O Brasil tem uma das maiores redes de áreas protegidas do mundo, com Unidades de Conservação estabelecidas em diversas categorias e esferas de gestão. Toda essa proteção estende-se por cerca de 17% do território brasileiro e tem por finalidade proteger o imenso patrimônio natural do país. Intuitivamente, toda e qualquer nova unidade de conservação criada significa mais um ponto no placar dos conservacionistas. Mas, se não for bem assim?
Globalmente, e no Brasil não parece ser diferente, áreas destinadas à conservação têm uma natureza residual. Por residual, me refiro literalmente ao que sobrou e não pôde ser utilizado para agricultura, pecuária, mineração, pesca e assim por diante. Alguns estudos científicos já demostraram que áreas protegidas possuem solos inférteis, terrenos muito acidentados e pouca (ou nenhuma) vocação para o uso econômico. Em outros casos, os limites dos parques coincidem perfeitamente com os limites de áreas de pesca de arrasto ou de espinhel, evidenciando que os parques tiveram seus contornos ajustados para permitir a pesca em seu entorno. Há ainda áreas protegidas em locais remotos, como parques marinhos enormes, mas bem distantes da plataforma continental, onde está a maior e mais ameaçada biodiversidade marinha; ou em áreas inacessíveis em florestas tropicais, e portanto, ainda sem uso econômico.
Mas isso é um problema? Muita gente acha que ter unidades de conservação residuais no Brasil não é um problema, posto que cada vez temos mais áreas sendo protegidas. Mas essa é uma maneira simplista de medir o avanço que estamos fazendo com a conservação da natureza. Pensar apenas na área total sob proteção faria sentido desde que a criação de uma determinada unidade de conservação impedisse a transformação da área em outra coisa; por exemplo, uma monocultura de soja. Além disso, seria preciso garantir que dentro da unidade de conservação a biodiversidade que mais precisa de proteção estaria de fato protegida. E quem precisa de mais proteção são espécies e ecossistemas ameaçados por desmatamento, queimadas, mudanças climáticas, mineração, exploração de petróleo e gás, sobrepesca, etc.
“conservamos locais que, analisando friamente, talvez nem precisassem de proteção, uma vez que não seriam convertidos em qualquer outra coisa. Resultado: locais com baixa vulnerabilidade são protegidos e locais que serão riscados do mapa para sempre são liberados para uso.”
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Eu sei… pode soar um pouco estranho, mas a chave para entender a ideia é fazer uma pergunta simples: o que teria acontecido com essa área (e, consequentemente, com a biodiversidade lá existente) caso ela não houvesse sido protegida? Se sua resposta for: “Nada! Ela estaria do mesmo jeito”, então essa proteção não deveria ser efusivamente comemorada como mais um gol no placar da conservação. Em muitos casos – mais do que você imagina – essas áreas estariam muito bem obrigado daqui a 20-30 anos caso não houvessem sido protegidas; pensem no interior da floresta amazônica!
Veja que em ambas as situações, não se trata apenas de proteger o que está dentro das unidades de conservação, mas de fazer a diferença, salvando o que seria perdido, caso essas unidades não houvessem sido criadas. Note, também, que não estou falando de números e estatísticas. Para quem pensa em números ou área total protegida, qualquer nova unidade de conservação é lucro. Estou falando de “impacto positivo”, de fazer a diferença com ações de conservação.
Em áreas como a medicina, educação e desenvolvimento social, esse impacto positivo é formalmente definido como “o que teria acontecido caso uma determinada intervenção não houvesse sido implementada ou uma intervenção diferente houvesse sido feita”. Em conservação esse impacto positivo ainda é raramente estimado, mas isso vem mudando. Um exemplo é que no ano passado a conceituada revista cientifica inglesa “Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences” publicou um volume especial sobre avaliação do impacto positivo de ações de conservação no mundo.
O fato é que, com recursos escassos destinados à conservação e muita dificuldade política para implementar ações em locais com vocação para outros usos, principalmente atividades econômicas, corre-se o risco de se optar pelo caminho mais fácil. Esse caminho é o de proteger áreas residuais, que não foram usadas para outros fins e, portanto, poderiam ser transformadas em unidades de conservação. Pior, a biodiversidade perdida em áreas não protegidas normalmente só ocorre ali, onde nunca mais serão encontradas.
A consequência de não se avaliar o impacto positivo da criação de áreas protegidas no mundo e nas unidades de conservação no Brasil é clara: embora tenhamos dobrado a área total protegida no planeta nos últimos 10 anos, nunca tivemos tantas espécies ameaçadas de extinção sem proteção alguma. Isso parece um contrasenso. Parece! Mas isso é esperado porque não direcionamos, necessariamente, nossos esforços para a proteção de ambientes e espécies que estão sumindo devido à exploração humana. Ao contrário, conservamos locais que, analisando friamente, talvez nem precisassem de proteção, uma vez que não seriam convertidos em qualquer outra coisa. Resultado: locais com baixa vulnerabilidade são protegidos e locais que serão riscados do mapa para sempre são liberados para uso.
Enquanto nossos objetivos conservacionistas forem o de aumentar a área total protegida do país e não o de proteger aquilo que pode desaparecer para sempre, o placar continuará a favor da extinção e contra a biodiversidade. O assunto é polêmico, sem dúvida. Espero retomá-lo em outras colunas, pois há muito o que conversar. Ainda assim, está na hora de perguntarmos “o que aconteceria com essas áreas caso elas não houvessem sido convertidas em unidades de conservação?” ou, de maneira mais simples, “nossas unidades de conservação fazem a diferença?”
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Caro Rafael,
Parabéns pelo artigo. Entendo que seu artigo não desqualifica a importância das áreas protegidas que foram criadas ao longo dos anos considerando as oportunidades existentes no momento da criação. Apesar de termos ainda problemas políticos que dificultam a criação e a manutenção de áreas protegidas no mundo, acredito que está na hora de avançarmos para a investigação que nos permita avaliar o seu impacto na conservação da biodiversidade. Precisamos fazer a diferença no sentido de entender, por exemplo, qual é o impacto positivo dessas áreas na conservação de espécies ameaçadas , raras ou endêmicas. Incluir uma avaliação de impacto positivo no processo de criação de áreas protegidas seria na verdade um avanço para alcançarmos de fato o entendimento do status de conservação da biodiversidade dessas áreas. Temos sim que nos valer das técnicas e métodos atualmente existentes para avançarmos também no conhecimento sobre o papel dessas áreas na funcionalidade de ecosistemas. Não se trata simplesmente de uma visão acadêmica , ao contrário trata-se de um pensamento que concilia o conhecimento cientifico à conservação da biodiversidade. É urgente esse entendimento, pois podemos nos deparar no futuro (ou já no presente como documentado para as redes de Áreas protegidas da Australia) com um conjunto de área protegidas sem desempenhar uma das suas funções que é garantir a funcionalidade de ecossistema. Assim, temos urgente que incluir essas análises (avaliação de impacto positivo, avaliação dos padrões de distribuição de espécies , efeitos de mudanças climáticas, etc) no processo de criação de áreas protegidas .As experiências do passado e os avanços no conhecimento cientifico nos permitem fazer a diferença! Queremos áreas protegidas funcionais!
Situação ainda pior, é a compensação de Reserva Legal em unidade de conservação. Ou seja, o cidadão quita o seu débito em RL adquirindo áreas ainda não regularizadas no interior de UCs já existentes e doando ao gestor (ICMBio, OEMA,..). Reduzindo assim o % de florestal da área e passando o ônus de manutenção destes remanescentes exclusivamente para o poder público. Tiro no pé. E considerando que as UCs são majoritariamente em áreas não interessantes para produção ou ocupação como colocado no texto, é um tiro no pé duplo.
Pessoal, obrigado pelos comentários. É bom ver que o texto teve alguma repercussão. Como disse, o assunto é polêmico e sempre suscita questões que são divergentes.
É claro que há uma questão temporal nessa discussão e que não abordei no texto. Ou seja, UCs podem não ser eficientes hoje, mas sim no futuro. Outra coisa importante é que me concentrei na conversa sobre a eficiência em evitar o desmatamento e proteger a biodiversidade, mas é possível pensar em outras variáveis como conter a caça ilegal, por exemplo. Há muito o que se pensar e fazer.
O texto é provocativo e fiz isso propositalmente. É preciso levantar essa bola e avaliar até que ponto estamos fazendo a diferença com nossos parques (já fiz isso no MMA, inclusive). É bom lembrar que o argumento de "se está ruim agora, imagina sem essas UCs" está bem longe do meu texto e da ideia que ele traz. Não estou dizendo que não devemos criar UCs (ou até mesmo desfazer o que está estabelecido). Meu texto não é desculpa para ir contra à proteção da natureza, ao contrário, devemos criar UCs com muita responsabilidade em locais que, se não protegidos, desaparecerão. Agradeço os comentários (elogios e críticas) e vou retomar o assunto e outra(s) coluna(s).
Acho que o objetivo do texto não é dizer que as áreas protegidas localizadas em regiões não cobiçadas não deveriam ter sido criadas. Infelizmente, é possível que no futuro elas venham a tornar-se determinantes para a preservação da biodiversidade e das interações ecológicas das regiões em que se encontram, quando a fronteira da ocupação e da exploração da nossa espécie lá chegar.
Eu concordo com o Rafael. Para produzir resultados no presente, resultados esses que são bem urgentes, é necessário que as ações da conservação da natureza façam frente às atividades que criam essa urgência.
E uma forma de fazer isso é lutar para proteger principalmente aquelas áreas que são biologicamente importantes e que são cobiçadas para alteração do uso do solo ou outras atividades prejudiciais à sua preservação.
Ninguém, seja acadêmico ou não, acha que isso é uma tarefa fácil.
Mas que é urgente, é. E precisamos de pessoas com coragem para o dizer.
Sim, quanto mais UCs melhor, pois mesmo aquelas " residuais" e isoladas com certeza no futuro serão pressionadas e poderão ser impactadas Concordo com meu amigo Mercadante, senão se criasse UCs a tanto tempo atrás( e que na época eram residuais e isoladas) com certeza essas regiões não estariam protegidas hoje. O mundo acadêmico também é importante, quanto mais perto da realidade melhor. Mas no mínimo, faz a gente refletir e debater como no caso deste excelente artigo. Fico pensando na imensa pressão que 1/4 das UCs sofrem pela expansão urbana desenfreada das cidades (e onde vivem quase 90% da população brasileira e que portanto podem e devem ser aliadas na conservação da biodiversidade) e que até hoje não existe uma política publica diferenciada para essas áreas.
Se não fosse o Parna do Iguaçu toda aquela área teria sido destruída. Se não fosse Grande Sertão Veredas idem. As áreas criadas no Paraná e SC, em Mata Atlântica, na década passada, protegem áreas que, de outro modo, seriam destruídas. No Matopiba só vai sobrar o que for UC. Se não criarmos mais UCs lá não vai sobrar nada. Os quase 40 milhões de hectares de UCs criadas na Amazônia nos últimos 15 anos, em área de expansão da fronteira amazônica (e não em áreas remotas) estão ajdudando e vão ajudar a frear o desmatamento do bioma (Há um numero considerável de estudos mostrando o impacto positivo dessas UCs sobre o desmatamento na Amazônia). Se uc não incomodasse os ruralistas não fariam diuturna oposição a elas no Congresso. É verdade que muitas ucs estão em “áreas residuais”. Mas muitas não. Mais vale propor uma nova uc do que lamentar as que não foram criadas. E vamos sim, comemorar cada nova uc, por menor que seja, por mais remoto e "residual" que seja o local onde for criada.
aqueles cujo emprego depende das UCs (quanto mais UC, mais emprego), tem opinião sem isenção
Rafael, estou de pleno acordo com suas colocações. A política histórica de criação novas UCs sempre foi com base na compensação de algum empreendimento de grande impacto ambiental, como caso de Belo Monte, de Balbina e outros, e pior, a criação da UC nos permite esquecer dos impactos ambientais e sociais do entorno. Acrescento na sua reflexão, que estabelecer UCs em áreas sem pressão de desmatamento ou de baixa aptidão é bom para todos que tomam decisões políticas, pois agradam ambientalista com criação de novas UCs onde certamente tem espécis que devem ser protegidas, não desagradam os atores da expansão da fronteira agrícola e mais ainda, são áreas que não necessitam de grande esforço de fiscalização, pois as pressões externas serão muito menores, comparadas as áreas de elevada aptidão de uso. Porque mais de 80% das áreas protegidas de SP estão na Serra do Mar? Estamos num grande esforço junto à SMA para criação de UCs no interior, protegendo o pouco que sobrou nas paisagens agrícolas, mas não está fácil, pois temos várias inimigos nisso, como a Nova Lei Ambiental que reduziu a RL e o valor da terra nessa regiões. Abraços e parabéns.
O texto é interessante, mas como disseram Truda e Clóvis, no mundo real não adianta criar uma UC onde a biodiversidade é alta, bem como o custo de oportunidade: haverá muita pressão contrária e ainda maior risco da UC ser de papel.
Vejo neste texto concordâncias e discordâncias. O debate sempre é bom.
Querem um exemplo de ataque a área de relevãncia. Vejam a proposta de uma empresa, com o aval da FATMA (de SC), para implantar um parque eólico com 240 aerogeradores, na região de urubici e Bom Retiro (SC), área de altitude,área de proteção da BIOSFERA (UNESCO), área para implantar um Parque Nacional do Campo dos Padres, com estudos desde 2008. Resumo tudo pronto.
E o governo de SC e Federal emperando, com estudos de impacto mentirosos e com dados, inclusive criminosos.
Área UNICA com flora e fauna inigualaveis. O bom dessa Historia, estamos na luta.
Primeiramente…FORA ICMBIO!!!!
Sem desconsiderar as tremendas dificuldades enfrentadas ao longo das últimas décadas pelos conservacionistas brasileiros, dentro e fora dos governos e dentro e fora da academia, é evidente que todos nós precisamos demandar mais em relação ao que está posto. Não se trata de denegrir ou desvalorizar o que já realizamos, criando UCs onde foi possível criar. Ou atuando em muitos outros distintos esforços de conservação da biodiversidade, dentre eles, a busca da garantia da qualidade da gestão dessas "áreas protegidas". Estas, salvo exceção, abandonadas à própria sorte. Avançar na criação de UCs, em especial aquelas de uso indireto, é demanda fundamental e não parece existir outra alternativa de curto prazo do que continuar a apostar no que está ao alcance. Isso não significa que seja um esforço suficiente. Há também uma agenda maior a ser determinada. Uma agenda mais ampla e pretensiosa, norteada de visão estratégica, de estrutura física e de capital humano, orçamentos suficientes geridos por instituições robustas e comprometidas com uma missão clara e focada na proteção do Patrimônio Natural. Algo suficientemente capaz de amparar, inclusive, as crises sociais e econômicas advindas de ajustes decorrentes do alinhamento de áreas para produção de natureza e não para outro fim. E, mais adiante, ter condições para demonstrar na prática que as riquezas produzidas pelas Unidades de Conservação são muito mais qualificadas para melhorar a qualidade de vida e gerar negócios do que qualquer tipo de atividade econômica convencional. Temos ficado no meio do caminho de uma expectativa maior, tamanhas as pressões que exacerbam e agridem. Perseguir um cenário de ganhos suficientes representa uma utopia que precisamos a qualquer custo perseguir. E sem abrir mão das conquistas realizadas, embora insuficientes.
Belíssima tese, mas nós vivemos no mundo real, e não no mundo acadêmico.
Ainda que "residuais", como depreciativamente chamam os seguidores dessa vertente de teóricos, as áreas naturais legalmente protegidas cumprem, sim, um papel importantíssimo na conservação da biodiversidade. Sem elas, seria muito pior. E, é vital lembrar, não apenas por serem "arcas de Noé" do que sobrou, mas ta,bém por servirem de marco para os USOS NÃO-EXTRATIVOS da biodiversidade como o Ecoturismo e, através deste, da CONSCIENTIZAÇÃO da população para a importância de termos áreas protegidas – sem o que não vai se conseguir jamais que as autoridades públicas protejam os "filés" que o caro Professor gostaria que fossem postos sob proteção legal.
Em suma, do jeito que a coisa está, vale sim e muito investir na criação E gestão para Uso Público de UCs mesmo em áreas ditas "marginais" pela academia. É o que temos, e já está de bom tamanho.
Muito pertinente. Me faz lembrar aquele discurso do desenvolvimento sustentável que pode ser desenvolvimento porque continuamos a crescer e pode ser sustentável porque continuamos a proteger. Mas as ações de conservação da natureza só cumprirão os seus reais objetivos quando se tornarem reais obstáculos ao crescimento econômico e populacional.
Dona Zulmira, que primor!
Então, conservação bem sucedida é aquela que impede o crescimento econômico?
Nossa, tem dia que eu preferiria não saber ler.
1. Não me chamo Dona.
2. Realmente, parece que não sabe ler. Se sabe, não sei porque se espanta tanto assim por haverem pessoas que concordam com o texto, porque inválido ele não é. Inválido é postar comentários vazios de argumentação.
Parece estranho, mas não é.
Queira dar um exemplo de desenvolvimento sustentável, como aqueles Integrated Conservation and Development Projects, que garanta SIMULTANEAMENTE E POR TEMPO ILIMITADO 1) o crescimento econômico e populacional e 2) a preservação dos recursos para as gerações futuras.
Isso é matematicamente impossível num planeta finito, e a nossa falha em compreender isso gera o atual colapso da biodiversidade e dos ecossistemas.