo plenamente, tomara que as coisas comecem a mudar, agora o PNB inaugurou uma ciclovia