Aproveitando que eu tenho organizado material para retomar o trabalho no meu livro (um dia ele sai…), revendo velhas anotações de campo, vou apresentar aqui mais informações sobre o primeiro estudo da onça-pintada, já na sua segunda fase, na Miranda Estância, MS, no início da década de 80. Atualmente, laços feitos com cabos de aço têm sido considerados mais eficientes para a captura de grandes felinos, tendo o método sido aperfeiçoado para uso em leões, tigres, leopardos, pumas, e na nossa onça-pintada também. Existem hoje no Brasil várias equipes bem treinadas no uso dessa técnica, que além de melhorias no preparo do laço propriamente dito, inclui principalmente o desenvolvimento paralelo de um sistema de transmissores usados no laço, que avisam quando este foi disparado. O tempo é um fator crucial para o uso seguro da técnica, pois o risco de ferimentos no animal capturado aumenta diretamente com o quanto ele permanece preso no laço. Quanto menor o tempo, menor a possibilidade de o animal se machucar. Para isso, a equipe responsável deve obrigatoriamente contar com um veterinário com experiência na sedação de grandes felinos, e idealmente, também com um biólogo para os procedimentos corretos na biometria e coleta de material biológico para estudos sanitários e genéticos. E a equipe tem que estar preparada para ir o mais rápido possível até o laço disparado, verificar se houve realmente a captura. Se ela ocorreu, o animal deve ser imediatamente anestesiado e tirado do laço, em qualquer horário, dia ou noite, chuva ou sol. Aliás, esse é um cuidado extremamente importante, que os locais escolhidos para armar os laços sejam protegidos de exposição direta ao sol, para evitar o risco de hipertermia, e que esteja limpo de vegetação ou galhos em que animal possa se enroscar ou se machucar.
No entanto, conforme narrado abaixo, na época em que começamos o nosso estudo, o método tradicionalmente usado para a captura (e geralmente a caça) dos nossos grandes felinos, eram cachorros especialmente treinados para esse fim. Com uma matilha bem-treinada de cães onceiros, era possível programar capturas extremamente eficientes, e principalmente por esse motivo, as populações de onças-pintadas no Pantanal (e em outros ecossistemas também) estavam seriamente ameaçadas. Conforme já relatado, foram usados os serviços de um antigo caçador, com os seus cachorros, para as primeiras capturas dos animais aparelhados com colares, no projeto em Acurizal. Com essas experiências positivas, uma das primeiras providências que tomei, quando reiniciando o estudo na Miranda Estância, foi começar a formar uma matilha própria do projeto, para adquirir independência nessa etapa fundamental para a realização do estudo. Primeiro pedindo emprestados cachorros com experiência e juntando a eles cachorros de boa procedência que me foram doados. Neste processo, eu tive uma ajuda extremamente importante de João Carlos Marinho Lutz, proprietário de uma das fazendas mais bonitas que eu já conheci no Pantanal, a Santo Antônio do Paraíso, entre os rios Itiquira e Correntes, no município de Rondonópolis. Ele me ajudou na obtenção de cachorros onceiros que eu usei nas primeiras capturas na Miranda Estância, o que permitiu o sucesso posterior do projeto. Eu cheguei a ter 28 cachorros próprios, para uso no projeto, alguns muito bons e outros nem tanto. Mas juntos, eles garantiam, com alguma eficiência, as capturas e recapturas que possibilitaram levar o estudo a bom termo.
Com essa introdução, passo a narrar o caso abaixo:
No dia 17 de julho de 1982, saímos do retiro do Corcunda, onde estava sediado o projeto de estudo da onça-pintada no Pantanal de Mato Grosso, na Miranda Estância, MS, para tentar recapturar o Dr. Wonderful (apelidado de Doc), um macho subadulto de onça-pintada, para troca do seu colar VHF. Uma vez que o colar havia sido colocado nele no dia 28 de dezembro de 1981, estávamos começando a ficar preocupados que, com o crescimento da musculatura do pescoço do animal nos últimos seis meses, o colar pudesse estar começando a incomodar. No dia anterior, o Howard Quigley, meu colega no projeto e pesquisador da (então) New York Zoological Society (atualmente Wildlife Conservation Society), havia localizado todas as três onças aparelhadas com colar, com o nosso piloto de táxi aéreo, o Nilson Antônio Paes (Pita, para os amigos). Resolvemos aproveitar a oportunidade para recapturar o Doc, pois ele estava perto do Corcunda. No grupo de captura, estavam, além do Howard e eu, o Luiz Flamarion Barbosa de Oliveira (atualmente, pesquisador no Setor de Mamíferos do Museu Nacional, no Rio de Janeiro) que havia vindo passar uns dias comigo, o Vadú, capataz do retiro do Corcunda, e o Bastião e o Sabino, funcionários da fazenda.
Fomos de canoa, levando conosco cinco cachorros especialmente treinados para esse tipo de caçada (Chuvisco, o meu mestre-onceiro, Volante, Patrulha, Perigoso e Leão), beirando o lado norte da baía do Corcunda, para o oeste. Investigando a presença de urubus, o Vadú achou uma carcaça de um bezerro de mais ou menos um ano de idade, que havia sido morto e comido por uma onça-pintada, já há alguns dias. Como o Howard havia localizado o Doc nesse mesma área, em outro voo feito no dia 7, era bem provável que tivesse sido ele o responsável. Deixamos a canoa ali e seguimos a pé, acompanhando a cordilheira, procurando por rastros, com os cachorros nas trelas (coleiras que unem dois cachorros em uma mesma guia). Achamos rastros velhos e novos de um macho, provavelmente do próprio Doc. No Morrinho, em mata alta, achamos outro bezerro morto, mais fresco, mas como tínhamos achado também rastros de uma parda pequena, não pudemos saber qual animal havia matado o bezerro. O predador tinha comido praticamente tudo, com exceção da traqueia e das pontas das patas. Em seguida, atravessamos para o campo do Tuiuti, ainda acompanhando a cordilheira. Atravessamos vários corixos, com vegetação bem fechada, principalmente de espinheiros.
Às 14 horas, o Howard pegou o sinal do colar do Doc, frequência 007, no receptor, e nós começamos a segui-lo. Às 14:30 o sinal estava bem forte e eu soltei os cachorros, em mata bem suja. Às 15:15, nós o vimos em uma árvore alta, a uns 10 m de altura, em um emaranhado de galhos finos, sobre o corixo, onde a vegetação é bem fechada, formada principalmente espinheiros. Além de Doc estar muito alto na árvore para um tiro seguro com o anestésico, o lugar era difícil, caso ele resolvesse brigar com os cachorros, depois de atingido. Por causa disso, por já estar tarde para começar uma captura, e considerando também o período necessário para a recuperação dos efeitos do anestésico, eu decidi não arriscar, deixando a recaptura para uma situação mais favorável, em outro dia. O fato de o colar estar funcionando bem e parecer não estar incomodando o animal me deixou tranquilo o suficiente para não arriscar criar uma situação complicada. Prendemos os cachorros nas coleiras e nos afastamos, deixando Doc tranquilo, ainda em cima da árvore.
A volta para as canoas foi dura, atolando em barro mole nas áreas onde a água da enchente já havia baixado. Howard estava tão cansado que não se preocupou em procurar pelo seu tênis, que ficou atolado no fundo de uma poça de barro. Ele andou até os barcos com apenas um pé de meia. A noite desceu logo e apenas eu tinha trazido uma lanterna. Vadú nos guiava, mas acabou se desorientado na escuridão, e Sabino tomou à frente, usando a minha lanterna. Nós vínhamos atrás, enxergávamos pouco e nos enredávamos em moitas de espinhos o tempo todo. Chegamos de volta ao Corcunda perto da meia-noite, alguns frustrados por não termos tido sucesso em trocar o colar do Doc. Mas, embora extenuado, eu estava com a consciência tranquila por saber que o colar e o animal estavam bem, e com a certeza de ter agido certo, dadas as circunstâncias.
Seis dias depois, no dia 23 de julho, o Howard fez um sobrevoo às 6h30 e Doc foi novamente localizado. Celestino, antigo caçador de onças da Miranda Estância e pai do Vadú, havia ido junto. Melhor Conhecedor da fazenda, ele ajudava na descrição do local onde estava o animal. Celestino explicou a Vadú, por telefone, onde estava o Doc – ainda bem próximo de onde o havíamos deixado, no dia 17, na invernada do Tuiuti.
Saímos do Corcunda às 9h30, o Vadú, Bastião, Sabino, Zelfo, o Howard e eu. O Vadú, Howard e eu atravessamos a baía de canoa, levando os cachorros, e fomos encontrar os outros, que foram a cavalo, no Bebedouro. Desta forma, não cansamos os cachorros, além de evitar qualquer risco com algum jacaré mais atrevido. Com a descrição do ponto onde Doc se encontrava, fomos direto para lá, e, às 11h30, Howard pegou o sinal do colar, a uns 600 metros de onde ele havia sido localizado naquela manhã. Havia urubus naquele ponto, indicando a presença de uma carniça.
Às 11h45, soltei Chuvisco dentro do mato e, logo em seguida, ele pegou a batida. Quando ele firmou, soltei os outros cachorros. Vadú, Bastião e o Zelfo seguiram os cachorros por dentro do mato, e Sabino, Howard e eu, fomos pelo campo, rodeando o capão, levando os cavalos.
Às 12h, Sabino viu o Doc em uma árvore baixa, na beirada do mato, em uma forquilha a uns 6 metros do chão. Os cachorros foram presos, e às 12h20min, Howard e eu atiramos dois dardos simultaneamente, ele com a pistola no quarto direito e eu com o rifle, no quarto esquerdo. Com o impacto dos dardos, o Doc deu dois passos para frente, no galho, fazendo menção de pular, mas parou novamente. Com outros dardos preparados, atiramos novamente, o Howard no quarto direito e eu na paleta direita. Dessa vez, a onça desceu , entrando no mato, com os cachorros atrás. Depois de um momento de confusão, eles o acharam novamente e o acuaram no chão a uns 60 metros, em um trecho sujo de mata. Ele já estava bem tonto com a anestesia e não conseguia mais se levantar, os cachorros a sua volta. Sabino e eu fomos os primeiros a chegar e começamos a prender os cães. Não foi necessário aplicar mais anestésico.
Agora com 211 cm e 95 kg de peso, comparado com os 70 kg da primeira captura, ele já havia atingido o tamanho de um macho adulto. O colar de jaguatirica que tinha sido adaptado para colocação, seis meses antes, tinha funcionado bem e foi trocado por um colar novo. Em 50 minutos, todo o procedimento havia terminado, e nos afastamos para acompanhar a recuperação da anestesia. Às 13:55, ele se levantou, se afastou e sumiu na vegetação. Pelo VHF do colar, ele continuou a nos passar informações sobre seus hábitos e comportamento até dezembro de 1983, já no final do projeto. Então, o encontramos em companhia de uma fêmea, cumprindo seu papel de macho residente naquela população de onças-pintadas, na época, uma das poucas remanescentes no Pantanal.
Cheias que contiveram o avanço da pecuária nas áreas mais baixas e isoladas do Pantanal e o controle da ação de coureiros que agiam com grande impunidade na região estão entre uma série de circunstâncias ao longo dos anos seguintes, que permitiu a recuperação das onças e outras espécies da fauna do Pantanal, como jacarés e ariranhas. Hoje, elas estão em situação muito melhor de conservação, o que nos dá esperança de um futuro mais seguro para esse ecossistema único.
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Belíssimo trabalho, e o relato é feito de forma magistral, imersiva. Só falta mesmo o livro…