Desde 2017, quando teve início a implantação da Trilha Regional Caminho das Araucárias, que interliga o Parque Estadual Turístico do Caracol, em Canela, no Rio Grande do Sul, ao Parque Nacional de São Joaquim, em Urubici, Santa Catarina, e cruza diversas unidades de conservação (UCs) federais, estaduais e municipais; um movimento além daquele das pessoas caminhando e uma outra conexão diferente da conectividade das paisagens começaram a ser percebidos. Esse movimento consiste no engajamento contínuo de um grupo de voluntários e de entidades que se reúnem mensalmente para planejar o caminho: estudando trajetos, fazendo reconhecimento no terreno, realizando sinalização, conversando com possíveis parceiros e divulgando a trilha.
Com um ritmo equilibrado e constante, o grupo gestor do Caminho das Araucárias conseguiu estabelecer nesse período novas conexões que aproximam atores da conservação e do turismo. Se por um lado, o grupo mais ligado à conservação já tinha bom nível de contato entre si, em razão das demandas institucionais de gestão das UCs e de representação do movimento ambientalista, a proximidade desses atores com os do setor de turismo ainda era bastante restrita. E é aqui que o Caminho das Araucárias tem contribuído, e muito, para a aproximação e integração desses atores.
Um exemplo bastante ilustrativo dessa aproximação está na “Expedição Rocinha”, que integrou servidores da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA-RS) e um aluno do Curso de Bacharelado em Turismo da Universidade de Caxias do Sul (UCS) que, acompanhados de alguns caminhantes, realizaram o reconhecimento de um trajeto que ainda não havia sido avaliado, a partir da borda Norte do Cânion Fortaleza — no Parque Nacional da Serra Geral — em direção ao município gaúcho de São José dos Ausentes.
O objetivo de percorrer este trecho é propor um caminho viável que possa proporcionar uma vivência genuína ao futuro visitante em contato com a biodiversidade local, de modo seguro, proveitoso e com geração de renda para a comunidade local. Além de dar continuidade no traçado para conectar as unidades de conservação do Rio Grande do Sul à Santa Catarina.
A estratégia foi mapear os 42 quilômetros, sempre destacando os pontos no GPS das áreas de turfeiras, pontos de coleta de água, áreas possíveis para camping e potenciais mirantes. Já o estudante de Turismo, Samuel Otário Marcon, procurou avaliar a disponibilidade de infraestrutura e serviços da rede de apoio ao trilheiro no trajeto, como parte de seu trabalho de conclusão de curso.
1º dia:
No raiar do dia, iniciamos a caminhada, inebriados pela beleza dos primeiros raios de sol contornando os paredões dos cânions. Tínhamos como objetivo verificar a viabilidade de um dos possíveis trechos do Caminho das Araucárias. Percorremos, primeiramente, a borda do Cânion da Pedra e logo, para a nossa surpresa, chegamos a um local que provavelmente será um dos mirantes mais belos do percurso. Sentindo o frescor do vento da manhã a 900 metros de altura, a nossa frente estava a imensidão do Oceano Atlântico, ao norte o litoral de Santa Catarina, a leste o Cânion da Pedra, e ao longe ainda era possível ver a borda das paredes do Cânion Fortaleza, cada vez mais distante. Depois de algumas horas caminhando entre cerros, paredões e pequenos córregos de água, mapeando pontos de abastecimento de água e desviando dos incontáveis obstáculos pelo caminho, avistamos uma casa de pedra, possivelmente um local de apoio para alguma propriedade rural que se avizinhava. Não tivemos dúvida que esta casa seria um excelente refúgio para pernoite dos caminhantes, e registramos sua coordenada para, posteriormente, localizarmos o seu proprietário.
Seguimos a caminhada em direção norte, cada vez mais convencidos sobre o potencial do trecho. Sempre que podíamos, mapeávamos o traçado o mais próximo possível da borda dos cânions. Já tínhamos caminhado mais de 10 km quando entramos em um bosque repleto de Araucárias, árvore belíssima, tão importante para a região que recebe através do nome do caminho uma homenagem. Sobre o manto de suas copas, registramos no GPS mais um local para descanso e abastecimento de água. Mais alguns quilômetros depois, o sol, que nos acompanhou por todo o dia, iniciava sua descida entre os cerros, evidenciando ainda mais a beleza dos campos de altitude, nativos do sul do Brasil. Depois de percorrer 17,4 km acampamos na beira do vértice de mais um cânion. Enfim, era hora de descansar e contemplar a beleza da noite.
2º dia:
Neste segundo dia, despertamos novamente ao alvorecer. O sol, que no dia anterior nos desafiou com seu calor, deu lugar para a beleza, por vezes rude, da viração — fenômeno típico dos cânions do sul que forma uma névoa densa, fria e desorientadora. Foi importante experimentar esse fenômeno para pensarmos em medidas de segurança para o caminhante. Nas nossas costas estavam os 20 km já percorridos, o retorno não era mais viável. Neste dia, tivemos que recorrer ao GPS devido à neblina e muitas vezes foi necessário desviar do caminho planejado para otimizar a progressão da caminhada, até porque uma equipe faria nosso resgate no final da trilha e um atraso significativo poderia trazer certo transtorno e preocupação. O entusiasmo contagiante dos integrantes da expedição, mesmo sob a condição extrema em que estávamos, compensou a frustração de não poder registrar alguns dos mirantes almejados durante o planejamento da expedição. Sem problemas! Os cânions continuariam lá, era o momento de pensar na segurança da expedição.
Caminhar pelos campos de altitude do sul do Brasil é uma experiência única, não somente pela paisagem inigualável dos cânions, mas também pelos afloramentos rochosos, turfeiras – regiões encharcadas rica em matéria orgânica –, que funcionam como uma verdadeira “caixa d’água” para os rios da região e que desafiam os caminhantes a todo o momento.
Terminamos o dia, molhados e cansados no entorno de uma velha casa abandonada, outro possível ponto de acampamento para futuros caminhantes, com terreno plano e próximo à água.
3º dia:
O último dia de uma expedição, seja ela de três ou dez dias, é uma mistura de sentimentos, o cansaço já aflorado dá lugar para uma mente focada em concluir o trajeto. Esse foco foi especialmente importante, pois o desvio que fizemos para encurtar o caminho nos levou para um trecho repleto de sobe e desce que parecia ser infinito, mais uma vez o propósito da expedição foi justificado, experimentar a trilha com uma equipe física e mentalmente preparada para adversidades se mostrou importante. Não tivemos dúvidas de que os últimos 5 kms não integrariam o Caminho das Araucárias devido a sua dificuldade. Este trecho será redirecionado para perto da borda do cânion, afastando o caminhante do desgaste que enfrentamos.
Ao longo do último dia, o tempo foi melhorando e o entusiasmo voltou a se refletir na progressão da caminhada. Outros cânions foram registrados para se tornarem mirantes, novos pontos de abastecimento de água e locais para descanso foram mapeados. Quanto mais próximos da Serra da Rocinha chegávamos, mais limpo o céu se tornava. E foi assim, depois de caminhar por 42 km, na beira do cânion da Rocinha, que mais um possível trecho do Caminho das Araucárias foi percorrido. As condições desfavoráveis dificultaram um pouco o nosso trabalho, mas estávamos satisfeitos e com plena certeza de que este trecho é um dos mais belos, interessantes e desafiadores entre tantos outros que compõem o Caminho das Araucárias. Abrimos caminho para as próximas fases de implementação do trecho, as propriedades rurais serão mapeadas e os estabelecimentos turísticos serão contatados e, caso se tornem uma propriedade parceira do Caminho das Araucárias, a trilha será sinalizada e aberta ao público.
Como nos mostra o relato feito pelos expedicionários, os resultados obtidos pela “Expedição Rocinha” abrangendo a verificação das condições ambientais do trajeto, a identificação dos melhores pontos de passagem e o levantamento de infraestrutura e serviços de apoio são exemplos das contribuições que o Caminho das Araucárias tem trazido como nova motivação para aproximação dos atores regionais da conservação e do turismo, em um comportamento que deverá se intensificar nos próximos anos e que certamente muito poderá contribuir para o desenvolvimento da região.
Assista a live da Rede Brasileira de Trilhas sobre o Caminho das Araucárias:
*Sobre os autores:
Michel Bregolin, professor na Universidade de Caxias do Sul
Cátia Dias, bióloga, educadora ambiental e voluntária do Grupo de Comunicação do Caminho das Araucárias
Luiza Barison, gestora e moradora da Estância Felicidade, propriedade rural turística em Cambará do Sul
Michelle Knob Koch, coordenadora de Comunicação do Caminho das Araucárias e gestora do Parque Natural Municipal do Ronda
Felipe Kohls Rangel, biólogo e analista ambiental da SEMA-RS
Denis Patrocínio, biólogo e analista ambiental da SEMA-RS
Samuel Marcon, acadêmico do curso de Turismo da Universidade de Caxias do Sul
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Excelente iniciativa!
Gostaria de saber se existe alguma iniciativa na regiao de Ponta Grossa e Campo Largo?
Muito pinheiro e belezas naturais para estimular as trilhas.
Grato
Giuliano