Nesta semana, segue a segunda parte do texto escrito por Allison Devlin, bióloga norte-americana que está fazendo o seu trabalho de campo de doutorado pela Universidade Estadual de Nova York, SUNY (Syracuse, NY, EUA). Na primeira parte, publicada na semana passada, ela nos contou os objetivos do projeto dela, integrando as informações que ela está coletando através das diversas metodologias usadas com os estudos realizados na década de 70, por George Schaller e por mim (veja Epitáfio para uma Onça, partes 1 e 2). Nessa semana, Allison nos conta sobre as aventuras vividas por ela no coração do Pantanal. Nesse momento, ela está em Acurizal, já faz um mês, em contato esporádico limitado pelo funcionamento da energia solar na casa da pesquisa, permitindo o uso da internet apenas quando tem sol. E com essa onda de tempo frio que tem escondido o sol e baixado as temperaturas para menos de 10 graus, mesmo no Pantanal, ela me disse ontem que o mais difícil não é ficar sem energia e internet e sim entrar debaixo do chuveiro gelado.
Outra notícia que ela me passou, mais preocupante que as dificuldades com a falta de energia, foi que a Malvina, esposa do caseiro de Acurizal, Claudinei, havia levado outro susto com uma onça. Já meio traumatizada com o primeiro encontro − em que uma onça havia tentado pegar os cachorros do casal na varanda da sua casa, conforme relatado na matéria anterior −, quando lavava roupas no tanque atrás da sua casa, às 8h da manhã do dia 30 de julho, Malvina escutou um rosnado. Virando-se, viu uma onça que olhava para ela, da beirada do mato, a menos de 20m. Ela gritou com o animal, que calmamente se virou e retornou para o mato. Ele provavelmente havia sido atraído pelo cheiro dos cachorros, que estavam novamente deitados na varanda da casa, mas vendo uma pessoa assim tão perto, desistiu da intenção. A Allison voltou a insistir com os caseiros a minha sugestão, quando da primeira ocorrência, de que eles devem pedir recursos e materiais ao Instituto Homem Pantaneiro, agora responsável pela administração da reserva, para construir uma cerca de tela, pelo menos em volta da casa deles. Desta forma, eles se sentirão mais seguros nas lidas diárias que o seu trabalho lá exige. Quando isso aconteceu, o marido dela, Claudinei, e seu ajudante Rodrigo estavam trabalhando na frente da sede e a Allison e Anne estavam conversando com o diretor do Parque Nacional do Pantanal, Nuno Rodrigues da Silva, e alguns repórteres, junto ao barco deles, a menos de 100m. Obviamente a Malvina ficou estremecida, mas agora, passados alguns dias, ela já pensa no ocorrido como um incidente quase que corriqueiro, como outros moradores da região. Da mesma forma que nós encaramos riscos diários que corremos na cidade grande, como acidentes de transito, atropelamentos, assaltos e sequestros.
Uma dessas famílias que convive com as onças no Morro do Caracará há mais de 30 anos, o Sr. Hildebrando Silva e sua esposa, Dna. Elza, já perderam mais de 10 cachorros para onças ao longo dos anos. No entanto, apesar disso, eles mantêm um relacionamento do qual se orgulham com as diferentes onças que já passaram por lá. O que, certamente, inclui várias gerações delas, algumas das quais nasceram a menos de 500 m da casa deles, nas encostas do morro e que eles acompanharam o crescimento e dispersão, como vizinhos próximos. Outra hora eu ainda conto algumas das histórias deles.
Agora, as palavras da Allison:
Acurizal: Presente e Futuro
Seguir as onças com colar, armar e monitorar as armadilhas fotográficas em Acurizal frequentemente demanda um esforço físico considerável. O trabalho pesado, no entanto, nos abre a porta para um mundo de aventuras e belezas naturais ao qual, de outra forma, não teríamos acesso.
O sobrevoo: a procura pelo Big George
O time de capturas do projeto capturou a onça M08 “Big George”, a estrela de Acurizal, em junho de 2011. Em julho de 2012 nós fizemos um sobrevoo para procurar pelo sinal VHF de seu colar (ver vídeo do sobrevoo). Nós começamos nossa viagem na Fazenda São Bento, voando para o oeste ao longo do rio Cuiabá até o seu encontro com o rio Paraguai, nos pés da Serra do Amolar.
O dia começou com a chegada do nosso piloto, Agamenon, vindo da cidade de Poconé. Passamos uns 30 minutos afixando as antenas a cada estrutura da asa (montante) do Cessna. As antenas direcionais nos permitem escutar o sinal dos colares. Através de um dispositivo que nos permite receber ambos os sinais das duas antenas simultaneamente ou uma de cada vez, podemos refinar o sinal encontrado em função do volume para definir a direção de onde ele está vindo, orientando assim o piloto e o avião até localizar a posição exata do animal, quando o avião passa por cima do animal aparelhado. Essas localizações aéreas ajudam muito na procura de animais perdidos, quando falha o componente que manda as coordenadas para o satélite ou quando não se consegue acha-los nas procuras por terra.
Finalmente estávamos prontos para decolar. No avião, íamos Agamenon, o Dr. Peter Crawshaw, a Dra. Selma Onuma (veterinária do ICMBIO) e eu. Peter controlava o receptor VHF, no banco da frente, enquanto eu auxiliava passando para ele as últimas localizações conhecidas do Big George, plotadas em um mapa que eu havia feito da área ocupada por ele. Com um ronco alto do motor, o Cessna acelerou pela pista gramada até que, com um solavanco final, decolou, subindo rapidamente em uma corrente ascendente. Uma última olhada para a fazenda abaixo de nós, com os campos repletos de gado e logo estávamos acompanhando o curso do rio Cuiabá, em seu trajeto para o sudoeste.
Uma viagem que normalmente levaria 5 horas de barco foi feita em menos de uma hora com o avião. O rio ia cortando a terra, às vezes fazendo curvas de 180 graus, em um zig-zag tortuoso, até chegar à sua confluência com o rio Paraguai, na parte mais profunda da bacia que é o Pantanal. Ver o Pantanal do alto foi uma experiência gratificante e renovadora! Eu nunca havia visto ou mesmo compreendido a vasta extensão de água e as tiras e ilhas de matas que dominam as terras – ou vice-versa. Imagens de satélite não fazem justiça ao Pantanal. A vastidão desenfreada se derrama em todos os horizontes e algumas das baías são tão grandes que voar sobre as suas superfícies espelhadas dão a impressão que o céu caiu para dentro da terra.
Chegando à região de Acurizal, sobrevoamos os lugares favoritos do Big George, checando as concentrações de localizações do seu colar GPS. Eu finalmente entendi alguns dos pontos que antes haviam me deixado confusa: agora, durante o início da estação seca, já havia trechos com terra descoberta, acima do nível da enchente. Imagens de satélite que eu havia usado foram feitas durante o auge da estação de cheias do ano anterior, então, as localizações do Big George me davam a impressão que ele estava preferencialmente boiando em uma grande extensão de água! Por isso é tão importante que os pesquisadores passem muito tempo em campo e conheçam muito bem a região em que trabalham: mesmo a tecnologia mais atual pode nem sempre representar de forma acurada as mudanças sazonais nos habitats ou suas condições!
Cochilo no segundo vale (2012)
“Com a visão inesperada, o Thiago soltou uma exclamação baixa e algumas pedras rolaram quando nós paramos subitamente, no meio do leito do riacho.”
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Meu colega e colaborador Thiago Semedo e eu trabalhamos juntos pela primeira vez em 2012, quando ele me ajudou a estabelecer e monitorar as primeiras estações de armadilhas fotográficas em Acurizal. Foi durante essa época que eu tive um dos meus encontros favoritos com uma onça-pintada.
Nós estávamos atravessando o riacho que corta o Segundo Vale (veja imagem que abre a matéria), logo na entrada deste, indo trocar as pilhas de duas estações que eu havia armado com meu colega Fernando Tortato, duas semanas antes, na parte mais ao fundo do vale. O dia estava quente – perto de 38°C – e o caminho estava difícil. O leito do riacho é pedregoso, com limo nas pedras, o que as tornam escorregadias e a correnteza era forte em alguns trechos. Avançamos devagar, seguindo o curso do riacho, por quase 4 horas. Quando fazíamos uma curva do rio, iluminada pelo sol, nós a vimos: uma fêmea adulta de onça-pintada, dormindo placidamente na sombra de uma bromélia gigante. Com a visão inesperada, Thiago soltou uma exclamação baixa e algumas pedras rolaram quando nós paramos subitamente, no meio do leito do riacho. O som das pedras acordou o animal: o seu olhar penetrante imediatamente se fixou em nós. Ela se levantou com um movimento ágil. Toda a floresta pareceu parar no tempo quando o sol brilhou no seu corpo pintado. Mais dois pulos silenciosos e ela já havia atravessado o riacho, sendo engolida pelas sombras da floresta densa. Foi somente então que nos lembramos de respirar.
Vento no mato (2013)
No meu segundo encontro preferido com uma onça em Acurizal, eu a vi sem que ela tivesse me visto. Eu estava indo revisar uma das estações de armadilhas fotográficas mais próximas, a cerca de 1,5 km da sede. O dia havia começado com um vento forte, que trazia uma frente fria do sul. A floresta estava cheia dos sons do vento nas folhas e galhos, se sobrepondo aos sons habituais de aves cantando e do ronco dos bugios (Alouatta caraya). Os primeiros raios solares eram às vezes escondidos pelas nuvens que passavam rápidas no céu.
Eu andava pela estrada principal em um ponto que ela faz uma curva suave antes de chegar ao primeiro córrego. Ainda não tenho certeza se eu primeiro “o” vi ou senti, pois me senti compelida a parar antes mesmo que a informação sobre a sua presença se registrasse no meu cérebro. A menos de 20 m adiante, no leito gramado da estrada, estava sentado o enorme macho residente, M19, que eu havia batizado de “Coração”, por causa de uma roseta (mancha) em formato de coração localizado no seu flanco esquerdo. Ele estava de costas para mim, se dirigindo para o córrego – e a apenas 10 m da estação com as câmeras. Eu me escondi sem fazer barulho por trás de uma árvore, peguei meu binóculo e fiquei observando, sem ser percebida. Ele se sentou na estrada, parecendo muito relaxado, imóvel, exceto pela sua enorme cabeça pintada olhando à sua volta. Depois de olhar para o céu, ele passou mais uns 5 minutos simplesmente olhando as folhas e as copas das árvores balançando ao sabor do vento. Ele então se levantou e continuou seu caminho, desviando da estrada e entrando no mato – antes da armadilha fotográfica!
A queda do caxinguelê (2014)
Para mostrar que nem só histórias de onças acontecem em Acurizal, relato um incidente interessante com um residente bem menor, acontecida recentemente. O Dr. Peter Crawshaw estava passando uns dias conosco em Acurizal. Ele, mais Anne Martins, minha colaboradora voluntária, da UFMT, e eu havíamos ido checar a primeira estação de armadilhas fotográficas. Quando voltávamos, caminhando na estrada, fomos surpreendidos por uma comoção considerável nas folhas secas de uma árvore à nossa direita. Algo pequeno e marrom caiu de um galho, com um barulho seco no chão. O animal então correu no capim até praticamente bater nos meus pés. Nós todos ficamos imóveis, pensando primeiro que se tratava de uma cobra. Para nossa surpresa, era um filhote de caxinguelê, o nosso equivalente de um esquilo (Sciurus aestuans)! A criaturinha assustada quase entrou entre os meus pés, mas mudou de direção quando escutou nossas risadas e voltou para o mato novamente, desaparecendo. Isso nos mostrou que, algumas vezes, temos que aprender lições da maneira mais difícil, e que mesmo caxinguelês não nascem sabendo como se deslocar agilmente em cima das árvores!
A volta do coração (2014)
“Com a sua cauda paralela ao solo e a cabeça baixa, ele andava sem fazer nenhum barulho, até que entrou na trilha que vai até a beira da baía.”
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No dia 21 de julho de 2014, quando estávamos jantando, eu me levantei rapidamente da mesa, aos chamados urgentes do Claudinei, marido da Dna. Malvina e um dos funcionários residentes em Acurizal. Um macho grande de onça-pintada estava passando por trás da casa. Todos nós (a Anne, Claudinei e sua esposa Malvina, Rodrigo, e eu) ficamos olhando o animal, iluminado pela lanterna, da porta dos fundos da casa, a menos de 20 m de distancia. Ele estava caminhando entre a beira do mato e a parte limpa de vegetação do quintal. Com a sua cauda paralela ao solo e a cabeça baixa, ele andava sem fazer nenhum barulho, até que entrou na trilha que vai até a beira da baía. Pelo seu tamanho, eu estimei o seu peso em aproximadamente 115 kg. Sussurrei para os outros: “Acho que é o Coração, o macho dominante dessa área. Eu espero que ele passe em frente da câmera”. Eu havia armado uma estação de armadilhas fotográficas nessa trilha, na noite em que houve o ataque frustrado de uma onça, dias antes, e descrito por Peter, na introdução da matéria anterior. Como os cachorros estavam agora passando a noite trancados em um quarto seguro, ficamos mais tranquilos quando a onça sumiu na trilha. Segundos depois, no lusco-fusco do início de noite, vimos brilhar o flash da máquina, quando ele passou em frente da armadilha, tirando sua própria foto. Voltamos, então, para a mesa de jantar e terminamos nossa refeição.
Na manhã seguinte, quando eu chequei as máquinas, pude confirmar que tinha sido, realmente, o Coração – o mesmo animal que eu havia visto olhando as árvores ao vento, naquele dia frio em 2013. Esse macho tem sido registrado nos nossos levantamentos desde 2012, e parece ter substituído o Big George como o macho residente dominante na área que engloba a sede da reserva. Verificando as informações que são registradas na máquina, toda vez que uma foto é tirada, eu reparei – para minha surpresa! – que ele havia retornado no sentido das casas, apenas 6 minutos depois, assim que havíamos voltado para a nossa refeição! Isso, provavelmente, para se certificar que não havia uma refeição disponível para ele, com os cachorros trancados…
O futuro de Acurizal e os estudos com as onças
Acurizal é parte importante de um complexo de áreas protegidas que engloba também toda a Serra do Amolar. Além de Acurizal, nós estamos estudando a biologia das onças-pintadas também no vizinho Parque Nacional do Pantanal Matogrossense (apenas do outro lado do rio Paraguai, mas já no estado de Mato Grosso) e nas fazendas São Bento (MS) e Jofre (MT), mais ao norte. Outros estudos estão sendo desenvolvidos na Estação Ecológica de Taiamã, no município de Cáceres-MT (pelo ICMBio-CENAP e o Instituto Pró-Carnívoros), e nas fazendas-pousadas Caiman e Barranco Alto, no MS. Nosso trabalho em Acurizal apenas se soma ao quebra-cabeça que é a conservação dessa espécie problemática.
Uma vez que mais de 95% do Pantanal é formado de propriedades privadas, dividido em grandes fazendas que mantém milhares de cabeças de gado, poder estudar as onças em uma área livre da pecuária é raro. Por isso, Acurizal é uma área quase que única no Pantanal. Com todos os aspectos profissionais e científicos considerados, eu me acordo todos os dias me sentindo uma das pesquisadoras mais sortudas do mundo. Ainda me parece um sonho poder chamar esse lugar paradisíaco como minha casa – mesmo que por pouco tempo. Eu já conheço bem as suas baías, florestas, trilhas, estradas e os seus vales. Grupos residentes do macaco zoque-zogue (Callicebus sp.) me dão bom dia a cada manhã. Os gritos estridentes de um casal de araras verdes-e-vermelhas ecoam nas encostas dos vales. E as pegadas frescas de onças-pintadas me abrem uma janela para a vida secreta de um dos felinos mais misteriosos do mundo.
Nosso sonho é que Acurizal continue a se recuperar. Para garantir espaço que possa ser, para sempre, um lugar seguro para as onças no Pantanal. E, protegendo as onças, proteger também muitas outras espécies, onde os indivíduos nascem, vivem e procriam nesse pequeno pedaço do paraíso. Acurizal é uma das joias mais brilhantes na coroa que o Pantanal representa. Com estudos minuciosos, com manejo adequado e a consciência e boa vontade das pessoas, poderemos assegurar a conservação e perpetuação desse lugar para as gerações futuras – tanto de onças como de humanos.
Saiba Mais
Referências & Leitura Recomendada sobre os estudos em Acurizal
Crawshaw, P.G. Jr. 2006. Jaguars in the Pantanal of Brazil. Wild Cat News 1-4.
Prance, G.T. & G.B. Schaller. 1982. Preliminary study of some vegetation types of the Pantanal, Mato Grosso, Brazil. Brittonia 34(2): 228-251.
Schaller, G.B. 1983. Mammals and their biomass on a Brazilian ranch. Arquivos de Zoologia 31(1): 1-36.
Schaller, G.B. & J.M.C. Vasconcelos. 1978. Jaguar predation on capybara. Z. Saeugetierk 43: 296-301.
Schaller, G.B. & P.G. Crawshaw, Jr. 1980. Movement patterns of jaguar. Biotropica 12(3): 161-168.
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